Arquitectura com janelas de vidro
Matosinhos vai finalmente ter a Casa da Arquitectura. É na antiga Companhia Real Vinícola, reconvertida pelo arquitecto Guilherme Machado Vaz com um projecto que inclui museu, arquivo, espaço de exposições, auditório e outras vertentes de animação cultural. A inauguração é a 17 de Novembro.
Logo à direita de quem entra, um colorido painel em azulejo atesta a patine de um edifício centenário: a Cia. Vinícola Portuguesa anuncia com o rótulo Victoria “o melhor vinho do Porto”, com "succursal" (sic) em Lisboa, na Rua Áurea. Um pouco mais à frente, inscritas numa escada exterior nova construída em betão, letras com um brilho baço identificam a nova Casa da Arquitectura (CA).
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Logo à direita de quem entra, um colorido painel em azulejo atesta a patine de um edifício centenário: a Cia. Vinícola Portuguesa anuncia com o rótulo Victoria “o melhor vinho do Porto”, com "succursal" (sic) em Lisboa, na Rua Áurea. Um pouco mais à frente, inscritas numa escada exterior nova construída em betão, letras com um brilho baço identificam a nova Casa da Arquitectura (CA).
Dez anos, dois projectos, dois arquitectos, dois directores executivos, três presidentes da câmara e algumas pré-inaugurações depois, aí está finalmente a instituição com que a Câmara Municipal de Matosinhos quer inscrever definitivamente a cidade no mapa da arquitectura do país – e também mostrar além-fronteiras que leva a sério ser a terra natal de Álvaro Siza.
É verdade que não se trata já da concretização do ambicioso projecto que o primeiro arquitecto Pritzker português foi convidado a desenhar para a instituição, há cerca de uma década, e que a crise económica associada a escolhas políticas fizeram ficar pelo caminho. Trata-se de algo bem diferente, num outro lugar, e que se apresenta com a ambição de se erigir como motor de regeneração urbana e de animação cultural numa zona mais esquecida da cidade.
A CA vai ter inauguração oficial no fim-de-semana de 17 a 19 de Novembro, com um programa de animação que inclui exposições, música e várias outras iniciativas, reivindicando-se – diz o seu director executivo, Nuno Sampaio – como “o primeiro museu português exclusivamente de arquitectura que tem arquivos e espaços de exposição no mesmo edifício”.
A nova sede, que prolonga e optimiza as instalações inicialmente localizadas, em 2009, no Centro de Documentação Álvaro Siza – na casa onde o arquitecto viveu parte da sua juventude –, situa-se agora no quarteirão resgatado da ruína da Companhia Real Vinícola. Construído entre 1897 e 1901 pela Sociedade Menéres & Companhia, este complexo industrial esteve activo até aos anos 30, tendo depois entrado em degradação até ser classificado e adquirido pela autarquia.
Ainda sob a presidência autárquica do recém-desaparecido Guilherme Pinto (1959-2017), a Real Vinícola foi escolhida para albergar a CA, e o projecto de adaptação entregue a um arquitecto da câmara, Guilherme Machado Vaz (n. Porto, 1974). “Foi um convite muito honroso, para um projecto muito especial”, explica ao Ípsilon o arquitecto, que é também autor de outros equipamentos públicos em Matosinhos, como o Centro Cívico e o Campo de Futebol de Custóias, uma escola primária em Leça da Palmeira ou uma esplanada no Jardim Basílio Teles.
Foi com ele que iniciámos a visita às novas instalações da CA, a pouco mais de duas semanas da inauguração, ainda com trabalhos e acabamentos a decorrer, mas já com a possibilidade de vermos e percebermos bem a lógica e o resultado do projecto.
“A minha preocupação foi manter as características originais da fábrica, um complexo industrial de tradição inglesa”, explica Machado Vaz, enumerando duas ou três marcas na sua intervenção que fugiram a esse programa: desde logo, as duas escadas em betão que saem e se individualizam nos dois extremos do pavilhão principal, claramente demarcadas da estética do edifício histórico. “Tivemos de seguir os novos regulamentos de segurança, e optei por colocar as escadas do lado de fora para não ferir a harmonia da estrutura existente, e simultaneamente dando-lhe uma leitura contemporânea”, diz.
Duas outras alterações estruturais foram a abertura de janelas na parede norte do quarteirão, na ala que vai acolher as lojas de comércio, tornando assim visíveis da rua as novas funcionalidades do equipamento; e a manutenção, num gesto ecologista, dos dois ulmeiros que entretanto cresceram entre as ruínas da velha fábrica. “Achámos que as árvores tinham conquistado o seu lugar, e com elas conseguimos até organizar melhor o espaço, criando um pátio e uma nova entrada para a segunda galeria de exposições”, nota o arquitecto.
História e transparência
No resto, Guilherme Machado Vaz cuidou principalmente de adaptar a fábrica original às exigências do novo inquilino. “A minha base foi o projecto do arquitecto Siza, cujo programa estudei e adaptei ao novo edifício, encolhendo-o, mas mantendo todos os espaços previstos, à excepção da zona do tratamento dos arquivos, que na altura não estavam contemplados”, diz o arquitecto ao conduzir-nos naquele que será o percurso normal do visitante.
Depois de franqueada a porta principal (e única) na Avenida Menéres, que mantém o velho portão castanho em ferro, entra-se pelo lado direito na Casa da Arquitectura propriamente dita, na zona que antigamente acolhia os escritórios da Real Vinícola, e que “era o edifício mais nobre e mais trabalhado do conjunto”, explica o guia. No percurso pela recepção, bilheteira, bengaleiro e loja, apercebemo-nos da solução encontrada por Machado Vaz para distinguir materialmente os equipamentos: em cubículos de madeira, estão os serviços abertos aos visitantes (casas de banho, bengaleiro, etc); nos de metal, ficam os equipamentos técnicos.
No átrio de entrada, o visitante é surpreendido com uma grande janela-vitrina que mostra, no piso zero, toda a área e a azáfama do trabalho nos arquivos. “Além da transparência sobre aquilo que aqui se faz, esta foi uma forma de dar a ver a parte mais bonita do edifício, que é a estrutura metálica e o tecto e travejamento originais de madeira”, justifica o projectista.
Na subida ao torreão que agora acolhe a biblioteca e a sala de consultas, o velho travejamento chamou especialmente a atenção do arquitecto brasileiro Paulo Mendes da Rocha. “Quando visitou o edifício e viu estre travejamento, ele ficou maravilhado e disse que, só com ele, podia dar-se uma aula de arquitectura, pela sua beleza mas também pela solidez construtiva de algo que se mantém aqui há mais de cem anos”, recorda Machado Vaz.
O piso 1 é todo ele open space – são cerca de 800 metros quadrados –, dedicado às grandes exposições da CA. A visita do Ípsilon coincidiu com o início da montagem da mostra inaugural, Poder Arquitectura, com o espaço a ser adequado a esse conteúdo. Além dos painéis laterais que escondem as estruturas técnicas, o arquitecto deixou a galeria “completamente aberta para se poder montar as exposições conforme as conveniências”. No topo leste, uma estrutura também amovível permite configurar um auditório com 200 lugares. Logo a seguir, fica a zona administrativa, com salas, gabinetes e outros serviços para a equipa da Casa.
Descendo ao piso zero, temos as salas e os equipamentos de tratamento dos arquivos, explicados ao Ípsilon já por Nuno Sampaio, que entretanto chegara. “Esta é a parte mais cara do edifício, já que implicou investimentos tecnológicos muito específicos”, diz, exemplificando com as quatro salas especificamente dedicadas a fotografias e filmes, a documentação em papel, a desenhos e painéis, a maquetas.
Segue-se a área de tratamentos, com um espaço para expurgo, desinfestação e limpeza, e também a sala que o director executivo designa mesmo como de “pequena hospitalização” para peças que dela necessitem. No final, todas os documentos e objectos serão identificados e metidos numa plataforma digital, que a CA disponibilizará a todos os interessados, em Portugal e no estrangeiro.
Para a montagem deste serviço, a Casa está e vai continuar a estabelecer intercâmbio com várias instituições congéneres, portuguesas e estrangeiras. No passado dia 2 de Novembro, assinou um protocolo de colaboração com a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), que lhe dará acesso ao Sistema de Informação para o Património Arquitectónico (SIPA), actualmente instalado no Forte de Sacavém. Com ele, a CA irá lançar uma plataforma online de consulta gratuita sobre as colecções e acervos de arquitectos.
Refira-se que, actualmente, entre doações e depósitos, a colecção da CA inclui projectos, desenhos e maquetas de obras construídas em Matosinhos por arquitectos como Álvaro Siza, Fernando Távora, Alcino Soutinho, Nuno Brandão Costa e Eduardo Souto de Moura, a que se acrescenta o projecto do Museu dos Coches, da autoria de Paulo Mendes da Rocha e Ricardo Bak Gordon.
“O SIPA foi a nossa principal referência para a instalação destes equipamentos, porque nos permitiu ter um conhecimento muito concreto sobre aquilo de que precisávamos para responder a todas as necessidades, e também para configurar o trabalho da nossa instituição”, diz Nuno Sampaio, acrescentando que a CA firmou já também um protocolo com a Fundação Marques da Silva, no Porto, e vai estabelecer relações com outras instituições.
A visita à ala da arquitectura do edifício termina com a passagem pelo espaço para iniciativas temporárias – a Galeria da Casa, junto a uma das árvores –, uma área de cerca de 200 metros quadrados que a instituição “quer abrir à sociedade e a todos quantos queiram trazer coisas à Casa”. Além de exposições – a primeira das quais será dedicada à X Bienal Ibero-Americana de Arquitectura e Urbanismo –, poderá acolher conferências, lançamentos de livros e outras manifestações ligadas ao mundo da arquitectura.
Quarteirão cultural
Na ala oposta, a Casa da Arquitectura vai ter o Serviço Educativo, ao lado de várias lojas comerciais para cuja concessão a câmara lançou já um concurso público.
“Queremos que isto se transforme num verdadeiro quarteirão de actividades culturais”, diz Nuno Sampaio. E no centro dessa movida estará a Orquestra Jazz de Matosinhos (OJM), que vai também ter a sua sede e sala de concertos – chamou-lhe Espaço CARA (Centro de Alto Rendimento Artística) – no topo nascente do recinto.
Ao centro, dois pavilhões que também integravam o complexo industrial – “era daqui que saía a linha de comboio que atravessava Matosinhos e levava os vinhos e outros produtos para o porto de Leixões”, nota Guilherme Machado Vaz – vão agora ser um restaurante e um espaço multiusos (aberto, mas com cobertura), também para ser utilizados e animados por entidades exteriores à Casa.
A expectativa de Nuno Sampaio é que estas valências ajudem também a mobilizar o grande público para ver exposições e iniciativas ligadas à arquitectura. “Guilherme Pinto, que era um visionário, dizia-nos sempre: ‘Atenção que isto não é para ser a Casa dos Arquitectos, é a Casa da Arquitectura’”, recorda o director executivo. “Quanto maior for o entendimento do grande público quanto à importância da arquitectura na sua qualidade de vida, no seu espaço de trabalho, familiar ou de lazer, mais exigência ele terá junto dos técnicos, dos profissionais e dos poderes públicos”, acredita Nuno Sampaio.
Lembrando que a arquitectura é a única actividade cultural que não conta com apoios do Estado, Nuno Sampaio realça que ela é também "a única área, em Portugal, que terá de ser citada (e visitada) por quem queira fazer a história desta arte no século XX" e que "isso faz toda a diferença”. E "somos dos raros países da nossa dimensão a ter dois prémios Pritzker".
Estabelecendo um paralelismo com duas outras instituições relevantes no Grande Porto – a Casa da Música e o Museu de Serralves –, o director executivo e arquitecto diz que a CA vem fechar um triângulo disciplinar, e “perfila-se para ser a entidade nacional” na sua área. “É muito curioso lembrarmos que as duas outras nasceram com a presença do Estado lá dentro, enquanto a CA se fez por ela própria, apenas por iniciativa da autarquia”, nota.
Com um orçamento global de sete milhões de euros, a obra de restauro e adaptação da Real Vinícola custou 3,2 milhões (com 2,75 milhões de fundos comunitários), o equipamento e tratamento dos arquivos 2,5 milhões, a somar a outras despesas, incluindo a compra da propriedade pela autarquia, já nos anos 90.