“Qualquer português medianamente inteligente terá vergonha” de perder os seus melhores cientistas

Maria de Sousa recebeu o prémio da Universidade de Lisboa. E evocou Bernardino Machado: uma nação “que nada cria, inventa e descobre, e apenas vive de empréstimos materiais ou espirituais”, não está longe de perder a sua autonomia.

Fotogaleria

“Temos pessoas da maior qualidade. Podíamos ser respeitados internacionalmente pela qualidade da ciência que produzimos e andamos aí, para a trás e para a frente.” As declarações são de Maria de Sousa, a cientista portuguesa que nesta segunda feira recebeu o Prémio Universidade de Lisboa 2017, aludindo à quase inevitável emigração dos jovens cientistas nacionais que não encontram lugar em Portugal.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

“Temos pessoas da maior qualidade. Podíamos ser respeitados internacionalmente pela qualidade da ciência que produzimos e andamos aí, para a trás e para a frente.” As declarações são de Maria de Sousa, a cientista portuguesa que nesta segunda feira recebeu o Prémio Universidade de Lisboa 2017, aludindo à quase inevitável emigração dos jovens cientistas nacionais que não encontram lugar em Portugal.

“Qualquer português medianamente inteligente terá vergonha se perdermos esse grupo [de investigadores] criado a partir de 2007 com o Programa Ciência”, afirma na intervenção escrita, que preparou para a cerimónia.

O Prémio Universidade de Lisboa, que visa distinguir o mérito de uma individualidade que tenha contribuído de forma notável para o progresso da ciência ou da cultura e para a projecção de Portugal no mundo, foi atribuído este ano à imunologista de 77 anos. Na sua intervenção desta segunda-feira à tarde, a professora começou por evocar Bernardino Machado: “Ser instruído é ser livre. Uma nação sem originalidade, que nada cria, inventa e descobre, e apenas vive de empréstimos materiais ou espirituais, se, pelo prestígio do nome herdado, ainda conserva a sua autonomia, não está longe de perdê-la.”

Citou "vozes que valorizaram a ciência"

Também citou Abel Salazar, mais concretamente uma carta deste a Celestino da Costa de 1921: “Dêem-nos autonomia, dotações próprias para bibliotecas e publicações e isto marcha, de outra forma gastam-se dois terços das energias a vencer obstáculos imbecis!” E evocou ainda Pires de Lima, “uma década depois”: “Carecemos da mais ampla autonomia dentro dos institutos científicos de Portugal. Uma disposição legal deve regular claramente os direitos e os deveres do pessoal dos laboratórios, os quais precisam de ter uma dotação condigna.”

Estes nomes, como outros que Maria de Sousa mencionou, “são apenas alguns dos nomes das vozes que valorizaram a ciência integrada na universidade mas que por constrangimentos políticos, de financiamento, de cultura em geral, morreram sem conseguir verdadeiramente revolucionar a universidade ou cumprir o desejo de transformar o país num país que se faria respeitar pela prática da ciência e a projecção internacional dos seus cientistas”. Isso viria só a ser possível, sublinhou, “com a entrada de Portugal na União Europeia em 1986, a modificação do financiamento atribuído à ciência” e a abertura a bolsas de doutoramento encetada por José Mariano Gago (ministro nos XIV, XVII e XVIII governos constitucionais).

A cientista introduziu a certa altura o que chamou de parêntesis. “Permitam-me um parêntesis de reconhecimento dos nossos estudantes GABBA [Programa Graduado em Áreas da Biologia Básica e Aplicada da Universidade do Porto] que, eles próprios, sentindo-se parte de uma escola de cientistas, sem paredes, criaram uma associação de antigos alunos designada ATG All Time GABBA de que muito nos orgulhamos. Nada de especial numa universidade americana, mas que muito me agrada poder referir nesta ocasião, porque, como comecei por dizer, sem eles, sem estar em seu nome, talvez não me sentisse tão bem hoje, aqui. E muito embora seja com alguma satisfação e orgulho que sabemos alguns deles professores em prestigiadas universidades fora de Portugal, o verdadeiro desafio será encontrar forma de mobilizar o país para os considerar.”

Explosão do numero de bolsas

E prosseguiu: depois da explosão do numero de bolsas de doutoramento da responsabilidade de Mariano Gago, houve “um segundo momento” de investigadores da Fundação Para a Ciência e Tecnologia. “Desse segundo momento resultaram entre 600 a 800 investigadores hoje directores de grupo entre os 40 e 50 anos, prontos a constituir uma estrutura sustentável de todos os ramos da ciência em Portugal. É sobretudo neste grupo que se encontram os recipientes de grandes bolsas internacionais” mas “a universidade parece não querer ou não poder integrá-los e o Governo vai implementar um decreto-lei que vai empregar milhares de 'pós-docs' com 6 anos de doutoramento”.

São “jovens investigadores que levarão mais 30 anos a estarem prontos a liderar, altura em que os presentes professores catedráticos terão perto de cem anos e os prontos a liderar hoje terão tido que aceitar lugares em universidades estrangeiras”.

E rematou: “Qualquer português medianamente inteligente terá vergonha se de facto perdermos esse grupo que tão inteligentemente foi criado a partir de 2007 com o Programa Ciência.”

Falta filantropia na ciência

À margem da cerimónia, em declarações à Lusa, Maria de Sousa alertou para “as consequências terríveis”, não só para o país e para a ciência que não produz, mas para os cientistas, que pessoalmente vivem “uma grande incerteza”, porque “fica tudo empanado nas Finanças”.

Ainda assim, Maria de Sousa entende que o problema não é apenas de dinheiro e defende “uma conjugação de factores” que permita aproveitar “a qualidade individual” dos jovens cientistas. “Para isso é preciso ter sistemas abertos que promovam a competitividade”, disse, apontando como exemplo a Fundação Champalimaud.

E é também na Fundação Champalimaud que se apoia para criticar a escassez de exemplos em Portugal como o desta instituição, que tem na base a filantropia de António Champalimaud, banqueiro e empresário português que morreu em 2004, considerado um dos homens mais ricos de Portugal.

“Não temos tradição de filantropia na ciência em Portugal e a ciência beneficiaria largamente disso”, disse a imunologista portuguesa.

Maria de Sousa disse que “há coisas muito interessantes a acontecer em todas as áreas, não só na ciência” e que o mecenato deveria ter maior expressividade, em benefício próprio. “Portugal é, de facto, um país muito interessante. É melhor sermos nós a descobrir isso antes que venha alguém de fora descobrir por nós”, disse.

Sobre o prémio que lhe foi entregue numa cerimónia no Salão Nobre da Reitoria da Universidade de Lisboa, a cientista disse ter sido uma surpresa. “Os cientistas não esperam ser reconhecidos. De maneira geral, ninguém sabe quem são os cientistas, conhecem apenas o resultado do seu trabalho. A pessoa não espera ser reconhecida. Um prémio é uma coisa que deixa a pessoa boquiaberta. E eu, quando fechei a boca, fiquei muito contente.”

"Respeitada na comunidade científica"

Numa nota biográfica disponibilizada pela universidade apresenta-se a imunologista, licenciada em Medicina pela instituição, como uma cientista “profundamente estimada e muito respeitada na comunidade científica” que é também “uma humanista que cultiva o gosto pelas artes, pela história e pela poesia”.

O prémio, entregue anualmente, e suportado pela Caixa Geral de Depósitos, tem o valor de 25 mil euros. O júri integra António Cruz Serra, Jorge Manuel Barbosa Gaspar, Paulo Macedo, José Maria Brandão de Brito, Carlos Salema, José Pedro Sousa Dias, Maria do Carmo Fonseca, Eduardo Paz Ferreira, Teresa Patrício Gouveia, Guilherme D’ Oliveira Martins e David Dinis, director do PÚBLICO.