Milhares de ex-votos, alguns com 200 anos, degradam-se em Elvas
É o repositório piedoso de histórias contadas por milhares de crentes expostas em telas pintadas em madeira, pano ou em elementos metálicos, pedindo ou agradecendo a intervenção divina.
São milhares as telas pintadas em madeira, pano ou em suporte metálico, peças de cera, mechas de cabelo, fotografias que cobrem as paredes e os tectos da Igreja do Senhor Jesus da Piedade de Elvas. Imagens expressivas de arte popular, mas também há várias que revelam um pendor erudito ou aristocrático, reveladoras de dor e sofrimento ou de gratidão pelos milagres operados ao longo dos séculos. São actos de fé materializados em diferentes formas que jazem abandonados numa igreja em Elvas.
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São milhares as telas pintadas em madeira, pano ou em suporte metálico, peças de cera, mechas de cabelo, fotografias que cobrem as paredes e os tectos da Igreja do Senhor Jesus da Piedade de Elvas. Imagens expressivas de arte popular, mas também há várias que revelam um pendor erudito ou aristocrático, reveladoras de dor e sofrimento ou de gratidão pelos milagres operados ao longo dos séculos. São actos de fé materializados em diferentes formas que jazem abandonados numa igreja em Elvas.
O historiador António Araújo, depois de ter observado a dimensão do fenómeno religioso e o estado actual dos ex-votos (abreviação do latim ex-voto suscepto — o voto/promessa realizado) que cobrem as paredes e o tecto da igreja de Elvas, lançou um apelo no blogue Malomil, de que é editor: “Vejam-nos, um a um.” “[Existe] uma razão acrescida por nos apiedarmos deles, [pois há um] risco eminente de se esfumarem pelo passar do tempo.”
Nos próximos anos, se não se fizer nada, o valor patrimonial do acervo “histórico, religioso, etnográfico, artístico, documental, patrimonial e até literário fica comprometido”, adverte António Araújo. Em declarações ao PÚBLICO reforça a necessidade de uma intervenção urgente, sobretudo nos ex-votos pintados em materiais metálicos por estarem mais degradados do que os sobre madeira ou pano.
“É a história de milhares de pessoas, de um país inteiro a passar diante dos nossos olhos extasiados”, sublinha. Testemunhos de pessoas ou famílias afectados por acidentes de todo o género, infortúnios, graças recebidas, orações aos céus, passando também pelos soldados que participaram na I Grande Guerra e na guerra colonial. Enfim, dos trabalhos no campo às doenças mortais, há todo um mundo de episódios de diferentes vidas, em diferentes séculos, pendurados naquelas paredes. Numerosas narrativas de curas milagrosas expressas em imagens pictóricas que apresentam “animais doentes ou acidentados, ou de manifestações de particular ajuda divina em situações de perigo”, completam o espólio do santuário de Elvas, salienta Maria de Lourdes Cidraes, professora na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no seu livro Encantamentos, Milagres e Outros Prodígios — Os Animais das Nossas Lendas.
António Araújo vê-o como “um pequeno mundo em risco de extinção”, centrado no núcleo familiar ou de pequenas comunidades rurais e exposto de modo singelo, desde o século XVIII até aos nossos dias.
A origem de tanta devoção remonta a 1736. Uma lenda descreve o que se terá passado naquele ano, quando o clérigo elvense Manuel Antunes se dirigia à Horta dos Passarinhos, da qual era capelão e donde recebia rendimentos: “Vinha montado numa pequena mula e caiu por duas vezes, tendo ficado bastante ferido. Quase inconsciente, seguiu a pé, crendo ser capaz de chegar à Horta. Na sua caminhada chegou a um outeiro de pedras onde se erguia uma cruz mal feita e tosca. Aí ajoelhado, jurou mandar consertá-la e celebrar uma missa naquele local, se conseguisse chegar à propriedade sem mais contrariedades e se não tivessem consequências funestas as quedas aparatosas que tinha sofrido.” Parece que as suas preces tiveram acolhimento e o padre foi mais além do prometido e mandou construir, em 1737, uma capela, onde foi colocada a cruz com a imagem do Senhor e que hoje faz parte do santuário.
O “milagre” foi divulgado por muitos sítios e as peregrinações ao local passaram a ser constantes, assim como a entrega dos ex-votos dedicados ao Senhor Jesus da Piedade, que se tornou conhecido em toda a Península Ibérica.
Mais “milagres” ocorreram e mais promessas foram cumpridas, o que levou à construção, primeiro de uma capela e depois, entre 1753 e 1779, da Igreja do Senhor Jesus da Piedade, na qual se encontram patentes milhares de ex-votos, singulares actos de fé, que representam histórias que “podem desaparecer se não as contarmos agora, agora já”, enfatiza António Araújo. Realça que esta “é a história de Portugal contada ingenuamente sob a forma de preces pintadas” na igreja de Elvas.
A primeira tela “data de 1737 e representa a primitiva capela”, explica ao PÚBLICO Fidélia Aldrabinha, primeira-secretária da mesa da assembleia geral da Confraria do Senhor Jesus da Piedade (CSJP), coordenadora do imenso espólio, que calcula “entre os 6500 e os 7000 ex-votos” e que estão distribuídos por várias salas da igreja.
Da pintura às fotos
O advento da guerra colonial veio alterar de forma mais regular a forma de expressão religiosa dos crentes. “Começaram a aparecer fotografias, mas também as há do princípio do século XIX”, assinala a porta-voz da confraria, acrescentando que “todos os dias chegam novos ex-votos”.
Estão igualmente patentes nesta forma de expressão religiosa as condições económicas das pessoas que os ofereciam e que hoje permitem, inclusive, fazer uma análise sociológica, não só localmente, como a nível nacional, dos contextos a que as narrativas fazem referência. “Há pessoas que vêm do Norte do país, de Braga, Vila Real ou Bragança até Elvas para nos entregarem o seu ex-voto”, acentua a dirigente da confraria. Há, porém, uma importante peça que entretanto desapareceu: durante as invasões francesas, as forças napoleónicas ocuparam Elvas durante oito meses e constataram a fé dos elvenses. “Quando abalaram, levaram a tela que simbolizava o Senhor Jesus da Piedade”, conta a responsável.
A situação do espólio existente e à guarda da confraria preocupa Fidélia Aldrabinha. “São tantos, tantos ex-votos, que seria necessário um espaço enorme para os expor, mas o problema é sempre o mesmo: não há dinheiro.”
O capelão da confraria, padre José António, adianta que, para já, o objectivo passa por uma gestão mais criteriosa da imensa colecção, “alargando o espaço de exposição dos ex-votos mais antigos”, e pela recuperação dos que estão a ficar degradados, restaurando-os. É a opção possível nas actuais circunstâncias, observa o sacerdote, assinalando que “estão armazenados “tantos ex-votos quantos os que se encontram expostos dos séculos XVIII, XIX e XX”.
Acresce que a confraria “não dispõe” de técnicos para estudar o acervo que existe dentro da Igreja do Senhor Jesus da Piedade, assinala a secretária da mesa da assembleia, realçando as dificuldades em tratar um património muito vulnerável. “É muito complicado mexer nas telas devido aos anos que têm e por não estarem devidamente protegidas do pó, da claridade e da humidade”, observa, frisando que o sonho passa pela criação de um museu. Enquanto este não se materializa, a confraria vai “limpando” como pode, assumindo que não dispõe de condições económicas para fazer a salvaguarda do património à sua guarda.
Apelos a Bruxelas e mecenas
Face à falta de fundos, a confraria está a preparar um projecto de candidatura a programas comunitários direccionados para o desenvolvimento das regiões do interior. O levantamento das necessidades está feito e implica o dispêndio de uma verba de 400 mil euros, montante que é considerado “incomportável” pela confraria.
“Vamos propor a colaboração da Câmara de Elvas, do mecenato, de empresas e de pessoas singulares, fazendo parcerias”, acrescenta o capelão José António.
Enquanto não se encontram soluções para preservar estas narrativas, não pode ser também esquecida “a importância do culto religioso que está associado aos ex-votos e também o valor pedagógico e doutrinário da imagem, erudita ou popular”, lembra Lourdes Cidraes.
Com efeito, o “milagre” de Elvas deu origem a uma romaria à Igreja e Santuário do Senhor Jesus da Piedade com carácter anual que se realiza na última semana de Setembro. Há mais de 250 anos que o santuário atrai milhares de pessoas, confiantes de que a cura do pároco se pode repetir. A crença acerca do local rapidamente se alastrou a toda a Península Ibérica. É considerada uma das maiores manifestações religiosas do país que traz à cidade alentejana pessoas de vários pontos de Portugal e do país vizinho, nomeadamente da Estremadura espanhola.