Canções, mentiras e barba. No Coliseu, Father John Misty falou para todos

No Coliseu de Lisboa, o norte-americano mostrou ter a canção certa para cada ocasião. Houve grandes temas – amor, Deus, morte – e frivolidade rock. O povo adorou, ele reagiu: “Isto é incrível”.

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Havia um cartaz no público e Joshua Tillman quis lê-lo. O papel tinha uma proposta: a setlist (a folha mágica que reúne o alinhamento de canções que formam um concerto) ou um toque na barba, na barba dele, Joshua Tillman. A setlist ficou no palco e dali não saiu, mas a barba deslocou-se ao encontro do fã. "É tudo o que imaginavas?”, perguntou o músico. Mais tarde, remataria a temática, mordaz: “Tu nem aprecias a música, és só um fetichista de barbas.”

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Havia um cartaz no público e Joshua Tillman quis lê-lo. O papel tinha uma proposta: a setlist (a folha mágica que reúne o alinhamento de canções que formam um concerto) ou um toque na barba, na barba dele, Joshua Tillman. A setlist ficou no palco e dali não saiu, mas a barba deslocou-se ao encontro do fã. "É tudo o que imaginavas?”, perguntou o músico. Mais tarde, remataria a temática, mordaz: “Tu nem aprecias a música, és só um fetichista de barbas.”

Joshua Tillman não é um bardo triste de barba frondosa, não é um melancólico autor, não é alma torturada. É um entertainer literato (de barba frondosa, certo), alguém que, de uma penada, soube transformar-se em rei de palco. A transformação é assinalável, provou mais uma vez na noite de segunda-feira, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, perante uma sala cheia. “Isto é incrível. Que raio!”, diria o norte-americano a partir do palco, numa reacção ao clamor popular.

Com três álbuns como Father John Misty, Tillman, de 36 anos, ocupa um lugar na primeira liga do pop rock independente. Fez por isso: tocou com os Fleet Foxes e gente como Damien Jurado, produziu discos, lançou oito obscuros discos como J. Tillman. Foi, porém, preciso rebaptizar-se Father John Misty (um nome construído ao acaso para inventar uma personagem) e libertar a sua música dos espartilhos da folk para chegar a um público maior. Assim foi, assim é: ao concerto compareceram jovens sub-20, veteranos indie, pais de família e uma jovem que documentava – em todas as redes sociais, em fotografia e em vídeo, em diferido e em directo – cada emoção, cada arrepio.

Sociologia de pacotilha à parte, Father John Misty sabe falar para todos. Ao longo de duas horas, com passagens pelos seus três álbuns, mostrou ter uma canção para cada ocasião. When the god of love returns there'll be hell to pay, do álbum editado este ano, Pure Comedy, pôs uma melodia circular de piano ao serviço de uma balada sobre o que haverá para ver quando Deus “voltar”. “And we say it's just human, human nature/ This place is savage and unjust”, canta ele, com o universo ao fundo posto num pano gigante, e com ele parecem concordar quase quatro mil pessoas. “Oh, my Lord! Listen!”, gritará, depois. O momento é intenso, mas Tillman trata de desfazer o drama. Faz o mesmo em Bored in the USA, outra balada, rosário de crises e neuras (os risos enlatados que entram quando Tillman canta “Oh, they gave me a useless education/ And a subprime loan” acentuam o absurdo e o tédio que pode ser a vida moderna).

Autêntico, eu?

Uma canção para cada ocasião, dizíamos, (pelo menos) uma frase certeira para cada canção. Eis Father John Misty a falar do amor como poucos (“I wanna take you in the kitchen/ Lift up your wedding dress someone was probably murdered in” em Chateau lobby #4, que sofreu com a falta do belíssimo trompete mariachi guardado em disco); eis Father John Misty, já não mais o certinho e espartano J. Tillman, a assumir todos os pecados (“You see me as I am, it's true/ Aimless, fake drifter, and the horny man-child momma's boy to boot”) num lovers rock pleno de carne; eis Father John Misty a olhar para os romances intermediados por aparelhos digitais (“When can we talk/ With the face/ Instead of using all these strange devices?”) enquanto o corpo se balança levado pela pop electrónica de True affection – no Coliseu, o exercício soou ainda mais roubado às utopias tecnológicas dos anos 80; ei-lo a rejeitar o cinismo em Holy shit (“Maybe love is just an economy based on resource scarcity/ What I fail to see is what that’s got to do with you and me”).

Joshua Tillman faz canções com evidente pontaria – dir-se-ia que tem uma rara capacidade de enfiar o sound bite ou a frase mortal no sítio e momento certos, características que o aproximam de um publicitário ou de um comediante. Se a folk que o finado J. Tillman praticava valoriza a autenticidade, a arte de Father John Misty manda-a às urtigas. “Há algo de inatamente falso na performance”, confessou, este ano, à New Yorker. “Quero ser autenticamente falso em vez de falsamente autêntico.”

“Estou à espera de o ver a rebolar no palco, como vi em Paredes de Coura”, dizia alguém no público, antes do início do concerto. Aconteceu isso e mais: aconteceram mil e uma coisas que o Tillman que fazia folk ensimesmada provavelmente não imaginaria vir a fazer num palco – como atirar uma guitarra acústica para um roadie com plena confiança de que o instrumento não se estatelará no chão (o que seria ruidoso e dispendioso); ajoelhar-se como se fosse um pastor gospel tomado pelo rock’n’roll; praticar gestos obscenos enquanto canta o “fuck the world” de I love you, honeybear, canção açucarada por guitarras, perlimpimpins e mil-folhas de sentimentalismo, ainda mais excessiva ao vivo, com aquele andamento trôpego de guitarras; e o já citado episódio da barba, literalmente comédia pura.

Antes de Father John Misty, Natalie Mering mostrou como fez de Weyes Blood uma máquina do tempo. Há na música da norte-americana uma austeridade quase litúrgica, com ecos do revivalismo folk inglês dos anos 1970 e do psicadelismo expansivo que se fazia do outro lado do Atlântico. Música que levita (como Do you need my love, maravilha de velhos sons de teclados e deliciosos e ascendentes “pa pa pa pa” no refrão) e que merecia ser ouvida num palco tão grande como o do Coliseu.