O hipopótamo de Bernardino Machado tem ossos de madeira
Pouco se sabia sobre o esqueleto de hipopótamo que está no Museu da Ciência de Coimbra. Duas descobertas acidentais revelaram segredos com mais de um século.
Foram dois acasos que permitiram contar a história do esqueleto de hipopótamo que está há largos anos em exibição no Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Até 2016, pouco se sabia sobre os restos do animal, para além do facto de ser um esqueleto completo de hipopótamo. Ou, pelo menos, assim se pensava. “Não se tinha mais nenhuma informação”, explica uma das conservadoras do museu, a bióloga Cristina Rufino.
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Foram dois acasos que permitiram contar a história do esqueleto de hipopótamo que está há largos anos em exibição no Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Até 2016, pouco se sabia sobre os restos do animal, para além do facto de ser um esqueleto completo de hipopótamo. Ou, pelo menos, assim se pensava. “Não se tinha mais nenhuma informação”, explica uma das conservadoras do museu, a bióloga Cristina Rufino.
Duas investigações sem ligações aparentes ao hipopótamo acabaram por ajudar a desvendar parte dos mistérios deste animal, cuja ossada montada numa armação chama a atenção a quem entra na sala de esqueletos e viagens do Museu da Ciência.
Uma aluna de mestrado em Museologia queria fazer um trabalho sobre as raças de bois da colecção do Museu da Ciência, o que levou à consulta de antigos livros de registos do museu. “Fomos procurar tudo o que era referente às colecções de zoologia. Chegámos quase até ao fim do livro e não encontrámos nada sobre os crânios de boi”, conta Cristina Rufino. No entanto, encontraram uma inscrição que dava conta de uma despesa de 13 mil réis num trabalho de carpintaria.
O registo manuscrito mostra que um tal Júlio da Fonseca recebeu essa quantia em 1903 “pelo trabalho de imitação em madeira de laranjeira de vários ossos de hipopótamo que faltavam para armação do esqueleto completo”. Perante esta novidade, foi levado a cabo um “trabalho de Sherlock Holmes” para perceber que ossos seriam, afinal, de pau, conta Ana Cristina Tavares, também bióloga e conservadora do museu.
Esse trabalho de detective revelou que 26 dos ossos deste hipopótamo eram de laranjeira. A maioria das peças esculpidas foi usada para substituir ossos nas patas e na cauda, sendo que há outras duas peças no esterno. A não ser que se procure propositadamente, a diferença entre os ossos e as peças de laranjeira – material que terá sido utilizado devido à sua abundância, mas também à facilidade com que seria esculpido – não é óbvia.
Noutra página do livro de registos, ficamos a saber que o museu pagou no mesmo ano mais 7040 réis pelo trabalho de serralharia, que inclui estrutura metálica, com parafusos, roscas e anilhas, bem como a banda para a fixação das costelas. Com este segredo desvendado, ficava ainda por saber qual a origem do hipopótamo, que chegou a Portugal numa época em que grande parte dos museus de história natural da Europa era alimentada com material proveniente das colónias ultramarinas.
De onde veio?
Outra investigação, outro acaso. “Estava cá uma investigadora de répteis do Brasil”, que queria informação sobre uma dada colecção, começa por descrever Cristina Rufino. Ana Cristina Tavares tratou de analisar o arquivo da Universidade de Coimbra, sem que tenha encontrado dados sobre essa colecção. Descobriu, no entanto, quem doou o hipopótamo.
As ossadas do animal foram oferecidas a Bernardino Machado em 1902, quando este estava na secção de Antropologia do Museu de História Natural, pelo governador-geral de Angola, Francisco de Oliveira Moncada. O responsável terá feito a oferta em agradecimento ao homem que viria a ser Presidente da República, por um motivo que ainda não se sabe, referem as conservadoras. A burocracia da época permitiu trazer à luz esta informação, que estava guardada numa acta de reunião de congregação da universidade. Bernardino Machado, por sua vez, doou o esqueleto a Bernardo Ayres, director da secção de Zoologia na altura.
Estas duas coincidências aconteceram no final de 2016, altura em que o museu estava em remodelações. Fruto da história que os arquivos da universidade acrescentam, o hipopótamo de Bernardino Machado – uma peça que faz parte da colecção de meio milhão de animais da ala de zoologia – mudou de sala e assumiu um lugar de maior protagonismo na exposição. “Ao fim de 115 anos, o hipopótamo renasce para o museu”, resume Ana Cristina Tavares.
Para além da névoa que envolveu a história deste hipopótamo após a sua morte, o animal que está em Coimbra não teve uma vida fácil. Um hipopótamo, hoje uma espécie em vias de extinção, tem uma esperança média de vida que anda entre os 50 e os 60 anos, e este, a julgar pelas artroses, já não seria propriamente jovem quando morreu.
Vários factores levaram à redução do número de exemplares das espécies de hipopótamos existentes, sendo a caça uma delas. O hipopótamo de Coimbra, da espécie Hippopotamus amphibius (ou hipopótamo-comum), sobreviveu mesmo a uma bala que lhe abriu um buraco na parte frontal do crânio (parte do osso regenerou-se) e também a um ferimento nas costelas que terá sido causado por um objecto afiado, onde também há regeneração. Em Angola, de onde este esqueleto será proveniente, há actualmente 50 hipopótamos-comuns.