Representar Lorca entre a liberdade e a asfixia

Público x Lorca, com base no texto do escritor espanhol, estreia no Teatro da Cerca de S. Bernardo, em Coimbra.

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Como se leva ao palco uma peça irrepresentável tendo como base um texto inacabado? Público x Lorca estreia esta quinta-feira em Coimbra, no Teatro da Cerca de S. Bernardo e quer responder a esta questão através da conjugação de linguagens cénicas.

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Como se leva ao palco uma peça irrepresentável tendo como base um texto inacabado? Público x Lorca estreia esta quinta-feira em Coimbra, no Teatro da Cerca de S. Bernardo e quer responder a esta questão através da conjugação de linguagens cénicas.

A impossibilidade de representar O Público, texto que serve de base à peça Público x Lorca, foi afirmada pelo próprio autor, o poeta e dramaturgo espanhol, Federico García Lorca. Acresce uma camada de complexidade quando se sabe que o texto que chegou até aos nossos dias não é a versão final.

Mais de oito décadas depois, a peça “irrepresentável” pode ser mais acessível. A descrição de Lorca vem dos anos 1930, lembra o director artístico do projecto, o espanhol Matilde Javier Ciria. De lá até agora, “o teatro e o público têm evoluído muito, tanto na capacidade de aceitação de diferentes linguagens como de abstracção”. No texto de O Público, que sendo teatral é também poético, há personagens que são conceitos. Mas os espectadores aprenderam a não estranhar o surrealismo, entende. “Podes fazer um trabalho muito mais conceptual e abstracto que tens público para o aceitar”.

O projecto que envolve artistas de Portugal, Espanha, França e Costa Rica nasceu da vontade dos três co-produtores continuarem a trabalhar juntos na mistura de linguagens cénicas, depois de uma encenação de Frankenstein na Costa Rica, em que Matilde Javier Ciria e a portuguesa Rafaela Bidarra conheceram o costa-riquenho Arturo Campos. Os três produtores desempenham também o papel de actores, numa tentativa de vestir a pele dos mais de 30 personagens de O Público.

A procura de um texto para dar corpo a essa vontade começou nos clássicos gregos e passou por grandes nomes da literatura, como Kafka e Dostoievski. “Mas não era o momento”, descreve o director artístico. Encontrou então O Público. A peça que o autor considerou “irrepresentável” pareceu a Matilde Javier, que tem desenvolvido trabalho na dança butoh, o texto “perfeito” para o tipo de projecto.

Uma certa liberdade

Lorca acabou por ser assassinado em 1936, sem que uma versão final publicada do texto lhe tenha sobrevivido. No entanto, esta incompletude ajuda a contornar a “asfixia de representar” o dramaturgo, concede Ciria. “Lorca já não é só espanhol, é universal. É sempre muito difícil de enfrentar”. Público x Lorca é “experimental”, descreve, mas sem fugir à estrutura da obra que lhe serve como base. “Se o texto não está completo, há sempre uma certa liberdade.”

Como um filme que se vê repetidamente para se captar pormenores diferentes que completam o enredo, este texto tem “várias camadas de profundidade”, entende o director artístico. O Público é sobre identidade, é sobre teatro, é sobre homossexualidade, é sobre erotismo. Matilde Javier Ciria explica que, na interpretação que vai a palco nesta quinta-feira, na impossibilidade de explorar todas as camadas, a opção passou por seguir os caminhos de exploração do teatro e da identidade. Sobre o teatro “debaixo da areia”, que faz reflectir, por oposição a um teatro mais leve, “ao ar livre”. Da identidade enquanto artista e sobre “essa viagem” que “a maioria dos artistas tem de fazer” para seguir o ramo”.

O espectáculo vai estar em palco em Coimbra para três sessões entre quinta-feira e sábado. O projecto teve o apoio do programa Iberescena, um fundo com a participação de 13 países da América Latina e Espanha. Para 2018 está prevista uma digressão por Espanha, Portugal e França, mas ainda não há datas agendadas.