Uma outra Angola, antes que as máscaras desapareçam
Entre preservar e transformar um inesgotável património performativo, (Des)construções traz-nos uma dança contemporânea de expressão angolana e um lado de Angola do qual pouco se sabe.
Um grande plano mostra um rosto de pele suada a reluzir sob uma coroa feérica. Sacode o corpo envolto numa garrida farpela de cetim e rendas, na cadência de batuques e vocalizações ininteligíveis. A câmara recua, e identificamos em fundo os arranha-céus que pontuam a larga marginal de Luanda apinhada de gente que assiste ao desfile do Carnaval, a mais icónica festa popular da capital angolana. No cortejo, a nobreza sincrética de “reis” e “rainhas” seguidos pelo buliçoso séquito de “enfermeiras” e coloridas “varinas” ombreia com pequenas majorettes de sainha negra, blusa e luvas brancas, o “comandante” a marcar poses e ritmos por entre passos de semba.
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Um grande plano mostra um rosto de pele suada a reluzir sob uma coroa feérica. Sacode o corpo envolto numa garrida farpela de cetim e rendas, na cadência de batuques e vocalizações ininteligíveis. A câmara recua, e identificamos em fundo os arranha-céus que pontuam a larga marginal de Luanda apinhada de gente que assiste ao desfile do Carnaval, a mais icónica festa popular da capital angolana. No cortejo, a nobreza sincrética de “reis” e “rainhas” seguidos pelo buliçoso séquito de “enfermeiras” e coloridas “varinas” ombreia com pequenas majorettes de sainha negra, blusa e luvas brancas, o “comandante” a marcar poses e ritmos por entre passos de semba.
Uma breve projecção de dez minutos faz o prólogo de (Des)construção, coreografia da angolana Mónica Anapaz para a Companhia de Dança Contemporânea de Angola (CDCA), fundada e dirigida pela bailarina-coreógrafa e investigadora angolana Ana Clara Guerra Marques desde 1991.
Esta é uma das raríssimas ocasiões de ver o colectivo por cá, desta quinta-feira a sábado (21h30), e domingo (17h), no Teatro da Comuna, espaço também arredado dos circuitos habituais da dança em Lisboa. Paisagens Propícias (Teatro Camões, 2013), belíssima coreografia de Rui Lopes Graça para a CDCA, inspirada no fascínio da obra de Ruy Duarte de Carvalho pela cultura pastoril kuvale do Namibe (sudoeste de Angola), integrou a lista da melhor dança do ano no PÚBLICO.
O filme de abertura é um curioso périplo por sons e imagens sobrepostos, de danças tradicionais e costumes de regiões etnolinguísticas, de Cabinda ao Cunene, das Lundas e do Moxico ao mar: as máscaras cokwe, os ritos iniciáticos, as fantasmagóricas faces de madeira a rodopiar envoltas em folhas de bananeira, o Carnaval, ou a elegância estilizada da rebita, dança de salão da burguesia urbana assimilada do tempo colonial, que perdura até hoje. A banda sonora do vídeo mistura arquivos etnomusicológicos da Rádio Nacional de Angola à textura contemporânea dos corais de Paul Hilier, gera contrastes a convocar outras leituras sobre o património performativo. A métrica repetitiva tradicional, por exemplo, evidencia afinidades com a música minimal ocidental, e o quanto de transcultural existe na arte contemporânea.
“Ao abrir a peça neste registo quisemos expor as premissas de onde partimos: mostrar apontamentos das danças patrimoniais no seu contexto — hoje quase ignoradas em cidades como Luanda — para que se perceba a liberdade criativa com que explorámos contrastes e recombinámos matrizes de distintas origens”, diz-nos Guerra Marques desde Luanda.
“A nossa herança performativa está sujeita à natural erosão do tempo mas, também, à descaracterização acelerada pela deslocalização dos grupos etnolinguísticos durante a guerra civil e pelas migrações para os babilónicos musseques das periferias urbanas.” O Carnaval, acontecimento importante em Luanda, Lobito ou Benguela desde o tempo colonial, mantém a matriz satírica e as suas figuras tradicionais, foi sendo contaminado por imagens globais e pela mudança das mentalidades, de que é significativo, num contexto particularmente heteronormativo, o nicho LGBT.
Guerra Marques convidou os mestres de danças Domingos (do Carnaval de Luanda) e João Mulunzeno (dos cokwe das Lundas), com quem ela mesma as aprendeu, para trabalhar com os sete bailarinos da Companhia — todos homens, porque “ a energia dos seus corpos é interessante na dança”, o que radica em parte no facto de, ao contrário da Europa, tais competências masculinas serem social e culturalmente valorizadas.
E levou para os ensaios vídeos com recolhas de outras regiões. Cada intérprete estudaria os padrões de movimentos específicos, para depois os abrir a outras leituras. Desagregar e reelaborar esses padrões foi o desafio proposto a Anapaz, ex-bailarina da CDCA, que vive entre França e Angola e, desde 1999, faz caminho próprio na dança contemporânea em Luanda. “Processei aqueles padrões no meu próprio corpo, e reconstruí-os numa sequência de ambientes e linhas energéticas, num todo mais abstracto. O trabalho da Ana Clara tende a ser mais teatral”, recorda Anapaz.
“A Mónica é muito dançante, tem um movimento ondulante peculiar que sai de segmentos do corpo. É bastante feminino, e isso exige dos bailarinos”, acrescenta Guerra Marques. Anapaz precisou, então, de associar uma dimensão feminina (Rossana Monteiro) à peça.
Guerra Marques iniciou estudos de dança académica em Luanda. Tinha apenas 15 anos quando, durante as convulsões pós-independência, lhe foi confiada a direcção da Escola de Dança do Ministério da Cultura. Mas essa recordação não suplantará a daquele dia, na Luanda dos anos 1980: assistia a um ensaio com grupos de dança regionais e ao aproximar-se de um bailarino mascarado foi bruscamente impedida: “Não vás, porque as mulheres não se podem aproximar deles. Batem e podem até matar-nos.”
A figura mascarada era um mukixi. Deslumbrada com o aparatoso e aterrador enigma contido num só sujeito performático, o tema tornou-se desde então um eterno objecto de interesse etnocoreológico e base do seu trabalho artístico e académico. O episódio é narrado, em jeito de introdução, no seu último livro, Mascaras Cokwe. A Linguagem Coreográfica de Mwana Phow e Cihongo, lançado na segunda-feira em Lisboa. Versa o trabalho de campo nas Lundas e no Moxico, onde estudou o papel das máscaras na sustentação de uma memória colectiva.
Desde a sua fundação, a CDCA pugna por uma dança contemporânea de expressão angolana. (Des)construção quer falar-nos de que é possível entrar e sair do inesgotável património performativo angolano como modo de o fazer perdurar. Valorizar tradições sem apenas as repetir ou cristalizar.
“Para essa função deveria existir uma companhia dedicada a fazer um ‘museu vivo’, bem alicerçada numa etnografia rigorosa”, defende Guerra Marques. Na Angola de hoje, sobretudo em Luanda e nas novas gerações, há um défice aflitivo de conhecimento sobre a cultura patrimonial. Vive-se no presente e numa sobreexposição do corpo, intrincada num quotidiano caótico e difícil e nas gritantes assimetrias sociais; ambiente a um tempo conservador e licencioso, propício à demagogia identitária ligada à exaltação de uma corporeidade étnica esvaziada dos seus valores intrínsecos, que a cultura global e as tecnologias exponenciam. Isso vê-se nas práticas descontextualizadas e adulteradas das danças tradicionais e também na actual febre das danças recreativas urbanas.
Por isso é interessante a peça reencontrar-se com a velha rebita, numa possível genealogia da kizomba (tornada, não sem polémicas, “marca angolana”), que será também aqui revisitada e ressignificada. Na mesma linha, o figurino do artista plástico angolano Nuno Guimarães (ex-bailarino e assistente de direcção da CDCA) depura indumentárias tradicionais que se justapõem ao urbano casual, e o eclectismo da banda sonora. O vídeo inicial é essencial para sublinhar de onde se partiu e o que se quis deliberadamente refazer.
Atravessaram as turbulências da guerra civil mas só a perseverança da pequena equipa tem permitido à CDCA sobreviver quase sem apoios (que recebeu, recentemente, do Banco de Fomento de Angola, e da TAAG, para a digressão) numa Angola onde circular dentro pode ser mais difícil do que ir ao estrangeiro. Há um público fiel, entre jovens e sectores instruídos da população, e a colaboração de nomes destacados da literatura e artes plásticas angolanas. Mas, também, um statu quo que reage pavlovianamente ao que possa — ainda que remotamente — ser conotado ao legado colonial ou à influência europeia. Há duas semanas, porém, a já veterana companhia foi finalmente agraciada com o Prémio Nacional de Cultura e Artes do Governo de Angola.
Além das complexas dinâmicas locais, houve também o tempo em que a hegemonia da dança contemporânea europeia, as expectativas dos seus mercados e aliciantes circuitos condicionaram a criação africana. “Essa etapa trouxe uma visibilidade porventura necessária num certo momento. Mas creio que já passámos a outro patamar”, conclui Guerra Marques. Árdua tarefa, a de descobrir os interstícios num caminho minado. Mas, afinal, as distintas heranças culturais pertencem a todos, e os angolanos processarão as suas à sua maneira. Talvez assim as máscaras não morram.