Década dos Afrodescendentes da ONU continua invisível em Portugal

Reunião internacional em Genebra teve apenas três representantes da sociedade civil portuguesa. "Passados quase três anos, o Estado português não adoptou qualquer medida da Década", critica a PADEMA. "Na Europa poucos países tiveram iniciativas”, acrescenta o SOS Racismo. Alto-Comissário para os Direitos Humanos da ONU manifestou preocupação com a discriminação do sistema judicial em vários países.

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Manifestação em Lisboa contra a violência policial contra negros, um dos pontos que a ONU quer ver abordados pelos estados-membro Nuno Ferreira Santos

Não é um fenómeno local, é global: em todo o mundo a população afrodescendente continua a ser alvo de discriminação a vários níveis, da habitação às escolas, do trabalho à representação política ou à justiça.

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Não é um fenómeno local, é global: em todo o mundo a população afrodescendente continua a ser alvo de discriminação a vários níveis, da habitação às escolas, do trabalho à representação política ou à justiça.

Foi assim que o alto-comissário para os Direitos Humanos das Nações Unidas, Zeid Ra'ad Al Hussein, abriu a reunião de dois dias que terminou na sexta-feira em Genebra, organizada com representantes oficiais e da sociedade civil da Europa, da Ásia Central e da América para discutir as prioridades e desafios da implementação da Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024).

Declarada pela ONU, a Década continua a ser invisível em Portugal, sem qualquer iniciativa a ela associada por parte do Estado. O alto-comissário manifestou a sua preocupação com a discriminação do sistema judicial em vários países.

De Portugal estiveram representantes de três organizações da sociedade civil, Luzia Moniz da PADEMA (Plataforma para o Desenvolvimento da Mulher Africana), Mamadou Ba do SOS Racismo e da plataforma Afrodescendentes Portugal, e Ana Stela Cunha da AKAZ Kazumba. Nenhum dos participantes foi contactado por representantes oficiais de Portugal – de acordo com a assessoria da secretaria de Estado da Igualdade, não terá ido ninguém.

“Denunciei na conferência o facto de, passados quase três anos do início, o Estado português não ter adoptado qualquer medida da Década”, afirma Luzia Moniz.

Nisso Portugal não está isolado. “Uma das coisas que se notou é que a maior parte dos Estados-membros não reconheceram suficientemente a importância da Década e isso reflecte-se na falta da sua implementação. Na Europa poucos países tiveram iniciativas”, comenta, por seu lado, o dirigente do SOS Racismo.

À excepção da Alemanha, Holanda e Suécia nenhum país europeu está a seguir as recomendações da Década. Uma das recomendações que tem sido feita pela ONU, nomeadamente através do Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial, é que adopte algumas das medidas da Década. Medidas que passam pela aplicação de políticas específicas para combater o racismo com várias acções, incluindo a revisão dos manuais escolares de modo a garantir-se que a escravatura e o colonialismo são retratados de forma rigorosa e não discriminatória.

Também foi recomendada a recolha de dados estatísticos sobre a população afrodescendente, algo que tem estado sistematicamente na agenda da ONU e de outras organizações – e que voltou a ser referida em Genebra – mas que até recentemente o Governo se tem recusado a aplicar.

Antes de passar para a Administração Interna, o ministro Eduardo Cabrita disse que iria estudar a possibilidade de ter uma questão no Censos de 2021 para aferir a composição étnico-racial da população, uma resposta à reivindicação de várias associações. Na altura, o ministro comprometeu-se a desenhar políticas específicas para os afrodescendentes, e a então secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade (SECI), Catarina Marcelino, reuniu-se com várias associações com esse fim, mas entretanto foi substituída por Rosa Monteiro. Segundo o gabinete de imprensa da SECI, já foi criado um grupo de trabalho para abordar a questão dos Censos, que será anunciado em breve.

A carta que essas associações de afrodescendentes escreveram à ONU em Dezembro a exigir políticas públicas para corrigir desigualdades raciais foi distribuída por Mamadou Ba em Genebra.

Ligar História e racismo

Organizada em três painéis – reconhecimento, justiça e desenvolvimento – a conferência abordou “a necessidade de os Estados e instituições internacionais reconhecerem a existência do racismo e das desigualdades raciais", resume Luzia Moniz. Por isso é necessário "adoptarem estratégias nacionais contra a afrofobia, reconhecerem a existência da discriminação estrutural, mas também o contributo dos afrodescendentes para o desenvolvimento no mundo”.

Segundo a activista da PADEMA, ficou em cima da mesa a proposta de se criar um plano Marshall para África. Luzia Moniz falou da discriminação institucional: “Em Portugal não há nenhuma mulher deputada afrodescendente, nenhuma presidente autárquica, os grandes partidos políticos não têm mulheres afrodescendentes nas direcções”, criticou.

Para Mamadou Ba ficou claro nesta reunião que existe “um défice de reconhecimento da problemática e isso tem implicações na justiça e no desenvolvimento”. Uma das recomendações deixadas foi que “o tema das reparações conste no plano de acção, que contemple a reparação histórica, nomeadamente a revisão dos currículos escolares”.

Foram feitas propostas como a criação de um Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU, ideia que Mamadou Ba diz ter sido “bem acolhida”, a criação de uma plataforma de afrodescendentes a nível global ou uma agência da ONU para os Afrodescendentes à semelhança da que existe para as crianças e as mulheres, acrescenta Luzia Moniz.

Sabelo Gumedze, representante do grupo de peritos dos afrodescendentes da ONU, afirmou que a Década “é um instrumento importante para abordar os problemas comuns que os afrodescendentes enfrentam". Citado pelo site das Nações Unidas apelou à "necessidade urgente" de “encarar as raízes da discriminação racial com “um debate honesto sobre a História e as suas ligações ao racismo quotidiano actual”.