#Diários de Cuba: no rasto da revolução insular
Vinte e três dias, dois mil quilómetros de leste a oeste. No embalo do caminho: um curso de cinema, um diário, uma mochila e a revolução insular de um povo erudito, generoso, dividido entre a nostalgia de Fidel Castro, que morreu faz dia 25 um ano, e o anseio por abertura internacional.
#Dia 1. Simples ou revueltos?
Vista do céu, a ilha tem mil olhos luminosos e coloridos. São quase nove e meia da noite e o calor húmido empapa a pele enquanto se espera na fila do serviço de estrangeiros no aeroporto internacional José Martí. Sixto e o filho Alejandro estão à minha espera. Marido e filho de Maria, com quem tratei do alojamento via e-mail. São já quinze minutos para as onze e, em 20 minutos de viagem, dá tempo para falarmos sobre política: perguntam-me sobre a troika e pelo governo. Há trânsito neste domingo havanero. Quero entrar nas menos cinco horas de fuso horário em relação a Portugal, mas o sono começa a apoderar-se do corpo. Chegamos ao bairro El Vedado, onde ficarei hospedada estes dias, depois de ver o rosto de Che Guevara e Camilo Cienfuegos na Praça da Revolução. Maria já só quer saber como quero os meus ovos para o pequeno-almoço: simples ou revueltos?
#dia 2. “Bem-vinda a Cuba”
Acordo às nove horas, refeita. Mel, manga, papaia, sumo de manga, café, pão, ovos, manteiga. Estou numa sala no rés-do-chão, ao lado do quarto, e avisto a rua. Uma azáfama. Entra um bafo quente pela janela gradeada da porta de madeira. Maria faz-me companhia. “A vida é difícil, sim, mas somos felizes. Há bloqueio, sim, o que impede o acesso a certos bens. Entras num supermercado e muitas prateleiras estão vazias, mas há sempre uma mão amiga”, confidencia, referindo-se a ajudas paralelas. Sobretudo da China e da Rússia.
Saio tarde para trocar dinheiro. Cinco minutos pela Avenida 23 de Julio e sou iniciada no sistema de filas cubano: “Quem é o último?”, pergunta-se. Aprendo que, se souber quem está à minha frente, posso sentar-me à sombra. Hoje: 32 graus. Tempo de espera: uma hora e meia, porque entretanto é hora de almoço e a Cadeca (loja de câmbios) fecha. A fila alonga-se. Beatriz, que está à minha frente, desiste. Volta minutos depois. O sistema bancário não está a funcionar e só consegue levantar dinheiro aqui. “Bem-vinda a Cuba”, ironiza. E adverte-me para que não tenha “ilusões” sobre o país. “A saúde é gratuita, mas os hospitais são precários, estão sujos e degradados. E há um bloqueio em tudo: desde a consciência social e ideológica. Há muita desigualdade e a equidade de Fidel Castro é apenas uma premissa, não a realidade.”
Desabafa desalentada. “As pessoas vivem o dia-a-dia e não têm consciência social, falta educação cívica.” As coisas boas? “Não temos terrorismo, não temos drogas, não temos violência, não temos armas, temos boa educação e, apesar de tudo, hoje já conseguimos ter o nosso negócio, porque já temos autorização para ser cuentapropistas.”
Por isso, enquanto caminho até ao centro da cidade vou vendo as janelas e as garagens de casas particulares a vender de tudo: desde roupas usadas a comida. Sigo pelo Malécon, a marginal marítima. O mar está sereno, sob nuvens plúmbeas. Já se anuncia chuva, velando o Capitólio ao fundo. Está em obras. Tal como a Calle San Lázaro, por onde me aventuro. Casas verdes, cor-de-rosa, azuis, brancas. Passo a Avenida Reina Sofia e a Igreja Sagrado Coração de Jesus. Arrisco ir para a zona do Capitólio e instalo-me no pequeno bar-restaurante Castillo de Farnés, perto do mítico Floridita, frequentado por Ernest Hemingway. Agora chove torrencialmente. As ruas jamais ficarão desertas. Do interior vejo cinema directo a contrastar com a imagem postal da cidade. Troveja. Um homem fuma o seu charuto no canto do bar. Camisa branca, dedos delgados de pianista, olhos cansados. As pingas fortes que descem pelo toldo vermelho são a banda sonora de um fim de tarde a ver como chove em La Habana.
#dia 3. “Chega de Che Guevara”
Acordo às 5h em jet lag. Decido traçar o itinerário das próximas viagens e tentar encontrar compatibilidade de horários para tanta ilha. Às oito já estou a sair de casa. Vinte minutos depois de terminar a Calle 25 atravesso o histórico cemitério Cristóbal Cólon, datado do século XIX e considerado um dos mais monumentais do mundo. Saio dali e perco-me. Gimena salva-me. Aproveito a sombra do seu guarda-chuva e caminhamos até à rua onde devo seguir. Ela é professora do ensino básico. Estudou português com uma professora brasileira, porque queria ir trabalhar para o Brasil. “Ao final de um ano ela não pôde mais. Mas tenho mesmo de aprender outra língua para poder progredir na carreira. O que ganhamos não chega a dez dólares por mês.”
A estação rodoviária da ViaAzul fica em frente ao Jardim Zoológico. Quando chego há uma fila inacreditável. Uma hora depois, e um rio de transpiração, sou atendida. Conseguimos conciliar: Havana-Trinidad-Santa Clara-Cienfuegos-Camaguey-Havana, mais as viagens para Viñales. Tudo: 105 CUC, o equivalente a 105 euros. São horas de almoçar e recordo-me do segredo de Maria: na Cafetaria Los Primos, um restaurante familiar no bairro El Vedado, na Calle H, é mais barato. Almoço bistec de cerdo, arroz com feijão, sumo de manga natural e café (140 pesos cubanos: menos de 4 euros). Um achado. Nos dias seguintes será difícil comer por menos de dez euros.
Ao fim de dois dias estou ao ritmo de Havana. À tarde apanho um almendrone para o centro da cidade. São os táxis colectivos que fazem itinerários fixos por dez pesos cubanos. Em 15 minutos já estou à procura da Plaza Vieja. Sigo o meu instinto. Encontro o bar dandy. Turístico. Calle Brasil: habaneros, turistas, galerias de arte e artesanato. Uma porta entreaberta com as bandeiras e os retratos de Che Guevara e Camilo Cienfuegos atrai-me. A miúda de batom vermelho chama-me. É uma escola. São férias. Ela, Mariana, é filha de uma professora. Ao fundo, está um professor de Educação Física. No final da visita, vai oferecer-me uma raridade: a famosa nota de 3 pesos cubanos com a imagem de Che Guevara. Assina-a: “Felipe [Suaréz], Cuba”. “Há um exagero do uso da imagem de Che Guevara. Está em todo o lado: nas t-shirts, nos restaurantes, nos carros, nas paredes das casas, nas bolsas de turistas, nos posters. Chega!”
Mariana faz-me uma visita guiada à escola vazia. Num pequeno quadro estão afixadas actividades juvenis: como fazer nós de sobrevivência, como fazer um acampamento, linguagem gestual para dispersão de massas, ordem e ordenamento de grupos. Agradeço e saio para explorar a cidade: Calle Mercaderes, Plaza de la Catedral, Callejon del Chorro e o Taller Experimental de Gráfica, ruas Obispo e O’ Reilly, Paseo San Martí, a Plaza Vieja. É linda. Tem edifícios dos séculos XVI, XVII e XVIII. Ao redor, percebe-se um fôlego de recuperação: a cidade está a ser reabilitada, ansiando glamour e turistas.
#dia 4. “Vontade do povo, consolidando o diálogo”
Alejandro deixa-me na rodoviária ViaAzul. Conheço uma família colombiana que se queixa dos preços exorbitantes em Havana. Sou solidária. Ontem consegui comprar uma água de 1,5l por 1,75 euros. O mais barato que conseguiria. São 7h15 e as ruas estão atarefadas. Miúdas de telemóvel na mão e uniforme cor-creme e castanho, mini-saias e lábios pintados. Autocarros cheios. Na estrada, mais homens pedem boleia, ora mostrando galinhas, ora mostrando dinheiro. A viagem para Trinidad, na província de Sancti Spiritus, vai demorar seis horas e meia. Vou coleccionando frases de cartazes. “Nosso dever, produzir para o povo”; “As mulheres contribuem para um socialismo sustentável”; “Defender a revolução sempre”; “O homem cresce com o trabalho que sai das suas mãos”; “Por um socialismo próspero e sustentável”; “Vontade do povo, consolidando o diálogo”; “O partido é hoje a alma da revolução”. E, claro, um constante: “Hasta siempre comandante”. Na paisagem dominam sempre Che Guevara e Fidel Castro.
A chegar a Trinidad, património mundial desde 1988, as ruas começam a estreitar. À minha espera está Núria. O calor intenso chicoteia o corpo e os sentidos. As casas térreas, coloridas e coloniais tornam-na numa cidade pitoresca, que vive sobretudo do turismo. Numa pequena praça, homens tocam e cantam salsa e rumbas. Há artesanato, rendas, camisas alvas. Entro numa livraria-alfarrabista. Maria Caridad, 64 anos, adora ler. Pergunta-me que livros quero. Feministas? Revolucionários? Novelas? “E Cuba, hoje?”, provoco. “Algo tem vindo a mudar para nós, mulheres”, reflecte, “pelo menos já conseguimos ter um trabalho e ser reconhecidas por isso.” Remata: “Outra coisa que mudou é que as lésbicas e os homossexuais são mais respeitados e há maior abertura na sociedade.” Compro um livro. Sento-me a folheá-lo na praça principal, observando várias gerações a navegar na Internet. Ameaça chover. Regresso a casa com intenções de voltar à noite. Caio na cama. Só acordo no dia seguinte.
#dia 5. “A revolução dos pássaros”
Às 8h30 apresso-me a aproveitar o que me resta conhecer da colonial Trinidad: a Praça Santana, saborear os sussuros históricos das ruas e vielas. A cidade tem a doce lentidão cinematográfica e a sedução de um amor que cresce. São quase 14h e o meu autocarro vai partir para Santa Clara. 120 quilómetros e três horas de viagem. O caminho: vacas magras, mangas rosa, bananeiras, estradas de areia e terra batida. Cartazes: “Para sempre a revolução”; “A mulher é uma revolução dentro da revolução”; “Unidos pela Revolução”; “Com Fidel a Revolução”; “Fiéis a Fidel”.
Santa Clara também chora copiosamente quando chego. Lídia não está à minha espera. Luna oferece-se para me ajudar. Estamos a telefonar quando aparece Santiago, marido de Lídia. Ela já foi professora de Química. Há 20 anos percebeu que poderia ganhar mais dinheiro com turismo. Fala-me do americano que viveu lá uns tempos e que ia a Cuba por causa das raparigas novas. Um dia ele criticou Fidel e a Revolução. Ela expulsou-o de casa. Mais tarde ficaram amigos.
Saio para visitar a Casa da Cultura. Mayara instrui-me na revolução. Ali ao lado, fica o parque da Plaza Mayor e tento descortinar um mistério: milhares de pássaros negros chilreiam nestas árvores. Santiago diz-me que de manhã migram e voltam ali ao fim do dia. Ninguém sabe por que razão. Amanhã cedo quero vê-las partir.
#dia 6. “Em Cuba não há liberdade de expressão”
É a minha primeira vez numa fábrica de tabaco cubano. “Não pode tirar fotografias.” Seria quase proibido falar com os funcionários, dispostos em linha numa máquina individual que prensa os charutos, envolvidos de forma manual. Soraya recebe-nos com um inglês de difícil compreensão. Peço o espanhol. A informação sai decorada e não há margem para outras perguntas. “São 250 empregados, 54% são mulheres e todos os dias produzem entre 13 mil a 15 mil charutos. Cada trabalhador produz cerca de 150 charutos. Há de várias qualidades e cada charuto leva várias camadas de folhas: para o sabor, para manter as propriedades, para a qualidade para arder.” Soraya continua, enquanto uma mulher está ao microfone a ler as notícias do dia. “Produzimos o Monte Cristo nº2, Cohiba, Romeu e Julieta.” As folhas vêm de diferentes lugares de Cuba. Há pelo menos 25 fábricas de tabaco para exportação e dez para consumo nacional.
Uma hora adiante arrisco enfrentar o calor abafado e ir a pé até ao trem blindado. É o memorial à batalha de Santa Clara (1958), quando Che Guevara e cerca de 300 homens libertaram a cidade, tornando-a independente. À tarde sigo para o Mausoleu e o Memorial de Che Guevara. As ruas estão muito sujas. Ao fundo, a estátua gigante de Che pronuncia-se. No Memorial: objectos pessoais de El Comandante (material médico, diário, máquina fotográfica, pistola) e muitas fotos de momentos de vida. Convenço-me que já estou informada sobre a vida do ícone.
Anseio por um mojito. Volto à cidade e conheço Luís, guia turístico, olhos de insónias. “Em Cuba não há liberdade de expressão. Não há eleições. É uma ilusão. Tudo é dos Castro. Se falas mal do governo arriscas ser preso e a ficar quatro anos na prisão. Qual a solução? São os jovens que têm de fazer alguma coisa. Precisamos de um novo Che Guevara, mas sem liberdade de expressão é muito difícil.” Ele entusiasma-se com a conversa. “As pessoas ganham mal. Um médico ganha no máximo 40 CUC. A maioria das pessoas tem mais do que um trabalho. As farmácias ficam recorrentemente sem medicamentos. As pessoas não vivem, sobrevivem.”
#dia 7. “A revolução do paquete semanal”
O autocarro em que viajo de madrugada para Camaguey é muito desconfortável. Quatro horas e meia para 278 quilómetros. Atrasaria uma hora. André está à minha espera num tuk tuk reservado pela minha anfitriã, Nina. Está lua cheia. Corre um vento manso. Na manhã seguinte, Nina vai mostrar-me a cidade. Mais à frente, esta mulher charmosa de cabelos curtos e grisalhos, 45 anos, encontra o irmão do companheiro. Pede-lhe que se encontre com ela para tratar de negócios. “Mas sóbrio”, suplica. “É que o alcoolismo é um problema social grave em todo o país.”
Reparo que várias igrejas têm a placa dos Alcoólicos Anónimos. Entramos num teatro de arena que ela e Enrique ajudaram a construir. Passamos pela Iglesia Catedral de Nuestra Señora de la Candelaria, caminhamos pela praça do Parque Ignacio Agromonte. Nina: “Camaguey é uma cidade com muita programação cultural: casa da Cultura, teatros, Biblioteca Municipal, Associação dos Artesãos.” Entramos na rua do cinema, onde as lojas têm nome de filmes. Barbearia: El marido de la Peluquera; Multicine: Casablanca; Loja: Grandes Ilusiones.
Nina deixa-me no centro videoarte. Converso com a curadora Teresa Dominguez. “Em Cuba funciona o paquete semanal. Há pessoas especializadas em séries, filmes, desenhos animados e música. Deixas uma pen drive e podes ter as últimas novidades. É uma revolução”, graceja. “Cuba não está assim tão fechada, pois com a Internet muito tem vindo a mudar no acesso à informação.” Itinerário da tarde: Plaza San Juan de Dios, Parque Jose Martí, Plaza Maceo, Plaza Cristo e União dos escritores. Há música ao vivo com poesia. Quero perder-me na cidade.
Encontro o rumo, ao entardecer, até ao Café da Ciudad, onde paro para escrever e beber um sumo de manga. Corre uma brisa doce. À minha espera, para jantar, há camarões salteados com manteiga pelo chef Enrique. O acolhimento é generoso. “As pessoas gostam muito de receber e Cuba é um país seguro. Fidel deixou um bom legado. Mas agora estamos numa incerteza, Raul não tem o mesmo carisma e os cubanos estão cansados do embargo”, afirma.
#dia 8. “A revolução é uma praça”
Faltam 15 minutos para a uma da manhã. O autocarro parte de regresso a Havana. Oito horas de viagem em vigília, porque é impossível dormir. Os autocarros são precários, sujos, vão lotados, o ar condicionado deixa de funcionar na primeira hora de viagem. Abre-se o tejadilho. Paliativo, apenas, porque entra uma corrente de ar quente. Chego a tempo de desfrutar o fim da manhã na Praça da Revolução. Está cheia de carros antigos, coloridos, estilo norte-americano. E há uma enchente de turistas a fotografar as imagens gigantes de Che Guevara e Camilo Cienfuegos, esculpidas a ferro, num prédio militar. A mensagem: Hasta la victoria siempre. Caminho mais de uma hora a pé até ao centro, pela Avenida Allende. Leio um cartaz: “Bloqueo, el genocidio más largo de la historia”. Há obras por toda a parte. Reabilitações, areia, tábuas de madeira.
Chego à Plaza Vieja e ouve-se rumba e salsa. Subo até à torre da câmara escura para contemplar a cidade num ângulo de 360 graus em tempo real. É vívida, vibrante, destruída, reconstruída, charmosa, decadente. Almoço e estou em dúvida: ir à Calle Aguiar conhecer as barbearias? Museu de Belas Artes? Museu da Revolução? Opto pelas barbearias, passando por casas coloniais em ruína. Um homem bem vestido levanta-se no momento em que passo e começa a acompanhar-me subtilmente. Diz que quer levar-me ao Buena Vista Social Club. Respondo que não estou interessada e que quero caminhar sozinha. Pede-me dinheiro para leite e pão. Mais à frente uma mulher pede-me que lhe dê a minha t-shirt. Calor-inferno.
Apanho um almendrone para a gelataria Copelia, no bairro El Vedado. Ao lado fica o cinema Yara que, aos domingos, tem fila para comprar bilhete. Ao redor, dezenas de homens e mulheres, várias gerações, estão sentados a olhar o telemóvel. É zona de wi-fi. À noite regresso aqui para seguir no autocarro para a Escuela Internacional de Cine Y Televisión (EICTV) de San Antonio de Los Baños, a 40 quilómetros de Havana.
#dias 9 a 13. “Música no autocarro”
9h. Começa o taller de dramaturgia de cine documental que frequentarei nas próximas duas semanas. A escola foi fundada em 1986 pelo escritor Gabriel García Marquez, pelo poeta e cineasta argentino Fernando Birri e pelo realizador cubano Julio Garcia Espinosa, com o apoio de Fidel Castro. Recebe estudantes de todo o mundo. “Mas o cinema em Cuba está sem financiamento e é muito difícil produzir”, diz o professor e produtor Mário Suarez, que conheço no autocarro de regresso a Havana no sábado seguinte. É fã da literatura de Saramago. Prometo enviar livros de Portugal.
Nesse sábado, decido ir à Fábrica de Arte Cubana, uma galeria de arte, discoteca, bar, restaurante, com lojas hipster. Sinal de uma nova Havana. Regresso de autocarro: tem música cubana e vai sobrelotado. Vamos todos colados uns aos outros.
#dias 14 e 15. “Cuba campesina”
É quase meio-dia quando chego a Viñales, na província de Pinar del Rio. Fica na Sierra de los Organos e é património UNESCO. Três horas de viagem até descansarmos os olhos no exuberante vale paradisíaco, pré-histórico, rodeado de paredões gigantes rochosos, os mogotes. É Cuba rural com suas plantações de café e tabaco: 70% do tabaco é produzido aqui. O centro da cidade, além de uma praça, museu e igreja tem alguns restaurantes, e muitas habitações particulares para alojamento de turistas. Fico na casa de Tatiana y Yiyi. O clima está húmido, acabou de chover. O vale deve estar pantanoso. Mas arrisco um passeio a cavalo. Nome: Palomo. Raça: Criolo. Com os lagos saciados pela chuva, que cobrem as patas do cavalo ao atravessá-los, a terra barrenta, subidas ora íngremes, ora descidas estreitas e irregulares, seria uma experiência para duros. Variáveis insignificantes no paraíso: borboletas brancas e amarelas, goiabeiras, córregos entre vegetação serrada e montanhas. Olor a humidade mineral.
Giovani é o meu guia e leva-me à fazenda de tabaco de Rolando Figueiroa. Dicson Figueiroa faz as honras. “Vais ficar a saber tudo sobre tabaco: a forma como plantamos, curamos, enrolamos, para dar origem às diferentes marcas cubanas.” Em 1964, Fidel Castro distribuiu terras a todos os fazendeiros que queriam cultivar. “O meu avô é dono de dois hectares”, salienta Dicson, “mas nós não podemos vender a outro fazendeiro, apenas ao governo”. São seis trabalhadores. “90% da produção é obrigatoriamente para o governo, 10% é para negócio pessoal”, explica. Na parede, bandeiras: Cuba e Che Guevara. Um painel com as folhas do tabaco. Dicson fala por mais de meia hora. No final oferece um puro cubano. Corta-o, mergulha a ponta com mel. “Dizem que Che Guevara filtrava assim. Eu também gosto.” E Fidel Castro? “Fidel fumava sem nada. Ele foi um grande líder, faz falta, Cuba já não é a mesma. Vamos vivendo do passado, com a memória de uma revolução.” É fim de tarde. Galopo pelo vale sossegado, onírico.
#dia 16. “Tempo virtuoso”
A única forma de conhecer um pouco mais Viñales em tão curto tempo é optar pelo autocarro circular que pára nos pontos principais. Não costumo ser fã deste método, mas regresso ainda hoje a Havana, para à noite voltar à escola. Pago 5 CUC. Conheço, frugalmente, a Cueva del Indio, o Mural de la Prehistoria, a Cueva de San Miguel, o Mirador sobre o vale. Duas horas de viagem entre a imponência rochosa, casas coloridas e rurais. Terra de tempo mais lento, longe da azáfama de Havana e das preocupações políticas.
Tatiana diz que sentem muito a falta de produtos alimentares, variedade de vestuário, calçado. Falta dinheiro. “O meu filho tem 30 anos, vai ser pai agora, mas ainda não casou e estão a viver separados porque não têm forma de subsistir. Vou construir aqui por cima uma área comum para eles poderem viver.” No final, cobra-me mais do que o que tínhamos combinado. Tenho de negociar com ela. O autocarro sai às duas da tarde. Passamos as barragens Coronella e Niña Bonita, rapazes descalços à chuva, uma carrinha capotada com tomates. Cartaz: “Este é um tempo virtuoso e temos de nos fundir nele, Viva o 26 de Julho.”
#dias 17 a 20. “Cinema”
A minha turma de guião para cinema documentário tem espanholas (catalãs e madrilenas), dois brasileiros, uma peruana, uma colombiana, uma portuguesa e o professor é argentino. Aproveito a última semana para me nutrir de cinema cubano. Conducta, de Ernesto Sarana Serrano, tudo de Belkis Vega, Esteban, de Jonal Cosculluela, Últimos Dias en Habana, de Fernando Pérez. Cuba tem tanta energia artística e cultural que qualquer estadia tem um sabor de insaciedade.
#dia 21. “À espera da revolução insular”
Tanto me falaram de Varadero que resolvo não ir. É Verão. Estão todos a ir para lá. Os jornais cubanos pedem mais limpeza nas praias. Olho para as dicas da minha amiga Raquel Ribeiro. Ainda não fui ao Museu da Revolução, nem almocei no Los Nardos. Antes, sigo para o Calejon de Hammel, uma viela artística. Entro na Livraria Alma Mater. Muitos livros empoeirados sobre revolução, cultura e desenvolvimento agrícola. Há uma promiscuidade entre vida pública e vida privada. Vemos mulheres de camisas de noite à janela, a cozinhar e a ver televisão. Na rua: carros antigos cor-de-rosa, verdes, azuis, pretos, cor-de-laranja.
Depois de almoçar, apresso-me a ir ao Museu da Revolução, finalmente. Outrora foi o Palácio Presidencial e palco de um confronto sangrento, em 1957, quando um grupo de estudantes foi massacrado, por se ter insurgido contra o presidente-ditador Fulgencio Batista, o qual tomou o poder em 1952. A Revolução Cubana começou nesse ano, num movimento clandestino armado e guerrilheiro, liderado por Fidel Castro, para derrubar Batista. No Museu, que existe desde 2010, conta-se esse percurso através de objectos e documentos. São três pisos. Não vai ser hoje. Já não me deixam entrar para a última visita às 15h. Não quero acreditar. Insisto. Em vão. Olho para o tanque de guerra, cá fora. Questiono quantos cubanos terão vindo ao museu saber da revolução, se a revolução mora no coração deles como parte da História.
Mas a revolução é passado e Cuba quer olhar o futuro para saciar as necessidades imediatas. Da carteira retiro o livro que comprei em Trinidad: Cuba, Cultura y Revolución: claves de una identidad, uma colectânea da Colección Editores. Folheio-o. Tradução minha: “O mundo simbólico de várias gerações, isto é: a maioria de nós, é o que criou a Revolução (…) [mas] em Cuba começa a debater-se o desafio plantado pela cultura das transformações imprescindíveis na economia, na imensa maioria da produção intelectual de analistas e comunicadores fora do país e entre a minúscula contra-revolução interna organizada, tanto a tradicional como a reformada, prevalece a ideia do fracasso absoluto, a perspectiva de não dar a menor chance ao governo de Raul.” Quando, ao levantar voo, vejo os contornos da ilha, entendo: sem Fidel, Cuba procura mudança, mas ainda é cedo para saber qual.