Leite: ainda há esperança nos documentários
Estamos a atravessar uma fase em que o leite é um “veneno”, mas os iogurtes e queijos frescos hiperproteicos batem recordes de vendas e a proteína do soro do leite (que aumenta muito mais a insulina e respectivos factores de crescimento) está nitidamente na moda.
Quando se anuncia a transmissão de um documentário sobre um tema tão fracturante como o leite na estação pública de televisão, espera-se sempre o pior, e o último caso sobre o colesterol foi exemplo disso. Felizmente, o documentário “Leite: Factos, Números e Crenças” é a prova de que é possível reduzir ao mínimo a parcialidade na abordagem a um assunto tão polémico.
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Quando se anuncia a transmissão de um documentário sobre um tema tão fracturante como o leite na estação pública de televisão, espera-se sempre o pior, e o último caso sobre o colesterol foi exemplo disso. Felizmente, o documentário “Leite: Factos, Números e Crenças” é a prova de que é possível reduzir ao mínimo a parcialidade na abordagem a um assunto tão polémico.
Analisando a argumentação dos intervenientes que estão “a favor” do leite e dos que estão “contra”, existem reparos a fazer a ambas as partes. Defender o leite alegando o seu efeito “simbólico” por ser o nosso primeiro alimento após o nascimento ou apenas basear-se nas recomendações de alguns institutos de saúde não é uma argumentação propriamente válida. Por exemplo, as recomendações existentes para a ingestão de proteína (0,8g/kg/dia) ou para a famosa regra dos 50% hidratos, 30% gordura, 20% proteína ainda perduram como sagradas para muitas instituições e não é por isso que estão devidamente actualizadas. Por isso, é sempre bom que se recomende ou desaconselhe a ingestão de algum alimento com base em dados científicos concretos. No outro pólo, a argumentação não é melhor. Dizer que “o leite como o conhecemos hoje tem pouco que ver com o original” ou que “o nosso estômago está habituado a digerir o leite e os lacticínios na sua forma original e não os lacticínios modernos porque ainda não tivemos tempo de nos adaptar aos novos desenvolvimentos implementados pela indústria alimentar” é uma mão-cheia de nada, pois não se concretiza cientificamente uma única acusação.
O que é em concreto não estar “habituado” a digerir o leite? Não nos adaptamos a que tipo de desenvolvimentos? É justamente a “moderna indústria do leite” (esta formulação é por norma utilizada para dar a ideia de que esta indústria nos quer “matar”) a responsável por hoje já existirem opções sem lactose para os intolerantes, ou por existirem iogurtes hiperproteicos, sem açúcar adicionado e sem gordura que concentram tudo aquilo que se quer nos lacticínios, ou seja, proteína de elevada qualidade e cálcio.
O resumo da evidência que temos disponível ao dia de hoje (e feita a partir da análise da ingestão de “leite moderno”) é perentória: “A ingestão de leite e lacticínios está associada a uma diminuição do risco de obesidade infantil. Em adultos, a ingestão de lacticínios melhora a composição corporal e facilita a perda de peso durante um processo de restrição calórica. Está também associada a uma diminuição do risco de diabetes tipo II e doença cardiovascular, particularmente AVC. Há evidência de um efeito positivo na densidade mineral óssea, mas ainda assim sem associação com a diminuição do risco de fractura. A ingestão de lacticínios está inversamente associada ao cancro colorrectal, bexiga, estômago e mama e não associado com risco aumentado do cancro do pâncreas, ovário, pulmão. A relação com o cancro da próstata é inconsistente. O consumo de lacticínios não está associado a um aumento do risco da mortalidade.” Relativamente à doença de Parkinson, que também foi abordada, é um facto que a ingestão de leite está associada a um aumento do risco, apesar de não se encontrar nenhum processo biológico que o justifique e até poder resultar do aumento do consumo destes alimentos após o diagnóstico da doença, daí que seja ainda muito cedo para ter grandes certezas nesta associação.
Quer isto dizer que toda a gente deve ingerir lacticínios? De todo. Apesar de os benefícios superarem largamente os riscos, trata-se de uma opção individual. Mas este artigo, mais do que falar novamente dos efeitos do leite na saúde, tem como principal objectivo desconstruir a argumentação que o tenta denegrir ou endeusar.
Neste documentário não se deu grande relevo à questão dos eventuais resíduos de antibióticos existentes no leite. Em primeiro lugar, é preciso dizer que ainda bem que existem antibióticos, pois mau era se ingeríssemos leite proveniente de vacas doentes. Os dados existentes quer a este nível quer na segurança microbiológica do leite são suficientes para deixar o consumidor descansado. Outros dados que foram lançados foi uma maior quantidade de proteína no leite actual, algo que (a ser verdade) é bom sinal, uma vez que esse é o seu principal benefício, e que o leite proveniente de explorações não biológicas acaba por ter menor quantidade de ómega 3. Este dado não constitui de todo um problema, até porque o leite se deseja magro. E, mesmo que tivesse ómega 3, a quantidade aportada no leite, nunca seria significativa, pois os efeitos benéficos dos ómega 3 situam-se numa ingestão de pelo menos 1000mg dia de EPA+DHA, algo que até nos leites enriquecidos com ácidos gordos, só se encontraria em 2 litros de leite.
Quanto às alergias, é verdade que a prevalência de alergia à proteína do leite de vaca tem vindo a aumentar e que a maior justificação pode não estar associada aos “modernos processos industriais”, mas eventualmente a uma introdução precoce do leite de vaca em idade pediátrica. Sendo esta uma questão extremamente individual, é a única situação onde de facto se pode utilizar a argumentação: “Acredite em mim porque acho que tenho razão e a minha experiência profissional ensinou-me que tenho razão.” Mas em boa verdade o leite não está sozinho na lista de alimentos potencialmente alergénios: 90% de todas as alergias alimentares são causadas por estes alimentos: ovos, leite, amendoins e outros frutos gordos, peixe, marisco, trigo e soja. Por norma não desaconselhamos “de olhos fechados” todos estes alimentos apenas pela probabilidade de uma reacção alérgica ser maior. Uma vez que o leite tem um padrão de consumo diário, é perfeitamente normal que quem possua uma intolerância à lactose ou alergia às proteínas do leite de vaca sinta grandes melhorias quando o deixa de consumir.
Estamos a atravessar uma fase em que o leite é um “veneno”, mas os iogurtes e queijos frescos hiperproteicos batem recordes de vendas e a proteína do soro do leite (que aumenta muito mais a insulina e respectivos factores de crescimento) está nitidamente na moda. Por isso, independentemente da escolha que cada um toma para a sua alimentação, a única coisa que se pede é coerência no discurso para não baralhar ainda mais a opinião pública. Caso não tenha nenhum fundamentalismo contra o leite e fique confuso com tanta informação, fica o conselho do costume: prefira os lacticínios fermentados magros (iogurte, queijo, kefir) nas versões com mais proteína e utilize a proteína do soro (whey) com critério quando lhe for conveniente e não consiga chegar a essa ingestão proteica com “alimentos”.
A rubrica Estar Bem encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO. O autor segue o Acordo Ortográfico