Os Simpsons têm um problema chamado Apu
The Problem With Apu é um novo documentário sobre a personagem indiana da série animada. Escrito e protagonizado por Hari Kondabolu, lida com os problemas da representação sul-asiática na cultura norte-americana. Vai para o ar este domingo nos Estados Unidos.
Em 2012, o cómico de stand-up Hari Kondabolu era argumentista de um entretanto defunto talk show nocturno, Totally Biased. Numa semana de Setembro desse ano, The Mindy Project, a recentemente finada sitcom de Mindy Kaling, estava prestes a estrear-se. Era a primeira vez que uma pessoa de origem indiana criava e protagonizava um programa do género. Kondabolu fez um segmento sobre o quão importante isso era.
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Em 2012, o cómico de stand-up Hari Kondabolu era argumentista de um entretanto defunto talk show nocturno, Totally Biased. Numa semana de Setembro desse ano, The Mindy Project, a recentemente finada sitcom de Mindy Kaling, estava prestes a estrear-se. Era a primeira vez que uma pessoa de origem indiana criava e protagonizava um programa do género. Kondabolu fez um segmento sobre o quão importante isso era.
Finalmente, dizia ele, havia "umas 14" pessoas de origem indiana no panorama mainstream norte-americano que ele nem precisava de gostar de alguém só por ser indiano. É, quando era novo, só havia Apu, o dono da loja de conveniência Kwik-E-Mart em Os Simpsons. O cómico referia-se ao sotaque da personagem, a quem é dada voz por Hank Azaria há 28 anos, assim: “um tipo branco a imitar um tipo branco a gozar com o meu pai”. Pelo menos, dizia, era melhor do que o que havia antes: os indianos de Indiana Jones e o Templo Perdido que comiam cérebro de macaco – algo que nenhum indiano faz.
Este ano, Kondabolu pegou na questão de Apu para fazer um documentário que passa no domingo nos Estados Unidos. Escrito e protagonizado por Kondabolu e com realização de Michael Melamedoff, The Problem with Apu passa na truTV, que não está disponível em Portugal – apesar disso, o canal costuma pôr no YouTube excertos significativos de programas como Adam Ruins Everything ou At Home With Amy Sedaris. Surge numa altura em que há ainda mais exemplos de pessoas de origem sul-asiática na televisão e cinema norte-americanos, mas ainda há muito por fazer. Em Portugal, então, um país onde, especialmente em comédia, ainda se continua a escurecer a pele de actores brancos quase semanalmente e são essas as poucas representações que existem?
The Problem with Apu não parte de um lugar de ódio, muito menos de assumir que Apu foi criado com maldade no coração dos argumentistas de Os Simpsons ou de Azaria. O próprio nome "Apu" foi, aliás, dado por Matt Groening, que criou a personagem, como homenagem à trilogia homónima de Satyajit Ray, o lendário realizador indiano. E há muito de positivo na personagem. Sam Simon, que desenvolveu a série, deu a Apu muitas das suas ideias e filosofias de vida acerca dos direitos dos animais, por exemplo.
É que Hari Kondabolu é fã de Os Simpsons e de Azaria, tal como o são muitas das pessoas com quem ele fala. Entre eles incluem-se outros cómicos e actores de origem sul-asiática, como Aziz Ansari, criador e protagonista de Master of None, cuja primeira época dedicou um memorável episódio intitulado Indians on TV a estas questões; Hasan Minhaj, do Daily Show, cujo especial de stand-up Homecoming King está disponível no Netflix, Aparna Nancherla, que era colega de Kondabolu em Totally Biased e apareceu nas mais recentes temporadas de Master of None e BoJack Horseman; Kal Penn, da saga de filmes cómicos Harold & Kumar – onde se mostrava chateado por lhe chamarem “Apu” – e da série House, além de ter trabalhado na Casa Branca; Sakina Jaffrey, de House of Cards e Mr. Robot; Aasif Mandvi, que foi correspondente do Daily Show; Maulik Pancholy, de Erva e Rockefeller 30; ou Utkarsh Ambudkar, que aparecia em The Mindy Project e deu voz ao sobrinho de Apu num episódio de Os Simpsons no ano passado.
É Ambudkar que diz, no trailer, o óbvio: quase todas as personagens de Os Simpsons assentam em estereótipos, só que, no caso de Apu, era a única pessoa parecida com ele que existia. O problema era não haver mais ninguém. Kal Penn vai mais longe e diz que, por detestar Apu, não gosta de Os Simpsons. Todos parecem ter passado pela experiência de, ao longo dos anos, lhes terem chamado “Apu”, quer tivessem ou não parecenças com a personagem, para gozarem com eles e terem ido a audições para papéis e ter-lhes sido pedido que fizessem sotaques exagerados – e muito pouco realistas – como o que Hank Azaria utiliza.
Não são as únicas pessoas que aparecem: além de transeuntes das ruas de Nova Iorque, o cómico fala com Whoopi Goldberg, a cómica de stand-up, actriz e apresentadora de televisão, fala sobre estereótipos racistas de negros ao longo dos anos e sobre se Apu se compara, W. Kamau Bell, que era patrão de Kondabolu em Totally Biased e agora apresenta Politically Reactive, um podcast de política com ele e Dana Gould, também cómico de stand-up e argumentista d’Os Simpsons, fala sobre a perspectiva de dentro. Quem não aceitou ser entrevistado foi o próprio Azaria, que disse em 2013 ao The Huffington Post que a conversa à volta da personagem o tinha feito analisar o impacto do seu sotaque e da representação, e que chegou a falar ao telefone e trocar emails com Kondabolu. A própria série reagiu e, no tal episódio com o sobrinho de Apu, confronta os estereótipos da personagem. É um sinal de que há uma vontade de abordar estas questões, mesmo que não responder directamente.
Quando foi na semana passada ao The Daily Show conversar com Trevor Noah para promover o documentário, Kondabolu disse que nem sequer quer muito saber de Apu nos dias que correm. É mais um ponto de partida para falar de representação e ter um diálogo, em vez de apontar e acusar os criadores de Os Simpsons de serem perigosos racistas. Também parece estar perfeitamente consciente de que muitas pessoas poderão achar que é um exagero sequer pensar nestes assuntos e reflectir como a comédia mudou em 28 anos. E como vai continuar a mudar.