Portugal hoje: patriotismo de teclado
Se acham que a realização de um banquete sob a cúpula central ofendeu a memória de Amália na sala lateral, por que raio ninguém se lembra de perguntar se as missas também lá celebradas no altar principal ofendem os republicanos Teófilo Braga ou Manuel de Arriaga na outra sala lateral?
Até este fim-de-semana, eu tinha razão para acreditar que conhecia e estimava bastante o Panteão Nacional. Por coincidência, foi no Panteão Nacional o meu primeiro trabalho de verão pago, como guia turístico, teria eu quinze anos. A primeira lição, dada por um dos guardas do monumento ali mesmo na nave principal de Santa Engrácia, foi esta: “aquilo que vocês estão a ver e que parecem túmulos, não são túmulos, percebem? Chamam-se cenotáfios. São túmulos encenados, vazios. Simbolizam o Camões, o Gama, e outros, mas cada um deles está enterrado num sítio diferente longe daqui. Não se esqueçam disso e não enganem os visitantes.”
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Até este fim-de-semana, eu tinha razão para acreditar que conhecia e estimava bastante o Panteão Nacional. Por coincidência, foi no Panteão Nacional o meu primeiro trabalho de verão pago, como guia turístico, teria eu quinze anos. A primeira lição, dada por um dos guardas do monumento ali mesmo na nave principal de Santa Engrácia, foi esta: “aquilo que vocês estão a ver e que parecem túmulos, não são túmulos, percebem? Chamam-se cenotáfios. São túmulos encenados, vazios. Simbolizam o Camões, o Gama, e outros, mas cada um deles está enterrado num sítio diferente longe daqui. Não se esqueçam disso e não enganem os visitantes.”
Pelo menos desde essa época, o monumento sempre esteve aberto a eventos mais ou menos culturais, mais ou menos festivos, bem como - paradoxalmente para um Panteão Nacional de uma república laica - a missas católicas.
Chega porém a notícia de que houve um jantar da Web Summit em Santa Engrácia, e descubro que todo o meu país conhece a fundo e sempre adorou o Panteão Nacional. A “polémica do dia” - expressão que nunca melhora o dia e jamais enobrece as polémicas - varre as redes sociais. O primeiro-ministro considera o evento “indigno”. O Presidente mostra desagrado. A oposição pede demissões. E nas redes chego a ler, estupefacto, que estamos perante um crime de profanação de cadáver.
Minha gente. Na ala central, onde foi o jantar, não estão - repito, não estão - os restos mortais de ninguém. Noutras salas estão sim, por exemplo, corpos de presidentes e escritores. Porém, se acham que a realização de um banquete sob a cúpula central ofendeu a memória de Amália na sala lateral, por que raio ninguém se lembra de perguntar se as missas também lá celebradas no altar principal ofendem os republicanos Teófilo Braga ou Manuel de Arriaga na outra sala lateral? Se acham que jantar perto do cenotáfio vazio de Camões em Santa Engrácia é escandaloso, por que nunca se escandalizaram quando lá onde está o seu túmulo tido por verdadeiro - nos Jerónimos — se fazem e continuarão a fazer banquetes e eventos?
Não pretendo com estes factos defender a Web Summit pela estética do seu banquete. O que pretendo é atacar a hipocrisia de um debate público, incluindo entre responsáveis políticos, no qual o patriotismo migrou das lapelas para os teclados sempre com a mesma alegre desmemória.
Querem fazer do Panteão sacrossanto? Muito bem. Então lembrem-se que este é o país cuja Assembleia da República aprovou a trasladação de Eusébio para o Panteão um ano após o seu falecimento, mas que ainda não conseguiu para lá levar Aristides de Sousa Mendes quase oitenta anos depois de ele ter salvado milhares de vidas na II.ª Guerra Mundial. Mais: este é o país no qual, se acontecesse a desventura de falecer Cristiano Ronaldo, a AR teria em toda a coerência de levar o CR7 para o Panteão ainda antes de lá pôr um “justo entre as nações” como Aristides. E repetir-se-ia para muitos dos escandalizados de hoje o aplauso geral com que não falharam ontem.
Querem respeitar o simbolismo dos monumentos nacionais? Muito bem. Reparem então, de cada vez que passarem pela Praça do Comércio, espaço central da nossa simbólica de Estado, que a República mais visível que lá encontrarão é a República… da Cerveja. Reparem que um pedaço mesma praça está ocupado por uma coisa chamada o “WC mais sexy do mundo”, concessionado para permanente propaganda de uma marca de papel higiénico (é ao lado do Ministério das Finanças; paga-se 50 cêntimos para usar os urinóis e passam fatura com número de contribuinte, portanto deve estar tudo certo). Isto nunca escandalizou ninguém em Portugal. Perguntem-se se o mesmo aconteceria na Praça de São Pedro, no Louvre ou no Kremlin.
Querem preocupar-se com a desvalorização da memória? Preocupem-se com coisas mais duradouras do que as três horas de um banquete. Este é o país no qual um governo do PSD e do CDS aboliu os feriados da Implantação da República e o da Restauração da Independência para agradar a credores que nem tal coisa tinham pedido. Apenas e só a República e a Restauração da Independência! Coisas de pouca importância para os políticos que tomaram tais decisões, mas que agora pedem demissões por um jantar, numa duplicidade pouco menos do que pornográfica. E que, porém, não escandaliza ninguém.
Tudo isto é, no fundo, o prato do dia. Tão certo como a polémica do dia. Nos outros dias, perguntar-nos-emos porque falha o Estado. Pois olhem, falha também sempre que os cidadãos, opinadores e políticos, à falta de patriotismo informado, optam pelo patriotismo de teclado.