4379 cidadãos para a Língua Portuguesa
A existência do AO90 é insustentável — e, no entanto, o AO90 arrasta-se.
No Verão passado, fez agora um ano, tive o azar de dizer em voz alta: “Move-se. E, desta vez, não me parece que possa ser parada.”
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No Verão passado, fez agora um ano, tive o azar de dizer em voz alta: “Move-se. E, desta vez, não me parece que possa ser parada.”
Referia-me à Iniciativa Legislativa de Cidadãos (ILC) contra o Acordo Ortográfico (AO). Este movimento acabava de ganhar um novo fôlego com a redução do número de assinaturas necessárias para apresentar uma ILC no Parlamento (de 35.000 para 20.000) e com a possibilidade de recolhermos as assinaturas em falta por via electrónica. Para cúmulo das facilidades, até o vetusto n.º de eleitor desapareceu, deixando de ser necessário para a subscrição. Cheguei a ponderar um “não pode ser parada”. Felizmente, mantive o “não me parece” — salvei-me assim do pecado da soberba, limitando-me a ser ingénuo.
Em meu abono, convenhamos que o cenário era francamente animador. Se foi possível reunir mais de 14.000 assinaturas no tempo das vacas magras, quando era preciso assinar fisicamente um papel e enviá-lo pelo correio, não haveríamos de conseguir agora uns meros 5000 e poucos cliques de rato? Parecia fácil. Parece fácil, ainda hoje...
Do ponto de vista científico o AO90 era, e ainda é, indefensável. O Português Europeu e o Português do Brasil não são miscíveis — não podemos escrever “desporto” numa frase e optar por “esporte” no parágrafo seguinte. A ideia de uma ortografia comum para duas Línguas onde TUDO é diferente — vocabulário, sintaxe, prosódia, criação de neologismos — só podia resultar num absurdo. Como se previa, o AO tornou-se a “ortografia” do desconchavo, da facultatividade, do substantivo-com-espaços, do agravo estético, das dezenas de novas homofonias e homografias tão prejudiciais quanto perfeitamente evitáveis.
Não admira que muitos portugueses continuem a considerar o AO90 uma “ortografia” ridícula e sem estilo — boa para um efeito cómico fácil mas pouco adequada ao discurso sério.
Do ponto de vista político, o contexto era, e ainda é, um desastre! Na CPLP, o Acordo Ortográfico é um corpo estranho, um entrave ao que poderia ser uma verdadeira política de intercâmbio cultural. Em vez da troca de experiências e da criação de um circuito artístico deu-se primazia ao “turismo linguístico” em que os mesmos quatro conferencistas de sempre fazem a tournée mundial da defesa do AO90. Será certamente mais barato fazer um Acordo Ortográfico mas o Teatro, a Dança ou a Música nada ganham com isso. Nem a Literatura. Nem sequer, ironia, a edição de livros. De resto, Angola e Moçambique não assinam nem estão preocupados com o Acordo, a Guiné Equatorial não sabe que ele existe e o duvidoso estatuto de Língua oficial da ONU não responde ao problema cientifico: se não são miscíveis, de que variante estamos a falar quando falamos em Língua oficial nas Nações Unidas? Aceitam-se apostas.
Finalmente, do ponto de vista social o cenário era, e ainda é, calamitoso. Com o AO veio a noção de arbitrariedade ortográfica, do “agora tanto faz” e do “escreve-se das duas maneiras”. Instalou-se o cAOs ortográfico, que o ensino do AO nas escolas ameaça agravar.
Nesta conjuntura, com o Acordo Ortográfico em tão mau estado, reunir as assinaturas em falta parecia uma brincadeira de crianças. Parecia… mas não foi.
Aconteceu um pouco de tudo. Para começar, a plataforma Causes juntou-se ao grande “has-been” tecnológico onde estão o Napster e o Altavista — de uma assentada, perdemos o contacto com mais de 120.000 seguidores da ILC. As únicas vias de comunicação com os nossos subscritores passaram a ser a nossa página no Facebook, com cerca de 9.500 seguidores, e o sítio oficial da ILC, em www.ilcao.com. Claro que o Facebook não permite o contacto directo com seguidores — uma publicação nessa rede pode nem chegar a um décimo das pessoas que seguem uma página.
Aconteceu, também, a dispersão dos próprios anti-acordistas. É um fenómeno estranho, mas real: há quem assine tudo o que for contra o AO... excepto esta ILC. Queixas na Provedoria, petições, cartas abertas, pedidos de referendos, manifestações e até — pasme-se — uma petição “com valor simbólico de ILC”. Tudo é preferível à participação numa ILC a sério.
Nenhuma daquelas iniciativas produziu resultados. Mas, a cada revés, os seus promotores optam sempre por começar algo novo, a partir do zero. Apoiar uma ILC praticamente concluída parece estar fora de questão.
Que mais pode acontecer? Que tal uma nova mudança nas regras das ILC? Sim, a notícia do fim do n.º de eleitor revelou-se algo exagerada. Esta ILC pôs de pé um portal para subscrição online da Iniciativa — suprindo o vazio criado pela Lei, que assegurou essa possibilidade na teoria mas não na prática.
Passado menos de um ano, eis que esse portal se torna obsoleto. Sob protesto, lá tivemos de meter novamente mãos à obra, acrescentando os campos que, aos olhos da Assembleia da República, são afinal imprescindíveis.
Tudo isto — "redes sociais" que não funcionam, tiros no pé de anti-acordistas e burocracia da Assembleia da República — afecta bastante a luta contra o Acordo.
Mas nada é tão pernicioso como o muro de indiferença que continua a rodear este assunto. A existência do AO90 é insustentável — e, no entanto, o AO90 arrasta-se. Este paradoxo, alimentado pelo desnorte de sucessivos governos no capítulo da Língua, é um duro teste à nossa capacidade para resistir ao disparate.
A própria Assembleia da República contribui para o marasmo ao criar (mais) um Grupo de Trabalho para avaliar o impacto do AO90. Os testemunhos recolhidos até agora não serão já suficientes para que se tirem conclusões? Aparentemente, não. A única conclusão do GT, até ao momento, é a de que deve continuar a avaliar.
Mas há mais e pior: a anunciada "revisão" do AO90, que ameaça tornar-se a machadada final no Português Europeu. Se se concretizar, tornar-se-á uma emenda pior do que o soneto. Se não se concretizar, terá consumido a esperança de quem, à falta de melhor, viu na revisão o remendo possível para o AO90. Para já, o único resultado desse anúncio parece ser uma anestesia ainda maior da luta contra o Acordo.
Vêm-me à memória as palavras de Nuno Pacheco, redactor-principal deste jornal: “Valha-nos, ao menos, a insistência da Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o acordo. Deviam assiná-la todos os que ainda não perderam a coragem.”
Pela parte que nos toca, não contem connosco para deitar a toalha ao chão. O “endereço” para a subscrição electrónica aqui fica: https://ilcao.com/subscricoes/subscrever.
Se estão fartos de petições, de iniciativas de referendo ou de promessas de revisão, assinem. Se nunca ouviram falar desta ILC, assinem. E se tiverem 4379 amigos*, tragam-nos também. O futuro da Língua Portuguesa está nas vossas mãos.
*N.º de assinaturas que faltam para as 20.000
NOTA: Por lapso, a versão que inicialmente se publicou neste espaço foi a mais reduzida, destinada à publicação na edição em papel, agora substituída pela versão integral.