Filho de Lynch sabe filmar
O Porto/Post/Doc apresenta Gray House, uma longa experimental de Austin (filho de David) Lynch e Matthew Booth sobre o vazio da América moderna
O filme chama-se Gray House - Casa Cinzenta - e podemos ver o título como reflectindo o que uma entrevistada diz sobre a sua vida na prisão: tudo à sua volta, das paredes da cela aos muros do pátio, passando pela própria areia, é cinzento, deslavado, neutro. Não há cor nesta primeira longa-metragem assinada a meias por Austin Lynch (realizador e argumentista) e Matthew Booth (director de fotografia), apresentada na secção competitiva do Porto/Post/Doc (repete sábado 2 às 15h00 no Rivoli). Ou antes, há a cor da natureza verdejante da Virgínia num curto segmento que, não por acaso, está colocado exactamente a meio dos 75 minutos de filme. É o único momento livre, e ao ar livre, de um filme onde toda a gente parece estar tolhida, presa, pelas paredes que os rodeiam, que em alguns casos não são paredes mas as próprias limitações da paisagem ou uma vida fechada – dos camaroeiros do Texas aos operários petrolíferos do Dakota, das prisioneiras do Oregon às socialites da Califórnia.
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O filme chama-se Gray House - Casa Cinzenta - e podemos ver o título como reflectindo o que uma entrevistada diz sobre a sua vida na prisão: tudo à sua volta, das paredes da cela aos muros do pátio, passando pela própria areia, é cinzento, deslavado, neutro. Não há cor nesta primeira longa-metragem assinada a meias por Austin Lynch (realizador e argumentista) e Matthew Booth (director de fotografia), apresentada na secção competitiva do Porto/Post/Doc (repete sábado 2 às 15h00 no Rivoli). Ou antes, há a cor da natureza verdejante da Virgínia num curto segmento que, não por acaso, está colocado exactamente a meio dos 75 minutos de filme. É o único momento livre, e ao ar livre, de um filme onde toda a gente parece estar tolhida, presa, pelas paredes que os rodeiam, que em alguns casos não são paredes mas as próprias limitações da paisagem ou uma vida fechada – dos camaroeiros do Texas aos operários petrolíferos do Dakota, das prisioneiras do Oregon às socialites da Califórnia.
Tudo isto, no entanto, ganha outros contornos quando percebemos duas coisas. Primeira: esta viagem por cinco estados americanos é um filme “híbrido” onde se combinam sequências abertamente documentais com momentos encenados – mesmo que só o genérico final explique precisamente quais. Segunda: Austin Lynch é, como o nome já sugeria, filho de David Lynch, e cenas como as lentíssimas panorâmicas frontais sobre uma porta, um caminho, um quarto sugerem algo mais, algo de inquietante, uma estranheza que reconhecemos do trabalho do pai.
Gray House, dito isto, é filme que segue nas pisadas do Lynch pós-Mulholland Drive, com a sua progressiva libertação das grilhetas do cinema narrativo e a sua aposta na justaposição de imagens e sons para criar um ambiente e uma sensação (e, nesse sentido, Lynch-filho aprendeu umas coisas com Lynch-pai). Mas é também um filme ancorado numa realidade efectiva, num mundo real fora do écrã, com as vinhetas, encenadas ou documentais, a assumirem uma dimensão implacável de radiografia emocional de um estado de espírito. As entrevistas com os operários petrolíferos do Dakota, dispostos a sacrificarem a sua vida pessoal durante meses para ganharem dinheiro suficiente para sustentar mulher e filhos, e com mulheres que vão passar a vida inteira na prisão, sugerem algo de “quebrado”, de perdido, no pacto social do sonho americano, que os momentos encenados apenas sublinham. E se Lynch-pai opera no domínio do abertamente surreal, Lynch-filho prefere ater-se ao real para nele reconhecer o vazio no centro de uma sociedade que parece ter falhado o mote de “e justiça para todos”.
Há, mesmo assim, em Gray House a sensação de estarmos perante um projecto artístico, mais do que um filme, e de Lynch e Booth estarem a tentar encontrar novas maneiras de dizer o que já foi dito muitas vezes. Não o conseguem por inteiro, mas a experiência não é por isso menos válida.