Por que continuamos fascinados por um homicida pop como Charles Manson?
Morreu aos 83 anos e esteve 45 anos preso pelo assassínio de nove pessoas. É um dos principais suspeitos da morte do espírito dos anos 60. O culto de Manson vive até hoje nos livros, na música, no cinema e na imaginação popular. A sua história é uma história de Hollywood.
Charles Manson é um assassino com créditos no IMDB. Isso, só por si, ajuda a definir a figura do homem que morreu segunda-feira aos 83 anos dividido entre o título de homicida e de figura de duvidosa atracção da cultura popular – ou da cultura pulp. A sua história é a de terríveis crimes americanos, mas também a dos heróis e vilões da contracultura dos anos 1960 e 70 e de um músico falhado obcecado com o estrelato. E do rasto que tudo isso deixou, a persistência da sua memória no que se escreveu, cantou, contou ou filmou nas últimas décadas, e que o inscreveu não só como protagonista, mas também como autor, numa base de dados mundial de filmes e TV (o IMDB, claro).
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Charles Manson é um assassino com créditos no IMDB. Isso, só por si, ajuda a definir a figura do homem que morreu segunda-feira aos 83 anos dividido entre o título de homicida e de figura de duvidosa atracção da cultura popular – ou da cultura pulp. A sua história é a de terríveis crimes americanos, mas também a dos heróis e vilões da contracultura dos anos 1960 e 70 e de um músico falhado obcecado com o estrelato. E do rasto que tudo isso deixou, a persistência da sua memória no que se escreveu, cantou, contou ou filmou nas últimas décadas, e que o inscreveu não só como protagonista, mas também como autor, numa base de dados mundial de filmes e TV (o IMDB, claro).
O seu podia ser um exemplo de como os assassinos esmagam as suas vítimas até ao fim – o nome de Charles Manson, glorificado pelos media, quase apaga os dos que morreram às suas mãos ou a seu mando. Mas como uma das suas vítimas foi a actriz Sharon Tate Polanski, grávida de oito meses e meio do cineasta Roman Polanski, esse factor foi diminuído. A história de Manson tornou-se também parte da história de uma actriz e de um realizador maldito, primeiro sintoma do seu impacto na cultura popular. E era essa a vida que Manson sempre quis ter, o mundo onde quis logo estar quando, em 1967, saiu da prisão onde tinha já passado grande parte da sua jovem vida directamente para a morada do psicadelismo - Haight-Ashbury, São Francisco. Mesmo a tempo, como notam muitos dos textos sobre ele escritos, do Verão do Amor.
Charles Manson nasce no Ohio, filho de uma adolescente de 16 anos. Nunca conhece o pai e cresce com dificuldades várias, entre as quais ler e escrever correctamente. Com a mãe presa ou simplesmente ausente, anda de reformatório em reformatório e, já pré-adolescente, começa a cometer crimes mais graves, como assaltos à mão armada. Sai de uma pena de seis anos para São Francisco, onde, com a sua guitarra e do alto do seu 1,57m, começa a reunir à sua volta alguns jovens. Queria ser músico, idolatrava os Beatles. Contudo, a sua Beatlemania era outra. Acreditava ouvir nos seus discos mensagens que preconizavam um apocalipse racial cujo final o teria como líder, escondido no Death Valley - os negros, incapazes de se organizarem sozinhos, procurá-lo-iam, acreditava.
O culto da Família Manson formalizar-se-ia numa comuna no rancho Spahn, um antigo local de filmagens dos westerns dos anos 1950 no condado de Los Angeles. Os jovens, e em particular as jovens, segui-lo-iam naquela comuna onde se consumiam drogas psicadélicas, onde o sexo era livre – sobretudo para Manson e o seu séquito de admiradoras – e onde, como a escritora Emma Cline contou em 2014 na Paris Review, primeiro comiam os cães, depois as raparigas.
“Ele conseguiu explorar a subcultura hippie de forma brilhante”, disse à BBC Daniel Kane, professor de Literatura e Cultura Americana da Universidade de Sussex. “Turn on, tune in, drop out”, como propusera Timothy Leary em 1966, viver sob as suas próprias condições e contra o establishment, libertar práticas e morais, expandir a consciência ao mesmo tempo que fervilhavam a luta pelos direitos civis, as tensões raciais e a oposição jovem à Guerra do Vietname. “Manson pegou em todos esses signos – LSD, música, amor livre, vidas comunitárias – e reenquadrou-os como ferramentas para o homicídio de massas apocalíptico.”
Era um misógino racista infiltrado na contracultura, que tanto acolhia bandos de motociclistas e subjugava jovens raparigas quanto tentava que o Beach Boy Dennis Wilson o ajudasse a ter uma carreira musical. Ao ordenar os crimes Tate-LaBianca – façam “something witchy”, dissera aos seus seguidores – teria não a honra de trabalhar com o filho de Doris Day, o produtor musical Terry Melcher (antigo dono da casa onde Sharon Tate e amigos seriam violentamente assassinados), mas a de pôr fim ao sonho dos sixties.
O fim abrupto dos Sixties
“Púnhamos Lay Lady Lay no gira-discos, e Suzanne”, relata Joan Didion no incontornável ensaio The White Album em que tanto se vê o sonho, quanto o lado negro da contracultura. “Imaginava que a minha própria vida era simples e doce, e às vezes era, mas havia coisas estranhas a circular pela cidade. Havia rumores. Havia histórias. Tudo era indizível mas nada era inimaginável. Este flirt místico com a ideia de ‘pecado’ – essa sensação de que era possível ir ‘demasiado longe’ e que muitas pessoas estavam a fazê-lo – isso estava basicamente connosco em Los Angeles em 1968 e 1969. Uma tensão vertiginosa sedutora e demente estava num crescendo na comunidade.”
Depois de ter vivido em Sunset Boulevard na casa de Dennis Wilson, o crédulo baterista dos Beach Boys que conhecera quando pedia boleia com membros da Família, Manson conseguira ser apresentado a algumas pessoas da cena musical. Neil Young, lembrou o jornal The Guardian em 2001, recomendara mesmo que a Warner editasse Manson. A filha de 14 anos de Angela Lansbury, a detective amadora de Crime, Disse Ela, dava-se com a Família e até tinha um bilhete da mãe para garantir que estava autorizada a andar de carro com Manson. Ele ia ser “maior do que os Beatles”, sonhava, os mesmos que eternizava em colagens, com os rostos de John, Paul, Ringo e George a encabeçar imagens de pequenos pandas. Até o seu acusador, o procurador Vincent Bugliosi, chegou a admitir à revista Rolling Stone, em 2012, que ele tinha “uma aura. ‘Vibes’, como os miúdos lhe chamavam nos 60s. Onde quer que ele fosse, os miúdos gravitavam em torno dele”.
Na noite de 8 de Agosto de 1969, os membros da Família Manson Tex Watson,Susan Atkins, Linda Kasabian e Patricia Krenwinkel rumaram a 1050 Cielo Drive, a casa de Terry Melcher agora ocupada por Roman Polanski, que estava em Londres naquele dia, e Sharon Tate, grávida de oito meses e meio, acompanhada por amigos – o cabeleireiro Jay Sebring, o casal de namorados Abigail Folger e Wojciech Frykowski, e o jovem Steven Parent. Manson queria apressar a guerra racial que acreditava ser preconizada pelo tema Helter skelter, dos Beatles, mandando os seus seguidores escrever a sangue palavras como “porco”, “rise” [ergam-se] ou letras do White Album dos mesmos Beatles nas paredes – a ideia era incriminar os activistas negros dos Black Panthers e gerar motins raciais. “Destruam totalmente toda a gente [na casa], da forma mais horrenda que puderem.”
No dia 9, Didion e amigos souberam do crime. “Lembro-me de forma muito clara de toda a desinformação do dia, e também me lembro disto, e gostava de não me lembrar: lembro-me de que ninguém estava surpreendido.” A ensaísta escreve no volume de ensaios The White Album sobre o seu tempo com os Doors, com Janis Joplin ou sobre os confrontos nas universidades e os problemas raciais. “Muitas pessoas que eu conheço em Los Angeles acreditam que os Sixties acabaram abruptamente a 9 de Agosto de 1969, acabaram no exacto momento em que a história dos assassínios em Cielo Drive viajou através da comunidade como fogo em palha, e num certo sentido isto é verdade. A tensão quebrou naquele dia. A paranóia estava cumprida.”
No dia seguinte, o epílogo seria o duplo homicídio de Rosemary e Leno LaBianca em Waverly Drive, com alguns dos atacantes de Sharon Tate e com a companhia do próprio Manson ou de outra acólita, Leslie Van Houten. Ali, Krenwinkel escreveu com erro ortográfico “Healter Skelter” na porta do frigorífico – uma imagem em que se tropeça hoje no site de partilha de imagens Pinterest, por exemplo. Os contornos do crime tornaram-se tristemente famosos, nomeadamente as mais de 130 facadas desferidas sobre as vítimas nas duas casas.
Entretanto, os anos 1960 ainda não tinham bem acabado. Escassos dias depois dos crimes, entre 15 e 18 de Agosto, o Festival de Woodstock fazia história. Manson ainda não era infame. Polanski escreveu na sua autobiografia que, na altura, quando a polícia lhe disse suspeitar de Manson, disse: “Isso é só o vosso preconceito anti-hippie”. Suspeitava sim de John Phillips, dos Mamas and the Papas, porque o realizador tinha tido um caso fugaz com a mulher do músico. Como recuperava o Guardian em 2016, a Rolling Stone esteve quase a coroá-lo como herói do movimento. “Vi o caso Manson como uma luta pela vida da própria contracultura – um dos nossos estava a ser martirizado, as nossas crenças mais queridas estavam a ser arrasadas pelo establishment cínico e seus lacaios, a Polícia de Los Angeles”, admitia David Dalton, jornalista que o entrevistou e pernoitou, com a mulher, no rancho da Família após as acusações. Depois viu as fotos do local do crime e identificou sinais e pistas dados por Manson.
Em Outubro, Atkins fora presa por roubo de automóvel e gabou-se dos crimes às reclusas. Foi o princípio do fim da Família. A 6 de Dezembro, depois de meses de paranóia californiana, o Festival de Altamont começava na Califórnia, uma série de concertos que ficou marcada pela violência e por ser também outra candidata ao título de “momento simbólico do fim de uma era”. Charles Manson foi a julgamento em Abril de 1970.
Como lembra a Rolling Stone, “o julgamento tornou-se um espectáculo em si”. Manson gravou um X na testa contra o tratamento da polícia, que depois evoluiria para uma suástica; as suas seguidoras prontamente repetiram o gesto do X; membros da Família acamparam à porta do tribunal durante semanas em vigília – uma delas, Squeaky Fromme, tentaria matar o Presidente Gerald Ford quatro anos depois. Manson, Atkins, Krenwinkel e Van Houten foram considerados culpados de conspirar para cometer homicídio; Manson, Atkins e Krenwinkel eram também culpados de sete acusações de homicídio e Van Houten de duas. Todos acabaram condenados à morte, mas viram a pena comutada para perpétua - Krenwinkel é hoje a reclusa há mais tempo presa nos EUA. Manson foi ainda considerado culpado de dois outros homicídios, motivados por negócios com drogas.
O reflexo do (nosso) mal
“Não sou mais do que o reflexo do mal que atravessa a mente de todas as pessoas que criaram o monstro e que continuam a forçar o mito a miúdos que não sabem muito”, escreveu Manson nas suas memórias, Manson in His Own Words (1987). É apenas um dos muitos livros, filmes, séries ou podcasts que se debruçaram sobre ele, com ou sem o seu contributo. “A sorte de Manson foi que tantas das suas patologias encaixavam tão bem nos tempos”, escrevia Hadley Freeman no ano passado no Guardian, analisando porque é que no Verão dos 47 anos do massacre Manson tanta da cultura popular estava encantada, ainda e novamente, com ele.
O romance sensação de então, As Raparigas, de Emma Cline, é sobre uma adolescente que integra a Família. Na mesma altura, Alison Umminger editou American Girls, sobre uma outra adolescente, mas dos dias de hoje, fascinada com os crimes de Manson. Em 2015, o podcast You Must Remember This duplicou a audiência quando fez uma temporada sobre Manson. “Talvez mais do que tudo, a história de Charles Manson é uma história de Hollywood”, diz a autora Karina Longworth. E é uma história de desilusão, uma Califórnia sombria após os seus crimes, como a que descreveu Thomas Pynchon em Vício Intrínseco (2009).
O fascínio dura desde o julgamento – o best seller sobre o tema é Helter Skelter (1974), assinado pelo procurador Vincent Bugliosi e pelo escritor Curt Gentry. O primeiro crédito de Manson no IMDB é logo de 1973, “as himself” no documentário Manson, o primeiro de mais de 20 sobre esta figura que alastrou pela cultura, dos telefilmes desde os anos 1970 até a um musical alemão (Charles Manson: Summer of Hate – The Musical) e a uma ópera que subiu ao palco no Lincoln Center de Nova Iorque em 1990. “As pessoas esquecem-se que os cultos não são só grupos marginais. A América é um culto”, dizia o seu autor, John Moran, ao New York Times. Os assassinos e suas histórias também. As t-shirts e posters com o rosto de Manson são só um exemplo da sua mercantilização.
Charles Manson queria ser músico. Os Beach Boys lá gravaram Never Learn not to love, originalmente escrita por Manson como Cease to exist, sem o creditar. Ele lançou dois álbuns da prisão e os seus poucos temas foram gravados não só por Marilyn Manson - o nome escolhido por Brian Warner para o seu nome artístico, um símbolo do lado solar, outro do lunar da cultura americana -, pelos Guns N’ Roses ou por Brian Jonestown Massacre, mas também pelos Lemonheads ou Devendra Banhart. Isto além do álbum gravado pelo próprio culto, as Family Jams (1977), em que Manson não aparece mas que tem várias músicas creditadas. Linda Kasabian, membro da Família que foi vigia e não activa no crime Tate, é a origem do nome da banda britânica Kasabian, tributo como o feito pelos Spahn Ranch. Manson e o fascínio que gera vivem nas letras dos Black Sabbath, dos Ramones, dos System of a Down e dos NWA, ou na incursão dos Sonic Youth por Death Valley 69. A série de animação South Park desejou Merry Christmas Charlie Manson! e David Duchovny foi estrela da série de TV sobre Manson, Aquarius (2015-16). O próximo filme de Quentin Tarantino é sobre 1969 e Charles Manson paira sobre ele.
Porquê? Fama, estrelato e violência. “De uma perspectiva sociológica, [o serial killer] oferece um escape seguro para os nossos pensamentos, sentimentos e ímpetos mais negros”, escreve Scott Bonn, professor de Criminologia e autor de Why We Love Serial Killers. E “as histórias das suas atrocidades nas notícias e nos meios de entretenimento são viciantes”, defende. No fundo, “precisamos deles”. Ou, como avisa Joan Didion na primeira linha de The White Album, “contamos histórias a nós próprios para viver”.