A admirável ilha do amor de Björk
Se Vulnicura simbolizava a desesperança do fim, Utopia representa um novo capítulo. Um glorioso renascimento.
Há alturas em que estamos tão focados em nós próprios que os acontecimentos do mundo exterior nos passam ao lado. Por exemplo, em momentos dolorosos. De repente é como se toda a nossa energia se concentrasse num aspecto preciso da realidade interior (uma separação amorosa, a morte de alguém próximo ou qualquer outra situação gravosa ou conflituosa) e nada do que acontece à volta parece interessar.
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Há alturas em que estamos tão focados em nós próprios que os acontecimentos do mundo exterior nos passam ao lado. Por exemplo, em momentos dolorosos. De repente é como se toda a nossa energia se concentrasse num aspecto preciso da realidade interior (uma separação amorosa, a morte de alguém próximo ou qualquer outra situação gravosa ou conflituosa) e nada do que acontece à volta parece interessar.
Dir-se-ia que a islandesa Björk passou por uma dessas situações aquando da gravação de Vulnicura (2015), uma espécie de retrato confessional que tinha como contexto a dissolução da sua ligação amorosa, de dez anos, com o artista plástico americano Matthew Barney, transposta para uma dissonante e comovente sonoridade orquestral.
O novo álbum constituiu, em simultâneo, a superação dessa tristeza, mas ainda com traços dela, e um olhar renovado sobre a realidade à volta. Dir-se-ia que depois da catarse do amor a dois, Björk tem outra vez energia para se maravilhar com o mundo e criar um novo espaço de satisfação.
Onde o magnífico Vulnicura era matizado de cinzento, com horizontes claustrofóbicos e quartos de cortinas cerradas, Utopia procura a luz, o acreditar outra vez na transcendência e na possibilidade do amor. Não necessariamente o amor relacional, mas o universal ou espiritual, essa disponibilidade transbordante de afecto pelos outros, sejam eles pessoas, seres, plantas ou objectos. Mas não é apenas uma utopia de caracter mitológico, a possibilidade de criar um outro lugar de prazer, que lhe interessa. Existe também o ambiente pós-Trump e a responsabilidade de não ter apenas uma atitude reactiva, antes contrapor com alternativas e optimismo perante um opressivo clima sociopolítico conservador.
Na construção desse espaço utópico contou com a decisiva colaboração de Alexandro Ghersi, o jovem músico e produtor venezuelano Arca, que já estivera presente no disco anterior e que tem tido papel relevante na música dos últimos anos, com três álbuns a solo, e importantes colaborações (FKA Twigs, Kelela, Kanye West). Mais do que executante, foi um parceiro criativo e isso pressente-se nos espasmos electrónicos e nas sombras misteriosas que se desenham no horizonte sonoro dos temas.
Canções como Loss e Body memory ainda respiram do ambiente do álbum anterior, com a harpa, os ruídos electrónicos e a voz, no primeiro caso, a criarem um universo dramático, enquanto o segundo constituiu uma longa digressão de quase dez minutos que conta com um coro de 60 mulheres, criando um clima que tem tanto de solene como de catártico.
Segundo a própria, The gate é a canção de transição entre os dois discos, num álbum onde a maior parte dos temas respira exuberância, numa espécie de floresta mágica que nos é devolvida de forma palpável, física e luxuriante, feita de sons e vozes celestiais, com flautas, harpas, elementos electrónicos, sons de pássaros e melodiais celestiais. Por vezes a sua voz parece mais um instrumento, noutras é expressiva, respirando por entre estruturas e tempos que se vão transformando no espaço de um só tema.
Não é um álbum de canções pop. É um disco de envolvimentos, de ambientes e orquestrações minuciosas. Courtship, Saint ou Arisen my senses ainda parecem preservar um formato reconhecível, com os impulsos electrónicos e a fisicalidade do som das flautas coabitando, mas Blissing, Tabula rasa, Utopia ou Future forever parecem flutuar, sem gravidade, estendendo-se no espaço e tempo, até à quase abstracção.
Há cânticos lânguidos movendo-se pelos cliques maquinais e pela evanescente orquestra de flautas, revelando-nos uma planeta repleto de vida. É música à flor da pele a que nos é devolvida, conseguindo ser tão discreta como de impacto certeiro, feita de composições complexas trabalhadas minuciosamente pela informática musical. É uma odisseia musical planante, feita de harmonias tão medievais quanto futuristas, onde paira a voz, o seu instrumento mais reconhecível, restituindo-nos uma utopia ecológica, uma ilha preservada dos desastres humanos.
Se as orquestrações eram centrais em Vulnicura, da mesma forma que o era a voz humana em Medulla (2004) ou os microrganismos electrónicos em Vespertine (2001), ao nono álbum é a flauta que tem grande protagonismo. O resultado final é soberbo. Se Vulnicura simbolizava a desesperança do fim. Utopia representa um novo capítulo. Um glorioso renascimento.