Orelhas nos olhos
Há já pelo menos três gerações habituadas às depredações do MP3. O pior é ver vídeos no YouTube e ficar com a ideia que se ouviu música. Essa ideia destrói tudo.
Primeiro ouvíamos a música. Observávamos a capa e contracapa do disco até espremer todo o sentido que tinham e não tinham. Os olhos, a bem ver, nada faziam. Ouvíamos. Tirávamos as letras, decifrando palavras e inventando outras. Ouvíamos.
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Primeiro ouvíamos a música. Observávamos a capa e contracapa do disco até espremer todo o sentido que tinham e não tinham. Os olhos, a bem ver, nada faziam. Ouvíamos. Tirávamos as letras, decifrando palavras e inventando outras. Ouvíamos.
Depois apareceram os videoclips e o apocalipse começou a adivinhar-se. "Já ouviste?" transformou-se em "já viste?" e as cassetes áudio, obsessivamente gravadas da rádio, foram substituídas pelas cassetes vídeo, mecanicamente gravadas da televisão.
Havia clips giros com músicas fatelas e clips fatelas com músicas giras: a confusão estava lançada. A qualidade do som foi-se tornando cada vez pior, do FM estéreo para o som abafado e frenético dos televisores dos anos 80.
Não parecia que as coisas pudessem piorar. Mas pioraram. Hoje é no YouTube que a maioria das pessoas ouve música — ou, melhor, músicas. Os ouvidos, que eram preponderantes durante a idade do vinil, foram forçados a fingir que não se importavam de ser usados como meros furos auditivos, aceitando desportivamente a maior porcaria de som que já existiu — não só comprimido como mutilado.
O Spotify e quejandos até têm um som aceitável mas ouvidos a partir do telemóvel mais-valia não se terem preocupado. A ganância da música de borla, à custa dos músicos e dos engenheiros de som, deu nisto: a cavalo dado não se olha o dente.
Há já pelo menos três gerações habituadas às depredações do MP3. O pior é ver vídeos no YouTube e ficar com a ideia que se ouviu música. Essa ideia destrói tudo.