Os artesãos (ainda) estão no centro histórico
Mais de metade dos 125 artesãos lisboetas inscritos na Rede de Artes e Ofícios estão nas freguesias do centro histórico. Mas já há casos de jovens artífices cujo crescimento da actividade e o preço das rendas em Lisboa obrigaram à saída para oficinas fora da capital.
É no quarto transformado em atelier com vista para o Rio Tejo, na zona de Xabregas, que Alessandra Romani relembra que a cerâmica entrou na sua vida de forma gradual. Quando já trabalhava como designer de interiores, no início dos anos 2000, fez um curso, depois outro, e mais tarde teve um atelier com outras colegas onde praticavam a produção de peças em cerâmica. Entretanto, vieram os filhos, apaixonou-se pelo surf e tudo ficou em pausa por alguns anos. Até ir a uma exposição de pintura na Gulbenkian.
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É no quarto transformado em atelier com vista para o Rio Tejo, na zona de Xabregas, que Alessandra Romani relembra que a cerâmica entrou na sua vida de forma gradual. Quando já trabalhava como designer de interiores, no início dos anos 2000, fez um curso, depois outro, e mais tarde teve um atelier com outras colegas onde praticavam a produção de peças em cerâmica. Entretanto, vieram os filhos, apaixonou-se pelo surf e tudo ficou em pausa por alguns anos. Até ir a uma exposição de pintura na Gulbenkian.
Foi a partir daí, em 2014, que Alessandra decidiu dedicar-se a tempo inteiro a este ofício, com o objectivo de recriar objectos presentes em pinturas – essencialmente de artistas associados ao Cubismo.
No pequeno espaço onde trabalha, estão algumas das suas peças. São a materialização de objectos pintados por Picasso, Braque, Matisse, Amadeu de Souza Cardoso, entre outros. Como “não são coisas reais, é fascinante trazer isso para a realidade”, diz Alessandra.
O plano da ceramista, cujo espaço de trabalho é um quarto na casa da mãe, é ter um atelier próprio. Mas por enquanto essa transição ainda não é possível “porque é caro”, justifica.
A tipografia reinventada
Também a poucos metros do Tejo, mas do outro lado da cidade, em Santos, Luís Henriques, um dos responsáveis pela associação cultural O Homem do Saco, dá conta da “pressão” feita por alguns agentes imobiliários que querem informação sobre casas disponíveis para venda ou para arrendamento naquela zona.
O espaço ocupado pela associação é um rés-do-chão numa zona recolhida da Avenida Dom Carlos I. Essa configuração “não é muito boa como loja, mas estarmos recolhidos até é uma vantagem porque este é um espaço de oficina”, atesta Luís Henriques.
Na O Homem do Saco, a tipografia já não é levada a cabo pelos artesãos tradicionais, que começaram na profissão ainda crianças. Em vez disso, um grupo de dez pessoas interessadas em impressão reúne-se ali para fazer este tipo de trabalhos e partilhar ideias.
As formações profissionais são quase tão diversas quanto o número de pessoas envolvidas. Há um osteopata, um matemático e uma historiadora de arte dentro deste grupo. São todos “biscateiros”, no sentido em que esta não é a sua única fonte de rendimento. Estas pessoas com um espírito “entre o amador e o profissional” são muito diferentes “das pessoas que praticaram o ofício durante anos a fio”.
Nesta oficina, “pegamos nos materiais e tiramos proveito dos erros”. Luís explica que “não estamos preocupados com a aplicação da regra correcta”. Mas apesar da “mutação” em relação aos processos e técnicas originais, “há um lastro histórico que aparece”. “Nós gostamos bastante da marca material e, por isso, permitimo-nos brincadeiras que são pouco ortodoxas do ponto de vista de uma impressão mais cuidada.”
Sair de Lisboa para crescer
O crescimento da actividade de Joris Lacombe, da Boato, e de Tiago Garcia, da Craftwood, obrigou os responsáveis pelos dois projectos a sair do centro de Lisboa onde tinham as suas oficinas.
Joris, natural de França, era engenheiro mas a rotina numa grande unidade fabril não lhe agradava. Decidiu “mudar de vida” e optou pela marcenaria e carpintaria. Foi num dos cursos que fez na Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, uma das instituições que se dedica ao ensino destes ofícios, que conheceu o sócio, um professor de espanhol que também tinha outras ambições. Foi assim que iniciariam actividade num rés-do-chão no Bairro Santos. Mas a “má configuração” do espaço e o facto de se localizar num prédio residencial, limitava as horas de trabalho e dificultava a execução de trabalhos maiores.
Com o tempo, a necessidade de encontrar um novo espaço tornou-se inadiável. Ainda procuraram no centro de Lisboa, mas Joris recorda que “é um negócio que ocupa bastante espaço”, pelo que o preço das rendas para uma oficina de 200 metros quadrados na cidade era um “problema”. Assim, mudaram-se para a Margem Sul. Actualmente, os constrangimentos da distância parecem ter sido ultrapassados. “Comunicamos através das redes sociais e, quando é necessário, vamos a casa dos clientes”, explica o carpinteiro.
Na Craftwood, onde dois jovens se dedicam à conservação e restauro de mobiliário e arte sacra, a mudança foi necessária pelas mesmas razões. A empresa de conservação e restauro surgiu pelas mãos de Tiago Garcia, de 30 anos, e do seu sócio Igor Fonseca. Ainda antes de saírem do curso de Conservação e Restauro de Madeiras, da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, já faziam trabalhos de restauro e, passado algum tempo, decidiram criar a marca e abrir empresa.
Tudo era feito a partir de um pequeno espaço na Rua do Machadinho que rapidamente se tornou insuficiente. Assim, a partida para fora da cidade também se tornou inevitável. “Ainda tentei perceber se tínhamos margem para um sítio ali no Marquês de Pombal, mas era uma renda de três ou quatro mil euros”, lembra Tiago Garcia.
Contudo, esta não será uma solução definitiva para os jovens artesãos. “Ainda vivemos dos clientes que temos em carteira e do boca a boca”, por isso, regressar à capital, nem que seja com uma pequena loja, é um dos objectivos para o futuro.
O saber antigo
“Reclames luminosos”. É o que se lê em grandes letras vermelhas pintadas na porta do número 6B da Rua Diogo do Couto, a poucas centenas de metros da estação de Santa Apolónia. Lá dentro, Jorge Neves faz o que fez a vida toda. Trabalha tubos de vidro para lhes dar forma de letras ou objectos e depois aplica os passos necessários para que se iluminem com a cor pretendida. Parece fácil, tendo em conta a agilidade com que o vidreiro molda a letra A, mas aos 69 anos, Jorge tem mais de 50 neste ofício. Começou aos 12 como aprendiz numa empresa lisboeta especializada na produção de néones e nunca mais parou.
Foi aí que Jorge Neves conheceu o seu actual patrão, António Reis. O electricista veio do Fundão aos 13 anos para aprender a profissão e hoje é o dono do único espaço, segundo o próprio, que produz néones em Lisboa. António ainda teve uma empresa e mais uma oficina que funcionava ali perto, mas o espaço da Rua Diogo do Couto é tudo o que resta desse tempo.
Os clientes dividem-se entre os donos de restaurantes antigos que há muitos anos operam na zona da Baixa e os jovens empresários e artistas que estão a começar a interessar-se por esta arte. “Hoje em dia, os principais clientes são esta gente nova”, conta António Reis enquanto mostra no telemóvel fotografias do trabalho feito recentemente para a exposição da artista e ilustradora Wasted Rita, na galeria Underdogs. Entre o portefólio contam-se ainda novos restaurantes, bares e hostels da Baixa lisboeta.
Apesar do sucesso entre os jovens, o futuro da actividade parece estar em risco. É difícil dominar o ofício e há poucos interessados. O genro de António Reis é a esperança da continuidade do negócio. Mas ainda está a aprender.
Mais adiante, num quarto andar da Rua dos Douradores, Mário Ferreira dedica-se à relojoaria. Aos nove anos, recebeu do avô um relógio de sol que ainda hoje tem exposto junto de outros exemplares na sua pequena loja. Aos 15, veio sozinho de Santarém para aprender esta arte. Além da obrigatória passagem pela tropa, na forma de ida ao "Ultramar", Mário Ferreira sempre se dedicou à reparação de relógios. Foi trabalhando em várias ourivesarias até assentar no espaço próprio, há cerca de dez anos. A sua vida profissional foi quase toda passada em ourivesarias da Baixa de Lisboa, onde “está o que resta das profissões antigas”, conta.
Da rua para a rede
Apesar das diferenças há algo em comum entre estes artesãos. Todos podem ser encontrados na plataforma da Rede de Artes e Ofícios. O projecto, desenvolvido em 2016 por duas arquitectas lisboetas, Lucinda Correia e Ana Jara, tem como objectivo inventariar todos os artesãos da cidade (segundo um conjunto de critérios) e disponibilizar os seus contactos e localização a quem precisar destes serviços. No total, 125 ofícios espalhados pela cidade estão inscritos na rede. Só nas freguesias que compõem o centro histórico – Penha de França, Campo de Ourique, Estrela, Misericórdia, Santa Maria Maior e São Vicente – são 70. A Câmara Municipal de Lisboa foi questionada quanto à existência de dados oficiais sobre o número de artesãos lisboetas, mas o PÚBLICO não obteve resposta.
A missão das arquitectas é “regenerar a cidade a partir de dentro”. Afirmam que não têm uma perspectiva “conservadora”, mas avisam que a regeneração do centro histórico “precisa” destes ofícios.
O projecto, financiado pelo programa BIP/ZIP – para os Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária em Lisboa, promovido pela Câmara Municipal de Lisboa –, não é o primeiro das arquitectas. Em 2013, começaram por mapear as carpintarias e marcenarias existentes na cidade. Rapidamente se aperceberam que era preciso “criar algo mais abrangente” e assim surgiu a rede. Em breve vão fazer algo semelhante, mas para todos os construtores civis.
“Não há arte sem ofício”
Quando as arquitectas pensaram o projecto “este tipo de trabalho inscrevia-se numa condição social de trabalhadores manuais, que no nosso país não eram muito valorizados”. Hoje já não é bem assim. Um dos aspectos positivos que adveio da criação das duas redes foi “um maior conhecimento sobre estas áreas”. Lucinda Correia diz que “as pessoas estão mais sensíveis” ao trabalho dos artesãos.
Por sua vez, o director do Instituto de Artes e Ofícios da Universidade Autónoma, João Pancada Correia, olha para as mudanças nesta área da perspectiva do ensino. “As pessoas mais novas que estão a dedicar-se ao ofício estão a fazê-lo de forma mais sistemática e escolar”, diz o arquitecto e pintor. Com o desaparecimento gradual dos artesãos tradicionais “perde-se imenso”, mas é algo “temporário”.
Quanto ao turismo, João Pancada Correia não o vê como um inimigo no espaço que estes artesãos podem ocupar. Acredita antes que “vai potenciar o artesanato em Lisboa”. Entretanto, é necessário continuar a investir no ensino destas profissões, defende. Até porque “não há arte sem ofício”.