O triunfo do hip-hop na primeira noite do Vodafone Mexefest
Cada um constrói a sua própria história no Vodafone Mexefest. Num festival de lotação esgotada, na primeira noite, a cultura hip-hop e os seus afluentes estiveram em destaque com Orelha Negra ou Oddisee.
No final da noite, na habitual troca de impressões para perceber que concertos marcaram as deambulações de cada um pelas imediações da Avenida da Liberdade, na primeira de duas noites de festival Vodafone Mexefest, percebe-se que é impossível chegar a consenso.
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No final da noite, na habitual troca de impressões para perceber que concertos marcaram as deambulações de cada um pelas imediações da Avenida da Liberdade, na primeira de duas noites de festival Vodafone Mexefest, percebe-se que é impossível chegar a consenso.
Existiu quem tivesse delineado um roteiro só com portugueses e esses asseguram que Samuel Úria, Valete ou Manuel Cruz é que foram. De entre aqueles que não gostam de deambular muito e optam por ficar nas salas mais concorridas, como o Coliseu, destaca-se os Destroyer ou Orelha Negra. Entre o público mais juvenil soletra-se o nome de IAMDDB (Diana DeBrito) e os que optam por ver só figuras que se estreiam em Portugal avança-se o nome de Oddisee. E também há quem tenha ficado insatisfeito defendendo que o grande chamariz do festival é o próprio conceito e que o cardápio tem vindo a sofrer uma quebra.
Para nós foi assim: deambulações constantes, poucos concertos vistos do início ao fim (o que não é um problema neste tipo de eventos), algumas filas desagradáveis para entrar em salas mas previsíveis pela lotação esgotada do festival e um roteiro com alguma organização (privilegiando o que nunca se viu ou que dificilmente se voltará a ver nos próximos tempos) mas aberto à imprevisibilidade.
Neste tipo de acontecimentos, com vários concertos a decorrer em simultâneo, os primeiros temas costumam ser nucleares. Não é uma lei. Mas são eles que muitas vezes definem se ficamos ou partimos à procura de alternativas. Ao início da noite o britânico Pauli (habitual colaborador de Jamie xx ou FKA Twigs) levou esta regra ao limite e à segunda canção já estava no meio do público que compunha a sala mais pequena do São Jorge. Sozinho, na voz, programações, teclados e ocasionalmente guitarra, apresentou o EP de estreia, lançado há semanas, numa toada electrónica com balanço hip-hop e voz soul, e conseguiu prender as atenções, principalmente entre o público internacional na sala, cada vez em maior número, o que não surpreende tendo em atenção a ocupação turística de Lisboa.
Na renovada sala do Capitólio aconteceu a primeira surpresa. A britânica IAMDDB poderá ser uma desconhecida para muitos, mas na verdade tinha a esperá-la uma falange de apoio considerável, principalmente entre o público mais juvenil. Com raízes angolanas e vivência lisboeta, falou imenso em português o que constituiu, obviamente, uma fonte de aproximação com a assistência que a recebeu com grande alarido. A recepção calorosa teve o condão de criar um ambiente vibrante, com ela, acompanhada de um DJ, a propor uma junção de sonoridades urbanas (do R&B ao trap) que fez abanar muitos corpos. O único problema é que acabou por falar em demasia com o público – “eles gostam mesmo de mim!”, exclamou às tantas – o que por vezes quebrou um pouco o ritmo do cerimonial.
Um dos vectores do festival é também a descoberta de lugares onde normalmente não existem manifestações culturais. E foi num desses espaços, o Palácio da Independência, que vimos um pouco do regresso à actividade dos Micro, uma das formações que marcou o hip-hop em Portugal nos anos 1990, graças às investidas sonoras de Assassino e rimas de Sagas e D-Mars, que vieram por os Pontos nos is, designação do seu novo tema, “para refrescar a memória!”, ouviu-se.
Bem mais suada estava o final da sessão de funaná proposta pelos Fogo Fogo na Casa do Alentejo, com toda a gente a bailar perante a dinâmica rítmica africanizada proposta pelo quinteto português. Talvez por isso quando chegámos ao Coliseu para assistir ao espectáculo do americano Ernest Greene, ou seja Washed Out, tivesse sabido a pouco, com a electrónica preguiçosa e sonhadora do trio em palco a não conseguir levantar voo, mesmo quando se aventuraram pelas incursões mais tropicalistas do seu terceiro e último álbum.
Pelo que rumámos de novo ao Capitólio onde se apresentou o rapper e produtor americano Oddisee. Ao contrário do que se supunha não veio com a sua banda, mas ainda assim, apenas com um DJ como suporte, concretizou uma das melhores performances da noite. E fê-lo sem qualquer ânsia. Foi conquistando gradualmente o público, primeiro com um rap de pendor mais lúdico, com alusões ao jazz, funk, soul ou mesmo a ritmos ‘disco’, e depois revelando quem era e de onde vinha (filho de pai sudanês muçulmano e mãe afro-americana cristã) promovendo uma linguagem de maior consciência sociopolítica, glosando com a sua identidade. “Onde os outros tendem a ver diferenças, vejo eu semelhanças”, disse às tantas, numa alusão humanista, que acaba por ter reflexo na sua música que olha para a cultura hip-hop com amplitude, devendo tanto ao pendor recreativo dos veteranos A Tribe Called Quest como às investidas emocionais de Kendrick Lamar, como se constata ouvindo o seu último álbum, The Iceberg. Que volte, de preferência com a banda.
Quem já viu os malianos Songhoy Blues – é o nosso caso – sabe do que são capazes, não nos admirando que quando chegámos quase no final do seu concerto, na Casa do Alentejo, reinasse um ambiente festivo com a trepidação física da sua música, com influências funk-rock, a fazer-se sentir. De volta ao Coliseu, deparámo-nos com uma das atrações da noite, o canadiano Dan Bejar e os seus Destroyer.
Um dos poetas maiores da pop contemporânea, uma daquelas figuras que numa frase é capaz de resgatar todo o charme decadente da cultura Ocidental dos nossos dias, Dan Bejar não é alguém que tenha uma relação fácil com a exposição no palco. Já lhe vimos vários concertos e é sempre assim, uma anti-estrela, naturalmente relutante, que comunica de forma imperceptível com o público e que, invariavelmente, a meio de cada canção se agacha para dar um gole de cerveja, como se ao mesmo tempo quisesse desaparecer e dar protagonismo ao colectivo de músicos que o acompanha. Resultado?
Aquilo que funciona numa sala mais pequena, no meio de quem lhe reconhece essa forma peculiar de estar, ali num ambiente mais disperso acaba por perder-se um pouco, ainda por cima quando o som esteve longe de ser o mais adequado. As canções são excelentes, sejam as referentes ao último álbum, Poison Season (2017), ou aos anteriores, com destaque para Kaputt (2011), e que bem soube ouvir canções como Chinatown ou o tema-título Kaputt, por exemplo. Em formato pop electrónica jazzística ou em momentos mais rock o colectivo mostra grande competência. Mas ali faltou o brilho extra capaz de conquistar quem não estava previamente conquistado.
No final da noite, depois de um salto para ver a energia de um dos projectos portugueses mais estimulantes da actualidade, os Ermo, na Garagem da Epal, todas as atenções viradas para os Orelha Negra, que estrearam um novo espectáculo visual, no seguimento da edição, em Setembro, do terceiro álbum homónimo. E não vacilaram, com um concerto de uma eficácia a toda a prova, com o som robusto, físico e impactante, assente na bateria marcada de Fred Ferreira e no baixo de Francisco Rebelo, nas fantasias sonoras libertadas por Sam The Kid ou por Cruzfader no gira-discos e pelos teclados de João Gomes.
A nova e ambiciosa componente cénica, com as luzes e as imagens dispostas por detrás dos músicos, só veio reforçar ainda mais a ideia de que, na actualidade, os Orelha Negra são uma das formações mais sólidas a prestar contas em palcos portugueses. Em festivais ou em nome próprio, em salas pequenas ou para grandes multidões, a sua música prevalece sempre. O que não era de todo o mais previsível quando começaram há um par de anos com música instrumental quase sempre instrumental filiada no corte-e-costura do hip-hop.
O primeiro dia do festival havia começado com uma demonstração de vitalidade da cultura hip-hop e todos os seus afluentes e foi assim que também terminou. Pelo menos o festival de alguns, porque como já se percebeu todos podem construir o seu próprio festival no Vodafone Mexefest, que termina este sábado com nomes como Cigarettes After Sex, Aldous Harding, Julia Holter, Everything Everything, Halloween, Liars, Moullinex ou Sevdaliza.