Uma reflexão sobre os incêndios florestais de 2017

O problema dos incêndios florestais está longe de ser um problema de espécies florestais ou de mera gestão de espaços. No nosso país é, antes de mais, um problema de pessoas. Infelizmente estas estão colocadas, ostensivamente, fora do sistema.

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Portugal sofreu no ano de 2017 a maior devastação de que existe registo no âmbito dos incêndios florestais em um só ano. Embora o desempenho do país não tenha sido muito positivo ao longo das décadas passadas, no confronto com outros países e com situações comparáveis, os incêndios que percorreram o Centro e Norte de Portugal neste ano constituíram um absoluto choque e uma chamada de atenção para toda a sociedade. A perda de mais de 115 vidas, a devastação de cerca de 500 mil ha, a destruição de centenas de casas, instalações industriais e empresariais, com o leque de efeitos sociais, ambientais e económicos que trouxe, parece que finalmente despertou a sociedade para a relevância do problema dos incêndios florestais.

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Portugal sofreu no ano de 2017 a maior devastação de que existe registo no âmbito dos incêndios florestais em um só ano. Embora o desempenho do país não tenha sido muito positivo ao longo das décadas passadas, no confronto com outros países e com situações comparáveis, os incêndios que percorreram o Centro e Norte de Portugal neste ano constituíram um absoluto choque e uma chamada de atenção para toda a sociedade. A perda de mais de 115 vidas, a devastação de cerca de 500 mil ha, a destruição de centenas de casas, instalações industriais e empresariais, com o leque de efeitos sociais, ambientais e económicos que trouxe, parece que finalmente despertou a sociedade para a relevância do problema dos incêndios florestais.

Todos sentimos que o propósito de “nunca mais”, formulado em várias ocasiões anteriores, tem de ser levado mesmo a sério, agora mais do que nunca. O país já teve outras chamadas de atenção, nos anos de 2003, 2005 e 2013, mas, como se pode verificar, apenas se ficou a meio caminho, na tomada de consciência, na mudança de comportamentos e de atitudes e na adoção de medidas eficazes. Perdeu-se muito tempo, pactuando com o desleixo e com a negligência, que conduziu o nosso país a esta situação calamitosa. O país está indignado e certamente não deixará de prestar uma atenção continuada a este assunto nos tempos futuros, e de retirar dele consequências políticas também. Conforme foi dito, já se perdeu muito tempo e não podemos senão adotar as medidas certas, sem perder mais tempo com experimentações ou medidas irrealistas.   

Ao comentar esta tragédia, em mais do que uma ocasião, disse que “falhámos todos”. Nesta expressão começo por me incluir pessoalmente, pois sinto que falhei no meu propósito de chamar a atenção de quem de direito para a importância do problema e no desenvolvimento de soluções que permitissem, ao menos, minimizar as tragédias pessoais que sofremos. Mas incluo também, de uma forma geral, todos os cidadãos, porque se trata de uma questão que envolve toda a sociedade. Ninguém se pode colocar fora do problema e, menos ainda, julgar os outros, porque terá certamente deixado algo por fazer. Se não, não teríamos sofrido esta tragédia.

O país está chocado e indignado, mas já não bastam os sentimentos. Temos de passar à ação. Como cientista que há mais de 30 anos procura ter uma intervenção na temática dos incêndios, o modo mais adequado que encontro para manifestar a minha indignação é o de contribuir com o meu trabalho e o do meu centro de investigação, para o seu estudo e compreensão.

Para além da investigação científica, como cidadão, procuro ter também uma intervenção cívica, que me tem levado a colaborar, com espírito aberto, com uma crítica construtiva e leal, com todos os Governos que tenho conhecido, independentemente da sua cor política, e com todas as instituições envolvidas na gestão do problema dos incêndios florestais.

Por esse motivo aceitei, com a minha equipa, o encargo do Governo para produzir um Relatório sobre o Incêndio de Pedrógão Grande, que se encontra publicado parcialmente (https://www.portugal.gov.pt/pt/gc21/comunicacao/documento#o-complexo-de-incendios-de-pedrogao-grande-e-concelhos-limitrofes-iniciado-a-17-de-junho-de-2017). Neste relatório apresentamos os factos tal como se nos depararam e procurámos retirar lições, para que não se repitam as perdas que aquele incêndio teve. Infelizmente, a divulgação de algumas destas lições não foi feita a tempo de evitar, ao menos em parte, a tragédia que sofremos em 15 de outubro. 

O relatório que a minha equipa produziu baseia-se num extenso trabalho de campo, desenvolvido por uma equipa de 14 especialistas, muitos deles com longos anos de experiência de investigação nesta área e de realização de estudos semelhantes. Contém uma análise detalhada das condições meteorológicas, da origem e do comportamento do fogo, das perdas humanas e do impacto do incêndio nas comunidades. Infelizmente, não foi ainda tornado público o capítulo 6, que trata das perdas humanas, que é por sinal um dos mais extensos do relatório, no qual se relatam, de modo anónimo, cada um dos acidentes que causaram as 65 vítimas mortais e algumas das cerca de duas centenas de feridos. Neste relatório é apontada como causa provável dos incêndios principais a falta de manutenção da faixa de proteção de uma linha elétrica existente nos locais de origem dos mesmos.

Indicámos que, para além de todos os fatores circunstanciais que se encontram associados ao incêndio e que potenciaram a sua gravidade, está a deficiente governação do país, que ao longo de dezenas de anos tem vindo a negligenciar o problema do mundo rural e em particular da sua proteção em relação aos incêndios. Ao longo dos anos, temos vindo a chamar a atenção das autoridades para a necessidade de modificar este estado de coisas, a denunciar a inoperância de algumas entidades, a ineficácia de muita legislação e propondo medidas para correção do rumo.

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Quem me tiver ouvido, em especial nos últimos anos, poderá lembrar-se de que sempre defendi que o sistema de defesa da floresta contra os incêndios (SNDCIF), assente nos três pilares estatais da ANPC, do ICNF e da GNR, é desadequado. Em minha opinião, falta um quarto pilar, que designo por “População”, que deveria envolver toda a sociedade, para além das entidades estatais. Envolveria antes de mais a população, que tem sido marginalizada do problema e das tentativas de solução. Engloba igualmente as autarquias, as empresas, a comunidade científica e tantas outras instituições que, como agora se vê claramente, querem dar o seu contributo, mas não sabem como, porque têm sido deixadas à margem do sistema e se encontram desorganizadas.

Sempre disse que se o Estado persistir em tentar vencer esta “guerra”, apenas com a força das suas instituições, não o conseguirá. Um dos seus pilares, a ANPC, que prestou serviços muito meritórios ao país, encontra-se nesta altura fragilizado, injustamente, mas também por demérito próprio. Outro pilar, o ICNF, tem-se mostrado frouxo desde há vários anos, com uma desfocagem e afastamento crescentes, relativamente o problema dos incêndios florestais. A GNR, que está há pouco mais de dez anos no sistema, mercê de uma excelente liderança e organização de que dispõe, tem-se mostrado ser o pilar mais consistente e com um leque de funções mais diversificado no dispositivo.

Quanto ao “quarto pilar”, está quase tudo por fazer. É o mais difícil, mas é também o mais importante. O problema dos incêndios florestais está longe de ser um problema de espécies florestais ou de mera gestão de espaços. No nosso país é, antes de mais, um problema de pessoas. Infelizmente estas estão colocadas, ostensivamente, fora do sistema.

No passado dia 21 de outubro, realizou-se um Conselho de Ministros dedicado a analisar o problema dos incêndios florestais e a aprovar um conjunto de medidas legais, para dar um sinal ao país de que havia a intenção de passar das palavras aos atos. Por muita preparação que pudesse ter havido, para fazer estas propostas, era para mim óbvio que faltou tempo para se refletir o suficiente, para se reunir consensos e juntar as forças para que pudesse sair uma reforma profunda e consequente. Como é compreensível, uma boa parte das medidas poderiam ter sido postas em prática há muito tempo, sem ter de se alterar o sistema vigente. Apenas se pergunta porque não se puseram em prática antes.

O conjunto das medidas visa essencialmente os três pilares do Estado e o reforço de verbas. Não se vislumbra uma única medida de fundo destinada a envolver a população, a apoiar as pessoas, a contribuir para melhorar a sua situação, as suas condições de vida e a sua segurança e para as preparar melhor para enfrentar estas situações.

Passarei a comentar algumas das medidas anunciadas, utilizando para tal extratos do discurso do primeiro-ministro efetuado no final do Conselho de Ministros, reservando para uma situação mais oportuna um comentário mais aprofundado sobre algumas das medidas.

1. Neste discurso refere-se que se pretende “aproximar a prevenção e o combate aos incêndios rurais, nomeadamente dando mais centralidade à área de Governo da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, no processo”.

A prevenção e o combate são apenas duas das faces do problema mais vasto que é o da gestão dos incêndios florestais, que envolve, entre outros aspetos, a preparação das comunidades, a prevenção estrutural, a preparação imediata, o combate e a reabilitação. De que aproximação se está a falar? O que quer dizer “dar mais centralidade aos ministérios da Agricultura ou do Ambiente? Quem foi que afastou estes ministérios do processo? Que foi que os impediu de estar mais centrados e de contribuírem para a solução? O que fizeram ao longo dos anos passados? Em minha opinião, estes e outros ministérios, e várias outras entidades públicas e privadas, têm de se centrar mais na realidade de que existem incêndios florestais em Portugal, coisa que parece não terem tido presente nos passados 20 anos, pelo menos, agindo como se nada se passasse.

2. Diz-se que “é preciso reforçar o profissionalismo em todo o sistema, com um papel alargado do apoio militar de emergência, no patrulhamento, no apoio logístico, no rescaldo e nas capacidades de apoio à decisão da engenharia militar”.

Concordo com o aumento do profissionalismo, mas tem de se avaliar bem o custo dessa medida. Até que ponto pode o nosso país ir? Concordo igualmente com um papel mais interventivo das Forças Armadas, mas com a devida preparação e igualmente com uma ponderação da relação custo/benefício dessa intervenção. Mas pergunto: onde está o apoio à sociedade civil? O que se vai fazer para apoiar, por exemplo, as comunidades e as forças locais de proteção civil?

3. É dito que “será confiada à Força Aérea a gestão e operação dos meios aéreos, quer do Estado quer contratados”.

Concordo com a aquisição de meios próprios, incluindo meios pesados, que se encontra implícita nesta medida. Parece-me bem haver uma maior intervenção da Força Aérea, desde que não haja incompatibilidade entre a finalidade e missão das Forças Armadas e a disponibilidade de recursos humanos e materiais, que se requer para os incêndios florestais, e os custos sejam comportáveis para o país. Oxalá se assegurem, desde o início, mecanismos de transparência e de avaliação nos processos de utilização destes recursos, tendo em conta os elevados custos que comportam.

4. Diz-se que “vai ser retomada a expansão das companhias dos GIPS da GNR”.

Acho muito bem esta medida, mas pergunto: o que se vai fazer com a Força Especial de Bombeiros e com os bombeiros em geral? Não se vai apoiar a sua expansão e qualificação? Como se irão articular as FEB e os GIPS no território do país?

5. Defende-se que “vai ser reforçada a capacitação e profissionalismo entre os bombeiros voluntários, criando em cada associação de bombeiros, nas zonas de maior risco, equipas profissionais formadas na Escola Nacional de Bombeiros, que será integrada no sistema formal de ensino como uma escola profissional”.

Concordo com uma maior profissionalização dos bombeiros, não apenas nas zonas de maior risco, mas em todo o país, pois os bombeiros podem ser chamados a intervir em qualquer ponto do território.

Deve, ainda assim, continuar a apoiar-se e a fomentar o voluntariado, que constitui um valor inestimável do nosso sistema de socorro.

A ENB deveria ser reformulada de modo profundo, mas não é este o lugar próprio para abordar este assunto.

6. Recomenda-se que “esta profissionalização passe por que o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas e a ANPC vejam reforçados os seus meios e a ANPC seja institucionalizada com um quadro próprio de profissionais, com dirigentes designados por concurso”.

Custa a crer que seja precisa nova legislação para se colocar estas medidas em prática. Concordo com o reconhecimento implícito de que estas duas instituições não dispõem de recursos humanos qualificados e em número suficiente para fazer face ao problema dos incêndios florestais. Mas onde se irão buscar esses recursos e onde se irão qualificar? Em minha opinião, os agentes de Proteção Civil e os bombeiros em particular deveriam ter uma Academia de Proteção Civil, equiparada a um instituto universitário, tal como sucede nas Forças Armadas e na Polícia.

7. Propõe-se que “a capacitação destas instituições passe por maior incorporação de conhecimento, com a criação de uma linha de apoio à investigação e reforço da componente de formação nos institutos politécnicos”.

Não posso deixar de aplaudir o reconhecimento da necessidade de se incorporar mais conhecimento e formação em todo o problema da gestão dos incêndios florestais. Pergunto no entanto de que conhecimento se trata e de fazer notar que a instituição a que pertenço tem vindo a produzir conhecimento em diversas áreas relevantes e a fazer a transferência desses conhecimentos para o sector operacional desde há vários anos.

Aplaudo igualmente a criação de uma linha de apoio à investigação científica, de uma forma regular e continuada. Tendo já sido publicado um diploma sobre este assunto, tenciono debruçar-me sobre ele, com mais detalhe, noutro lugar.

É surpreendente a medida de “reforço da componente formativa nos institutos politécnicos”. Por que razão não se incluem, de forma explicita, também as universidades no processo?

8. Refere-se que “a especialização progressiva, sem prejuízo da unidade de comando, entre o combate aos incêndios rurais e a proteção de pessoas e bens e das povoações, desenvolvendo capacidades próprias das brigadas de prevenção do ICNF, dos GIPS e dos Canarinhos, para se concentrarem na missão de combater os incêndios rurais”.

A proposta contida nesta medida constitui, em minha opinião, um erro estratégico, que já constava da proposta de plano que resultou do trabalho de um Grupo criado pela APIF (Agência para a Prevenção dos Incêndios Florestais), em 2004, com a finalidade de reformar o sistema. Em boa hora esta medida não foi acolhida e surpreende-me que volte a surgir, sem que tenha sido feito qualquer esforço para mostrar a sua validade desde então, quando noutros países se está a abandonar esta filosofia de separar o combate aos incêndios rurais do da defesa das habitações e das pessoas.

Atualmente o país dispõe de Corpos de Bombeiros que estão formados, treinados e equipados e possuem experiência e provas dadas no combate, tanto em incêndios urbanos como em florestais e para prestar socorro diferenciado às pessoas. Vai-se dispensar esta capacidade, para criar uma outra entidade, com capacidades semelhantes ou com metade delas? Os bombeiros apenas não combatem o fogo na floresta e dão prioridade às casas quando já não existem condições para combater o fogo na floresta. Será nessas condições que os “bombeiros florestais” vão entrar em ação?

Quais são as “brigadas de prevenção do ICNF”, que são mencionadas na medida? Serão porventura as equipas de sapadores florestais? Se assim for, por que razão durante todos estes anos o ICNF não aproveitou essa força, a organizou, equipou, treinou, estruturou e utilizou? É agora que o vai fazer? Ou será que as centenas de novas equipas que estão anunciadas irão ser mais do mesmo?

9. Por fim recomenda-se que “as equipas de intervenção permanente dos bombeiros voluntários serão vocacionadas, cada vez mais, para a mais nobre missão de proteger a vida das pessoas, as povoações e os bens, permitindo otimizar o conhecimento de cada um para todos podermos ter melhor segurança”.

Esta medida é um corolário do erro contido na anterior.

Como se pode qualificar de “a mais nobre missão” como sendo a de proteger a vida das pessoas, as povoações e os bens? Então a missão dos outros combatentes “especializados” não é tão nobre? Parece que não se compreende que são aspetos distintos do mesmo combate, mas que não carece de forças distintas? Uma vez mais pergunto, onde está o conhecimento nesta área, no sector do ICNF, que contribua para a melhor segurança de todos?

Professor do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra. O autor segue o Acordo Ortográfico