O arquitecto municipal
Se nas câmaras o nome do arquitecto municipal costuma geralmente diluir-se na invisibilidade da sua prática, sem reivindicação da autoria, os casos de Guilherme Machado Vaz e Miguel Figueira vêm sublinhar e reivindicar esse papel.
O retrato actual do exercício da profissão de arquitecto é composto por um mosaico heterogéneo de diferentes práticas e escalas de intervenção. Os arquitectos trabalham hoje em várias frentes: nos escritórios, nos municípios, nos organismos públicos, em empresas de construção, nas imobiliárias, na academia, na gestão de obra, na fiscalização ou na produção cultural. Uma das peças fundamentais, na construção deste mosaico, é a figura do arquitecto municipal.
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O retrato actual do exercício da profissão de arquitecto é composto por um mosaico heterogéneo de diferentes práticas e escalas de intervenção. Os arquitectos trabalham hoje em várias frentes: nos escritórios, nos municípios, nos organismos públicos, em empresas de construção, nas imobiliárias, na academia, na gestão de obra, na fiscalização ou na produção cultural. Uma das peças fundamentais, na construção deste mosaico, é a figura do arquitecto municipal.
Nos municípios, enquanto técnicos especializados, os arquitectos municipais assumem funções de grande responsabilidade nas áreas do urbanismo e do ordenamento do território, na apreciação de projectos para licenciamento municipal, na gestão e lançamento de concursos de concepção, na elaboração de regulamentos e normas ou na concepção de projectos municipais. O arquitecto municipal assume assim o papel de defensor do interesse público, responsável pela salvaguarda do património edificado e da paisagem construída.
Na linha da frente dos debates municipais mais tensos e polémicos, encontram-se os arquitectos que assumem cargos políticos associados ao pelouro do urbanismo. Por outro lado, o arquitecto municipal, na prática do seu trabalho enquanto quadro da administração pública local, costuma passar praticamente despercebido.
No entanto, nos últimos anos, a figura do arquitecto municipal tem ganho uma maior visibilidade e uma maior possibilidade de intervenção no espaço público. Mesmo a nível historiográfico, o contributo dos arquitectos municipais está a ser recuperado e a ser objecto de investigação, como por exemplo com a publicação recente do livro António Correia da Silva: Arquitecto Municipal (Dafne Editora, 2016), da autoria de Domingos Tavares (n. 1939), sobre o arquitecto responsável pelo Mercado do Bolhão ou dos Paços do Concelho no Porto.
Esta crescente visibilidade dos arquitectos municipais acontece devido a uma maior consciência por parte dos autarcas relativamente ao efectivo poder que a arquitectura tem na qualidade de vida dos seus munícipes e na valorização das áreas intervencionadas. Mas é também devida ao saber técnico e empenho cívico dos arquitectos municipais, inseridos em equipas de projecto, gestão urbanística ou planeamento territorial. Esta consciência, influenciada obviamente também por razões eleitorais, resulta numa aposta clara no desenvolvimento de projectos estruturais e significativos para o edificado e o território.
Este fenómeno de visibilidade da arquitectura municipal deve muito a intervenções como as de Miguel Figueira (n. 1969), vencedor do Prémio AICA/SEC/Millennium BCP 2011 de Arquitectura, enquanto responsável pela Divisão de Projecto Urbano da Câmara Municipal de Montemor-o-Velho, onde foi autor de projectos como o Centro de Alto Rendimento ou o Percurso Pedonal Assistido. Segundo a acta do júri do prémio, “fora da grande encomenda e do estatuto autoral associado ao atelier privado, Miguel Figueira demonstra que a prática da arquitectura no quadro público pode melhorar as condições para a comunidade local, mas também lançar programas de impacto global”.
A atribuição deste prémio, realçando também o “trabalho exemplar na reabilitação do espaço público”, terá igualmente contribuído para a dignificação e reconhecimento da importância do arquitecto municipal no exercício da sua profissão, ao serviço do bem comum.
É neste contexto que devemos enquadrar o trabalho do arquitecto Guilherme Machado Vaz (n. 1974), autor do projecto de reabilitação do edifício da Real Vinícola, a trabalhar na Divisão de Projecto da Câmara Municipal de Matosinhos desde 1999. Numa secretária, num dos cantos da sala de Divisão de Projecto, Machado Vaz desenvolveu sozinho, desde o início da elaboração do programa, todo o projecto de execução da Casa da Arquitectura e coordenação das várias especialidades.
À semelhança de Miguel Figueira, Machado Vaz é um arquitecto municipal com reconhecimento autoral em vários projectos, como o Parque de Estacionamento de Manhufe ou o Centro Cívico de Custóias (projecto finalista, em 2007, dos dois Prémios Ibéricos de Arquitectura Enor e FAD). Em simultâneo, Machado Vaz concilia a prática na câmara com as aulas na Universidade Lusófona do Porto e com o trabalho no escritório em nome próprio, com obras fora do município de Matosinhos.
Numa das salas da Divisão de Projecto da Câmara Municipal de Matosinhos, conversámos sobre as vantagens e desvantagens em desenvolver o projecto da Real Vinícola com um arquitecto da autarquia. Por um lado, há um maior controlo na gestão da obra, nos orçamentos, nos calendários de execução e nos eventuais acertos durante o processo. Por outro, levanta-se a questão da perda do “estatuto autoral associado ao atelier privado”, e a da não existência de uma equipa de colaboradores, à semelhança de um escritório convencional de arquitectura, com capacidade para assegurar os mais variados níveis e escalas de intervenção projectual.
Se nas câmaras o nome do arquitecto municipal costuma geralmente diluir-se na invisibilidade da sua prática, sem reivindicação da autoria, os casos de Miguel Figueira e Guilherme Machado Vaz vêm sublinhar e reivindicar esse papel numa estratégia territorial mais transparente e responsável, em defesa do interesse público.