Não ao decreto-lei do cinema
Está em marcha uma deriva sem precedentes no modo como o Estado português encara o apoio ao cinema.
Há cerca de oito meses, o Governo português recuava na intenção de promulgar um decreto-lei para o cinema que gerara enorme contestação. Ganhara forma numa carta internacional dirigida ao primeiro-ministro, na qual os subscritores — centenas de realizadores, produtores, técnicos, programadores de festivais e dirigentes de institutos culturais em todo o mundo — pediam ao Governo português para reconsiderar a decisão de transferir a responsabilidade do Estado na escolha dos júris dos concursos públicos de apoio ao cinema para um organismo de aconselhamento ao Ministério da Cultura, a SECA, reunindo representantes dos interesses privados no setor (associações de classe, televisões privadas, operadores de telecomunicações...). Apesar da relativa discrição com que a carta foi divulgada na opinião pública e de um maioritário alheamento das elites políticas, não tenho memória de um protesto de tamanha extensão e relevância contra uma intervenção governativa em Portugal na área da Cultura. Obrigado a entrar em campo após a paralisia política do Ministério da Cultura, o primeiro-ministro prometeu “reatar o diálogo com o sector” de modo a chegar a nova redação do decreto-lei.
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Há cerca de oito meses, o Governo português recuava na intenção de promulgar um decreto-lei para o cinema que gerara enorme contestação. Ganhara forma numa carta internacional dirigida ao primeiro-ministro, na qual os subscritores — centenas de realizadores, produtores, técnicos, programadores de festivais e dirigentes de institutos culturais em todo o mundo — pediam ao Governo português para reconsiderar a decisão de transferir a responsabilidade do Estado na escolha dos júris dos concursos públicos de apoio ao cinema para um organismo de aconselhamento ao Ministério da Cultura, a SECA, reunindo representantes dos interesses privados no setor (associações de classe, televisões privadas, operadores de telecomunicações...). Apesar da relativa discrição com que a carta foi divulgada na opinião pública e de um maioritário alheamento das elites políticas, não tenho memória de um protesto de tamanha extensão e relevância contra uma intervenção governativa em Portugal na área da Cultura. Obrigado a entrar em campo após a paralisia política do Ministério da Cultura, o primeiro-ministro prometeu “reatar o diálogo com o sector” de modo a chegar a nova redação do decreto-lei.
Passado este tempo e sem que tivesse existido qualquer reatamento do diálogo, eis que é apresentada a nova redação do decreto-lei, entrando desde já em circuito legislativo para promulgação em Diário da República. Sobre a questão da nomeação dos júris dos concursos, o novo decreto introduz nuances: a SECA propõe nomes de júris e o ICA compõe as listas para os concursos que a SECA deverá aprovar; caso não exista consenso, o ICA reserva para si a decisão final (podendo retirar das listas nomes incompatíveis com os critérios de idoneidade e mérito cultural exigidos pelos regulamentos mas demasiadas vezes ignorados pela SECA, considerando o número exorbitante de substituições de júris nos concursos deste ano...).
Ou seja, o Governo continua a considerar válido e enriquecedor submeter-se a propostas de entidades diretamente interessadas no resultado desses concursos. Para definir políticas públicas na área do cinema, o Ministério da Cultura em Portugal fica obrigado por lei a ouvir o que têm a dizer as televisões privadas e as empresas de telecomunicações. Não creio que seja necessário grande conhecimento na área para perceber como esta peregrina ideia do Estado português assusta a Europa do cinema...
Continua a manter-se, portanto, o problema de fundo. Em fevereiro, estava sobre a mesa uma proposta legislativa onde o ICA se desresponsabilizava e promovia a auto-regulação. Tornava-se no improvável CEO de uma assembleia de improváveis acionistas, acreditando que o interesse público coincidia com interesses privados de “beneficiários” e “financiadores” (no dizer original do ministro da Cultura). Agora torna-se na mesmíssima coisa acrescentando apenas ao seu papel eminentemente passivo a possibilidade de uma decisão final em caso de impasse.
No fundo, o que este Governo faz é efetivar uma deriva começada na anterior legislatura, transformando “contribuintes” em “financiadores”. Antes disso, e durante décadas, as televisões privadas e restantes contribuintes designados por sucessivas leis do cinema não recebiam qualquer contrapartida por isso. Nessa altura — há cinco anos atrás! —, tal seria considerado uma descabida ingerência na política cultural do Estado. Televisões e operadoras eram contribuintes do cinema por opção política do Estado português que, desonerando-se de o fazer diretamente através do Orçamento, os designou para tal por beneficiarem de licenças para operar em mercados fechados ligados ao audiovisual. Tal como cada contribuinte não tem direito de decidir sobre políticas públicas (exceto votar nas legislativas) — ou nomear júris de concursos públicos —, não cabia na cabeça de ninguém que Nos, Meo, SIC ou TVI pudessem fazê-lo apenas por estarem designados pela lei como os contribuintes do cinema.
Esta ingerência promovida pelo Ministério da Cultura é, portanto, uma novidade — e não uma inevitabilidade atemporal — que me espanta tanto quanto deverá espantar os signatários da carta internacional. Resulta de uma opção política de um governo minoritário do PS apoiado no Parlamento pelo BE e pelo PCP. Se este decreto-lei entrar em vigor, serão estes os responsáveis — ativos ou passivos — por uma deriva sem precedentes no modo como o Estado português passa a encarar a natureza e o papel da sua intervenção no apoio ao cinema.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico