Alain Tanner de regresso à cidade branca

Que memória resta hoje do cinema do suíço, para além do filme dele que mais “vive” em Portugal, A Cidade Branca, que foi rodado em Lisboa e que é o seu filme favorito? Reencontro.

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A Cidade Branca acabou por ser “o relato de uma relação muito apaixonada com a cidade”. De entre toda a sua obra, é o seu preferido

Jonas que Terá 25 Anos no Ano 2000, A Salamandra, Charles Mort ou Vif (que em Portugal se chamou O Último a Rir): até há alguns anos não seria difícil encontrar espectadores a quem estes títulos dissessem alguma coisa, mesmo muita coisa. São filmes de Alain Tanner, do período em que a sua obra aparecia nos cinemas portugueses, entre a segunda metade dos anos 70 (antes do 25 de Abril, como tantos outros, ficavam à porta) e os anos 80, e faziam parte do léxico comum de qualquer espectador regular, que nem precisava de ser “cinéfilo”. Hoje, que memória resta do cinema de Tanner, para além do filme dele que mais “vive” em Portugal, A Cidade Branca, também por razões de proximidade (foi rodado em Lisboa)?

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Jonas que Terá 25 Anos no Ano 2000, A Salamandra, Charles Mort ou Vif (que em Portugal se chamou O Último a Rir): até há alguns anos não seria difícil encontrar espectadores a quem estes títulos dissessem alguma coisa, mesmo muita coisa. São filmes de Alain Tanner, do período em que a sua obra aparecia nos cinemas portugueses, entre a segunda metade dos anos 70 (antes do 25 de Abril, como tantos outros, ficavam à porta) e os anos 80, e faziam parte do léxico comum de qualquer espectador regular, que nem precisava de ser “cinéfilo”. Hoje, que memória resta do cinema de Tanner, para além do filme dele que mais “vive” em Portugal, A Cidade Branca, também por razões de proximidade (foi rodado em Lisboa)?

É uma questão para uma das retrospectivas da edição deste ano do LEFFEST, que propõe um reencontro com a obra do realizador suíço, nascido em 1929, contemporâneo dos grandes movimentos de rejuvenescimento do cinema nos anos 1960, entre o free cinema inglês, a nouvelle vague francesa (e os anos de formação, Tanner passou-os entre Londres e Paris, no coração destas pequenas “revoluções”), e os muitos “cinemas novos” que pulularam a Leste e Oeste, incluindo Portugal. Tanner, de resto, foi responsável – com Claude Goretta, Michel Soutter e alguns outros – pela imposição internacional de uma idea de “cinema suíço”, entidade então praticamente inexistente fora das fronteiras do país.

Ou que mesmo assim continuou a não existir. É uma das primeiras coisas que nos diz, ao telefone de sua casa, depois de pedir desculpa pela forçosa brevidade da conversa – a saúde não o deixa falar durante muito tempo sem ficar demasiado cansado. “Não sei muito bem o que é o cinema suíço, não sei o que é que isso quer dizer”. Aliás, não sabe muito bem sequer o que é ser “suíço”: “Vivo num país onde não compreendo a língua falada por dois terços dos meus compatriotas…”. Mas em todo o caso, em termos materiais, foi a acção dele, de Goretta, de Soutter, e dos hoje muito menos conhecidos Jean-Louis Roy e Jean-Jacques Lagrange, no colectivo que fundaram no final dos anos 60 (o “Grupo 5”), que trouxeram para o plano internacional um cinema feito na Suíça francófona, e aquilo que o país de mais próximo teve com um “cinema novo” em diálogo com a modernidade do cinema europeu.

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A Cidade Branca

“Tratava-se de uma maneira de conseguir filmes com um orçamento inexistente”, diz, “e uma oportunidade de apresentar ideias fortes aplicadas às situações económicas e sociais”. O carácter libertador, ou mesmo libertário, do cinema de Tanner, apresentou-se logo à primeira: Charles Mort ou Vif (1969) é a história de um empresário “por obrigação” (herdou o negócio da família) que ao chegar a uma certa idade abandona tudo por uma vida longe dos negócios e do dinheiro, para escândalo da família que o tenta internar num manicómio. Mais tarde – e com a colaboração do conhecido historiador de arte John Berger, co-escreveu três filmes com Tanner – um dos seus títulos mais célebres, Jonas Que Terá 25 Anos no Ano 2000, era um dissecação dos efeitos maioritariamente frustrados do Maio de 1968, através do cruzamento de uma série de personagens de diferente background social numa espécie de fábula política.

É um cinema eminentemente político, o de Tanner, embora nunca viva na abstracção e esteja sempre a fazer a ponte para as vidas reais, e dentro delas para a intimidade, familiar e afectiva. “Ah, sim”, exclama, “é um cinema abertamente ideológico”. Contar histórias não lhe interessa: "o ponto de partido é sempre uma ideia, uma ideia que depois se encarna numa ou em várias personagens”. O trabalho do filme “é fazer um cocktail de ideias”, e depois “trazê-las à superfície”. É só aí que entra em cena a necessidade de narrativa: “preciso de um pedaço de narrativa para que  o discurso e as ideias sejam assimiladas, e não declamadas”. No tempo de Charles Mort ou Vif ou La Salamandre (1971), acredita que o seu cinema foi radicalmente original – “mesmo os franceses me perguntavam ‘de onde é que isto vem?’; era um cinema que não existia”.

Também se cruzou com Portugal, num dos seus filmes mais célebres: A Cidade Branca, de 1982, história de um marinheiro (Bruno Ganz) a descobrir Lisboa e arredores numa demanda existencial. “Completamente existencial, completamente filosófica!”, exclama Tanner: “Ele quer nada mais nada menos do que desestabilizar o tempo e o espaço, e isso é uma coisa complicada…”. A história de como o filme nasceu é fácil de contar: foi um desafio do produtor Paulo Branco, que lhe disse “vem fazer um filme a Lisboa”, e Tanner, que na altura estava doente, pensou “porque não? Vou curar-me para Lisboa”. O filme acabou por ser “o relato de uma relação muito apaixonada com a cidade”. Hoje, de entre toda a sua obra, é o seu filme preferido: “Se calhar não pensava dizer isto, mas fez-me pensar nele… e sim, é provavelmente o meu filme de que gosto mais, aquele de que me sinto mais próximo, está cheio de coisas que na altura me habitavam profundamente”. Lisboa cruzou-se com Tanner ainda mais uma vez, no final dos anos 90, com Requiem, adoptação de um romance “pessoano” de Antonio Tabucchi, e o próprio autor foi determinante: “Foi o Tabucchi que me mostrou o livro, que achei magnífico, e portanto fui, cheio de felicidade; é um filme cheio de prazer, cheio do prazer que a cidade de Lisboa me proporciona”.

Comentando a retrospectiva, Tanner, que abandonou o cinema há duas décadas, diz sentir uma certa estranheza. “É como uma vida passada, um mundo abandonado”. Mas sente satisfação e orgulho no facto de os seus filmes continuarem a ser interessantes para os espectadores actuais, e expressa o desejo de que “continuem válidos ideologicamente”. E pede: “Diga aos espectadores que tenho muita pena de não poder estar presente, mas estou com eles no coração e no espírito”. Fica o recado dado.