“Deixou de haver ética e sangue na criação artística”
Reedição integral de uma das fundamentais obras discográficas da música popular portuguesa, em oito álbuns, agora que se cumpre meio século sobre as suas primeiras gravações. José Mário Branco interpela o mundo e leva-nos, através das canções, a repensar o lugar de cada um no meio dos outros.
Em Outubro de 2008, naquela que foi a sua última grande apresentação pública, José Mário Branco desdobrava uma criação inédita em três partes – chamava-lhe Mudar de vida. Um longo tema, descomprometido, em que passava a palavras um olhar crítico do mundo em que vivemos, em que bradava um estendido apelo à fraternidade entre homens e mulheres, numa exaltação da contínua procura por um caminho melhor e mais justo para a vida em colectivo. Depois da já longínqua edição de Resistir É Vencer, em 2004, parecia a peça solta que, mais tarde ou mais cedo, tomaria o lugar nuclear de um novo álbum. Só que, hoje, o músico não lhe reconhece a carne viva necessária para que tal possa acontecer. Em vez disso, enquanto esperamos ainda, é esta sexta-feira reeditada a sua discografia – Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, Margem de Certa Maneira, A Mãe, Ser Solidário, A Noite, Correspondências, Ao Vivo em 1997 e Resistir É Vencer – e fica a promessa de uma recolha de inéditos e raridades para o início de 2018. Mas não será ainda a vez de Mudar de vida. A espera continuará – por um novo disco e pela mudança de paradigma social que José Mário reclama na canção.
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Em Outubro de 2008, naquela que foi a sua última grande apresentação pública, José Mário Branco desdobrava uma criação inédita em três partes – chamava-lhe Mudar de vida. Um longo tema, descomprometido, em que passava a palavras um olhar crítico do mundo em que vivemos, em que bradava um estendido apelo à fraternidade entre homens e mulheres, numa exaltação da contínua procura por um caminho melhor e mais justo para a vida em colectivo. Depois da já longínqua edição de Resistir É Vencer, em 2004, parecia a peça solta que, mais tarde ou mais cedo, tomaria o lugar nuclear de um novo álbum. Só que, hoje, o músico não lhe reconhece a carne viva necessária para que tal possa acontecer. Em vez disso, enquanto esperamos ainda, é esta sexta-feira reeditada a sua discografia – Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, Margem de Certa Maneira, A Mãe, Ser Solidário, A Noite, Correspondências, Ao Vivo em 1997 e Resistir É Vencer – e fica a promessa de uma recolha de inéditos e raridades para o início de 2018. Mas não será ainda a vez de Mudar de vida. A espera continuará – por um novo disco e pela mudança de paradigma social que José Mário reclama na canção.
Nos últimos anos, sobretudo no período mais duro da crise, afirmava que não lhe apetecia fazer canções, não havia nada para dizer. Ainda se sente assim?
Isso é relativo. Não tenho inventado reportório novo para mim. Essa relação foi sempre muito autobiográfica, muito dependente do estado em que me encontro. Mas não tenho parado de trabalhar para os outros e é evidente que ao fazê-lo me estou sempre a exprimir. Apenas não me apeteceu ainda fazer algo cantado por mim. As próprias interrogações não encontram forma.
Isso exige algum apelo especialmente forte ou acontece pondo a mão na massa?
Pondo a mão na massa. Desde o início, talvez à excepção da primeira fase, sempre trabalhei muito por encomenda. Há muita música que aparece nos discos mas que foi feita para filmes, peças de teatro, para outras pessoas.
Mas o estado de inquietação que o mantém criativo é o mesmo de há 40 ou 50 anos?
Claro que é. Há menos extroversão, na medida em que as perguntas são perguntas pesadas sobre o estado em que se encontra o mundo, sobre o sentido que faz tudo isto actualmente. Não se pode esquecer que toda a minha geração perdeu o futuro. Em vez de partir de sonhos, construímos os sonhos a partir de uma análise do real. É a tradução para as pessoas mais velhas daquilo que está a viver a juventude – não é possível aceitar quando se percebe o estado em que está o mundo ou a sociedade. É uma época muito escura.
E é escura porque essa perda de futuro pode implicar uma certa perda também do passado?
Acho que não. Agora, por causa da reedição da obra e das investigações em curso a partir de muitas coisas que eu tinha nas gavetas, que não são conhecidas, tenho feito com frequência essa análise: “Isto fez algum sentido?” Fez todo o sentido. A situação actual não leva a uma perda de valores, não leva a um “estava tudo errado”.
Havia grandes razões para se acreditar que o caminho podia ser por ali e que não havia outro. O que se descobre hoje é que o caminho não era aquele, mas os valores mais básicos e fundamentais, que na prática tinha desde a adolescência, penso que estão inalterados em mim e nas outras pessoas.
O que está em aberto agora é como, neste mundo como o vemos hoje, se pode encontrar uma práxis. Nas épocas de crise normalmente as pessoas são levadas a saber muito melhor o que não querem do que aquilo que querem. E, portanto, toda a experiência do passado é perfeitamente válida para saber o que não se quer. Agora, não se tem tido capacidade de ir ao reino das ideologias perceber o que ainda está em vigência. A tendência é “Estava tudo errado”, “Fomos enganados”. Isso seria como se na experiência do biólogo alemão [Paul Ehrlich, bacteriologista que descobriu a cura para a sífilis, na tentativa a que chamou Ehrlich 914] de que falo no Mudar de vida ele deitasse fora tudo o que tinha feito porque falhou um dos testes científicos.
Essa postura não pertence demasiado ao reduto da ciência? Vivemos num mundo em que há uma expectativa imediata da concretização de tudo.
Penso que o fenómeno que mostra estarmos numa época diferente é a desculturação – e que é maciça. Há 50 ou 60 anos, mesmo com muitos analfabetos e com uma vida quotidiana muito mais difícil nos aspectos vitais, existia uma ligação à terra que permitia haver uma cultura, haver raízes. E a cultura não só se massificou, como se desenraizou. Portanto há uma epidemia de amorfismo que, num aspecto, se assemelha com o que tínhamos na ditadura: parece que vivemos no meio de uma papa cinzenta. É a desculturação, a falta de assunto. Trata-se de uma característica geral da época da globalização do capitalismo, não é uma queixinha que estou a fazer em relação ao nosso país. Digamos que a estética pós-modernista é um resultado directo disso, é feita para alimentar essa visão do mundo que não é uma visão, é uma forma de cegueira. E por ter essa relação com os tais valores que não são os valores da Bolsa, não quero que esta conversa seja percebida como uma conversa amarga. Só que o mundo está diferente. Ainda não percebemos bem a gravidade do que está a acontecer de há 20 ou 30 anos para cá.
A única coisa que vislumbro é que é preciso começar tudo de novo, mais uma vez, como o Ehrlich, e é preciso começar pelo que está perto, pelo que está em baixo, no chão. É um trabalho muito mais a partir das questões biológicas, animais, da sobrevivência, do medo, do prazer, das questões básicas. A estrutura de classes modificou-se imenso, mas não a forma de apropriação da mais-valia pelo capital. E hoje o que há é uma visão da arte que corresponde perfeitamente ao capitalismo pós-II Guerra Mundial. Quando vemos a história do Van Gogh ou do Modigliani e comparamos com a rapariga que faz galos de Barcelos isso é uma amostra do trabalho do pós-modernismo. Deixou de haver ética na criação artística. Deixou de haver compromisso. Deixou de haver sangue. É raro encontrar-se uma obra, mesmo de menor qualidade estética, em que se sinta a preocupação de comunicar com o outro.
Com todas essas questões consegue sentir-se plenamente realizado com uma expressão que se cumpre através dos outros?
Plenamente não. Aliás, não sei se alguma vez me senti plenamente realizado. Andamos à procura. Quando vou ouvir os discos antigos que fiz, só oiço o que está mal; ou o que podia estar melhor. Acho que muita gente não entende que a auto-crítica faz parte da realização pessoal. É a lição dos timorenses no Resistir É Vencer. Um olhar crítico sobre aquilo que se diz, aquilo que se faz, a maneira como se vive e as escolhas que se fazem é parte da vida e da realização.
O exercício que faz todos os anos de reouvir a discografia de José Afonso também faz em causa própria?
Às vezes. Não oiço a minha discografia, mas vou reouvir certas coisas, sobretudo porque quando trabalho com outros artistas muitas vezes levantam-se problemas de realização, musicais e de encenação sonora, que eu já tive de enfrentar. Mas, por vezes, torna-se penoso porque só se ouve os defeitos. Seria muito infeliz se ouvisse os meus discos para me comprazer nesse exercício narcisista – “olha que bem que eu estive aqui”.
Por exemplo, na primeira parte da minha obra não se pode dizer que eu cante bem. Há maquetas comigo só a tocar à viola, uma série de coisas a seguir a 79/80, da época do Ser Solidário, que estão muito mais bem cantadas na maqueta do que em disco. Tinha o problema, e no Ser Solidário isso sente-se muito, de ser produtor, arranjador, orquestrador, intérprete, arregimentador de músicos, etc… Quando chegava o momento de meter a voz já estava estoirado. O disco em que começo a perceber que tinha de me resguardar é aquele em que decidi não fazer arranjos – Correspondências, em 90. Foi uma experiência que me levou a perceber que tinha de estar disponível para cantar bem. “Cantar bem” não no sentido de cantar como o Pavarotti, mas exprimir-me bem, não desafinar, respirar devidamente.
Como é que surgem, em 67, as suas primeiras gravações para os Arquivos Sonoros de Fernando Lopes-Graça e Michel Giacometti?
Embora pessoalmente conhecesse muito melhor o Graça, estava convencido de que teria sido o Michel a convencê-lo a fazer o EP de Seis Cantigas de Amigo. Mas os investigadores da Universidade Nova que trabalham sobre a minha obra descobriram que foi o contrário. Foi o Lopes-Graça que disse: “Isto é interessante, vamos editar um disco com as coisas deste rapaz.”
É engraçado porque ele interessou-se por essa démarche de reviver no século XX [a literatura medieval galaico-portuguesa], em que fiz um pouco o que fez a Natália [Correia] com os textos – porque as canções foram tiradas de uma actualização linguística que ela fez de cantigas de amigo, amor, escárnio e maldizer. Afinal, o Graça não era tão sectário como parecia. E em muitas coisas tinha razão. De uma forma geral, aquilo a que se chamou os baladeiros era mesmo fraco – ele só mais tarde veio a perceber, no meio disso tudo, o génio do Zeca.
O Graça chegou a teorizar contra o fado, porque para ele era uma música do regime, não percebeu que era algo mais antigo e profundo, o que depois eu vim a perceber.
Como é que percebeu o fado?
Ao ir viver para Lisboa, levei uma lavagem ao cérebro de alguém que conhece por dentro e por fora esse mundo, e que me explicou, até mais em termos teatrais do que musicais, o que havia ali de muito especial. Não percebo nada de pintura, mas se alguém me orienta e diz “olha para este quadro, repara nisto e naquilo”, começo a perceber coisas. No cinema também. O génio do João Bénard da Costa era, de repente, com ele uma pessoa vislumbrar o que estava a acontecer na tela, que sentidos havia naquela diagonal da carroça a subir uma estrada na montanha num western do John Ford.
Mesmo que não encontremos os sentidos, é preciso ter ferramentas para os procurar. Com o fado foi assim. A Manuela [de Freitas, actriz e letrista] começou a chamar-me a atenção para o que é diferente no Marceneiro, no Carlos Ramos e no Tristão da Silva. O que é diferente na Maria Teresa de Noronha, na Lucília do Carmo e na Amália Rodrigues.
Agora cantam todos aos gritos, não se entende, dão cabo da língua portuguesa, sobretudo das vogais. Vamos ouvir o Marceneiro e até a pontuação se percebe. O Marceneiro não precisou da voz para nada para ser o Marceneiro. Como o Tom Waits também não precisou, como a Nina Simone no fim da carreira também não precisou. Enfim, não é por acaso que o primeiro fado que componho tem letra parcialmente da Manuela e parcialmente minha. Chama-se Fado da tristeza e é dessa época em que estávamos no Teatro A Comuna, 77/78.
Em que medida a linguagem teatral lhe estimula a criação?
Primeiro, o factor encomenda. Há uma situação, há uma cena – e agora como é que isto se ilustra com uma canção? A importância de A Mãe [texto de Brecht a partir de Gorki, adaptado e levado à cena pel’A Comuna em 1977] foi muito grande nesse aspecto. A canção existe no contexto do Brecht, mas o que fizemos foi misturar o Brecht com o Gorki e depois misturar tudo com as nossas raízes portuguesas. Nem as músicas nem os textos são do Brecht. As músicas originais são tipicamente alemãs, é um outro mundo.
Mas há alguma ressonância das canções alemãs em A Mãe.
Há alguma. Porque eu já era admirador do Kurt Weill. O Weill fez muito uma coisa que percebi que eu também tentava fazer: nas canções é fundamental gostar de esgrimir com o cliché. É muito fácil a gente fazer canções com clichés, mas o que é esgrimir com o cliché, quando a gente faz fados ou marchas populares, quando se escreve o Qual é a tua, ó meu? ou a Queixa das almas jovens censuradas, que pode ser um cliché da canção poética francesa do pós-guerra? O que se faz é esgrimir, é dar o toque que permita libertar o ouvinte do cliché e puxá-lo para um nível qualitativo superior. É educar o gosto. O Weill é um mestre dessa arte.
Isso obriga a uma escrita muito consciente?
Não. A minha relação construtiva com uma nova canção é muito pouco ou nada racional. Perfilados de medo, Queixa, Mudam-se os tempos… foram canções que fiz em cima de poemas pré-existentes e foram acontecimentos quase instantâneos. Quando estou a inventar uma canção o que sinto quase fisicamente é que não sou eu que a invento. É alguém ou alguma coisa que passa através de mim para os outros. É por isso que não sou nada possessivo em relação às minhas canções, não acho que seja dono delas. Podem até fazer hinos nazis com as minhas músicas que não me importo nada. O meu filho fez 50 e tal anos e não lhe telefono a perguntar se lavou os dentes. Foi à vida dele.
Costuma falar de uma encenação sonora na construção dos discos. Quando gravou o primeiro álbum, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades havia já essa ideia clara na sua cabeça?
O que havia era pânico. Porque, de repente, telefonam-me da [editora] Sassetti a dizer: “Vá para estúdio. Escolha o estúdio e os músicos, faça como quiser.” E eu fiquei em pânico. Foi então que as influências que tinha do teatro e da rádio me vieram ajudar a perceber em que é que consiste gravar uma canção. A minha aflição era essa. Havia todo um universo sonoro possível, condições de registo boas, mesa de mistura do melhor que existia na altura, até timbales de orquestra o estúdio tinha. E liberdade total. Que horror! Que luxo também, mas que horror! “E agora faço o quê?” Foi neste contexto que pensei: “Espera aí, tenho de ouvir isto como se fosse o Zé dos Anzóis lá em casa"… Enquanto produtor tenho de ser o representante dos ouvintes futuros.
E agora que está diante desta reedição integral, olha-a como uma obra fechada?
Não. Os discos apareceram quando tinham mesmo de aparecer, quando uma série de material acumulado justificava uma escolha e uma ida para estúdio, o que não acontece neste momento. É um intervalo grande, mas houve outros. Nem acho que isso tenha qualquer importância. E muitas coisas que podia dizer agora já estão aí, nos discos existentes.