Viagem imersiva pelos terrenos e pelos poderes da arquitectura

Poder Arquitectura é a exposição que inaugurou este fim-de-semana a Casa da Arquitectura, em Matosinhos. É uma inquirição do estado desta disciplina no mundo, nas últimas duas décadas, no cruzamento dos poderes que ela concentra.

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Não é uma exposição convencional aquela que, esta sexta-feira, abriu a Casa da Arquitectura. É verdade que contém desenhos, plantas, maquetas, fotografias, vídeos instalações e objectos vários. Mas tem sobretudo um espaço aberto ao centro, que é um campo alargado de circulação e também de possibilidades de leitura das dezenas de projectos que fazem Poder Arquitectura, a exposição comissariada por Jorge Carvalho, Pedro Bandeira e Ricardo Carvalho (também crítico do PÚBLICO), que se apresenta como uma espécie de statement da ambição da instituição que, com sede em Matosinhos, ambiciona ser o Centro Português de Arquitectura.

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Não é uma exposição convencional aquela que, esta sexta-feira, abriu a Casa da Arquitectura. É verdade que contém desenhos, plantas, maquetas, fotografias, vídeos instalações e objectos vários. Mas tem sobretudo um espaço aberto ao centro, que é um campo alargado de circulação e também de possibilidades de leitura das dezenas de projectos que fazem Poder Arquitectura, a exposição comissariada por Jorge Carvalho, Pedro Bandeira e Ricardo Carvalho (também crítico do PÚBLICO), que se apresenta como uma espécie de statement da ambição da instituição que, com sede em Matosinhos, ambiciona ser o Centro Português de Arquitectura.

“A nossa exposição é, sem dúvida, uma primeira concretização do perfil e da ambição da Casa da Arquitectura, que, de algum modo, é aqui clarificada”, diz Jorge Carvalho a iniciar a visita guiada para o PÚBLICO. Mas esclarece que a equipa de curadores da exposição não quer ser “um altifalante” da instituição. “Como a Casa da Arquitectura não é uma instituição académica, nem um museu de artes, pensamos que hoje em dia, mesmo fora da arquitectura, existe um questionamento sobre o poder ou sobre a relação de cada um de nós com o poder”, acrescenta o curador, explicitando que “a arquitectura também tem de trabalhar, cada vez mais, com essas tensões”.

É assim que Poder Arquitectura abre com um vídeo de Bruno Figueiredo, de teor bastante abstracto, mas que “evoca a multiplicidade de relações e de intercepções” que marcam esta disciplina, nota Jorge Carvalho, que além de coordenador da equipa curatorial é também, com Teresa Novais (aNC Arquitectos), co-autor do projecto expositivo.

Mais à frente, a meio do percurso da exposição, uma instalação suspensa do tecto igualmente de Bruno Figueiredo, arquitecto e urbanista formado na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, representa numa forma poliédrica de 36 vértices e oito cores a polissemia e interdependência dos oito poderes equacionados.

Colectivo, regulador, tecnológico, económico, doméstico, cultural, mediático, ritual – são estes os oito poderes referenciados através de algumas dezenas de projectos arquitectónicos seleccionados pelos curadores e respigados um pouco por todo o mundo: da Europa ao Bangla Desh, do Sri Lanka ao Brasil, da Turquia aos Estados Unidos… e também de Portugal, representado em oito obras dentro de fronteiras e três de arquitectos portugueses na Europa.

“Interessa-nos mostrar que os poderes da arquitectura não são uma abstracção” – diz o curador –, antes representam os vários campos da sociedade em que esta disciplina está inserida. É assim, num ambiente imersivo e delimitado por um entorno de rede metálica – que, além de suporte prático para as peças da exposição, é também uma espécie de metáfora da rede que entrelaça os vários poderes –, que se percorre uma sucessão de projectos que traçam um mapa da arquitectura no mundo nas últimas duas décadas.

Circulação livre

Apesar de a exposição ter uma organização “propositadamente muito contínua”, diz Jorge Carvalho, a ordem da visita é mais ou menos aleatória, podendo-se começar pelo capítulo do poder colectivo, do lado esquerdo, ou pelo do poder ritual, à direita – ou mesmo circular livremente entre eles.

Abre, no poder colectivo, com o projecto Retiro Florestal Galkadawala, em Habarana, Sri Lanka (Vijitha Basnayaka, 2007), conjunto de habitações que propõem o regresso à natureza: “Se procura um lugar com televisão por cabo ou internet, deve fazê-lo noutro lado”, pode ler-se num dos textos. E destaca o Granby Four Streets (Assemble, 2011- em curso), projecto comunitário em Liverpool com o qual uma cooperativa, o Community Land Trust – “um pouco à imagem do projecto SAAL em Portugal”, nota o comissário –, impediu a utilização do espaço para simples investimento imobiliário, evitando também que a obra regenerada viesse cair numa gentrificação que obrigasse ao desalojamento da população local mais necessitada. “Há aqui uma relação com um poder que é institucional, o Community Land Trust, mas ao mesmo tempo é colectivo, já que envolveu também as pessoas no fabrico das casas”, nota o guia.

O posto fronteiriço de Mariposa, nos Estados Unidos (Jones Studio, 2014); o Terminal 2 do aeroporto de Colónia-Bona, na Alemanha (Helmut Jahn, 2000); e o recém-inaugurado Terminal de Cruzeiros de Lisboa (João Luís Carrilho da Graça, 2010- em curso) são obras que ilustram o poder regulador. “Tudo isto são portas; escolhemo-las porque elas são uma manifestação arquitectónica desse poder que institui a ordem pública e a segurança”, diz Jorge Carvalho, realçando, no caso do terminal de Carrilho da Graça, a ideia de abertura – com as varandas e o terraço – e também o cuidado com a integração paisagística na cidade envolvente.

A obra da Barragem do Tua (Eduardo Souto de Moura, 2012- em curso) está profusamente documentada em plantas, maquetas, fotografias, mas também notícias que mostram como este projecto foi acompanhado de grande polémica pública. É um caso que ilustra não apenas o poder tecnológico como quase todos os outros que são invocados na exposição. E mostra também como “um arquitecto pode afirmar o poder da arquitectura num meio que tradicionalmente é mais das engenharias”, diz o comissário.

De Roterdão a Istambul

O contraste não podia ser maior: de um lado, o complexo multifuncional (habitação, escritórios, hotel, restaurante, lojas) De Rotterdam (OMA, 2013), projectado pelo atelier do holandês Rem Koolhaas; do outro, um mercado de peixe nas ruas do bairro Besiktas, em Istambul (GAD Architecture, 2009). Ou seja, a cidade vertical, arquitectura-espelho do grande poder financeiro expresso nos gráficos da bolsa de Amesterdão, ultra-tecnológica, futurista, versus a pequena escala de uma arquitectura que trata da subsistência e ao mesmo tempo assegura a coesão social através de uma ponte que liga a uma estação – duas expressões de diferentes poderes económicos.  

Há uma ideia convencional de casa instituída pela história e pela tradição. Mas nem todas as casas têm de seguir o padrão IKEA. É isso o que mostra o arquitecto madrileno Andrés Jaque no seu filme Ikea Disobedients (que o MoMA de Nova Iorque adquiriu em 2012, quando o seu departamento de Arquitectura era dirigido por Pedro Gadanho) ao documentar utilizações atípicas do espaço doméstico por famílias não convencionais.

Mas as necessidades de alojamento social não são uma necessidade apenas dos países pobres de África, como na semana passada Francis Kéré testemunhou no Fórum do Futuro – em Los Angeles, a reintegração dos sem-abrigo é uma das questões prementes, e o projecto Star Apartments (Michael Maltzan, 2014) é um exemplo disso, e do modo como o poder doméstico está também a mudar os padrões de comportamento e de construção.

Na Casa da Arquitectura, o capítulo do poder cultural é o que ocupa mais espaço na fantástica nave central reconvertida pelo arquitecto Guilherme Machado Vaz e que acolhe a grande exposição de abertura. “A questão do património e da nova criação fez com que este capítulo se tivesse estendido mais do que os outros”, justifica Jorge Carvalho. E chama a atenção para o projecto de renovação do Astley Castle, em Warwickshire, Inglaterra (Witherford Watson Mann Architects, 2012), com que um colectivo de jovens arquitectos de Londres recuperou parcialmente um antigo solar em ruína, deixando também a sua marca nas zonas para as quais não havia dinheiro para intervir. Exemplo de “uma intervenção inteligente” tratando os espaços exteriores como se fossem interiores.

O PÚBLICO surge também citado em Poder Arquitectura, no capítulo relativo ao poder mediático, por via do livro que Pedro Gadanho dedicou ao trabalho do jornal nesta área, e que integrou a exposição Forma da Forma na Trienal de Arquitectura de Lisboa 2016. Com a inscrição “Press is more” e uma montagem de fotografias e publicações, encena-se a importância que os media vêm tendo na afirmação da arquitectura, nomeadamente na visibilidade que dá a projectos tão vistosos como a recém-inaugurada Ópera de Hamburgo (Herzog & de Meuron, 2003-17) ou tão necessários nos tempos de destempero ecológico que vivemos, como o Amager Ressource Center, em Copenhaga, Dinamarca (BIG – Bjarke Ingels Group, 2010- em curso), um centro de tratamento e aproveitamento de resíduos que é também um espaço de animação urbana (passeio público e pista de esqui na cobertura).

Poder Arquitectura termina com a atenção às arquitecturas religiosas destinadas às várias crenças, a demarcar o poder ritual. E faz uma curiosa ligação dos projectos da Igreja Anastasis, St. Jacques de la Lande, em Rennes, França (Álvaro Siza, 2009- em curso) e a mesquita Bait Ur Rouf, em Daca, capital do Bangla Desh (Marina Tabassum Architects, 2012). Ambas apresentam uma torção do espaço da assembleia relativamente ao invólucro do edifício, que resulta numa “dramatização” dos fluxos de entrada e de circulação dos fiéis. “Esta tensão resulta de um desenho menos monumental, mas que favorece a aproximação da experiência da fé de cada crente com o absoluto”, defende Jorge Carvalho.

No final da visita, o curador realça que “muitos destes poderes dão origem a tensões permanentes, que muitas vezes resultam em contrapoderes”, sempre com o arquitecto no centro desse remoinho. Assim, “poder e contrapoder coexistem na arquitectura, tal como na sociedade”, e o “grande poder da arquitectura é sonhar o inaceitável compromisso”, escrevem os três curadores no bem estruturado livro-catálogo que acompanha a exposição.

A história da arquitectura – que é algo com que lidamos (e habitamos) quotidianamente – também se faz com projectos como esta exposição em Matosinhos, e com a Casa da Arquitectura que a acolhe.