Visitar um cemitério como um museu: o turismo que mostra “outro lado” das cidades

Das curiosidades mórbidas à história da arte e património, há um mundo novo por descobrir no turismo negro e cemiterial. E cada vez mais adeptos. ISCET criou o primeiro curso livre português (e talvez europeu) sobre o tema

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Paulo Pimenta

Nas muitas visitas guiadas por cemitérios que Francisco Queiroz já fez, apanhou de quase tudo. Gente seduzida por coisas mórbidas, os chamados “maluquinhos das caveiras”, mas também (e sobretudo) muitas pessoas interessadas nas vertentes de história da arte e património, que “vão a uma visita destas como se estivessem a ver um museu”. E ainda as famílias, muitas delas com crianças cheias de perguntas difíceis: “É interessante ver as reacções delas”, conta o investigador da Universidade do Porto e especialista em História da Arte.

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Nas muitas visitas guiadas por cemitérios que Francisco Queiroz já fez, apanhou de quase tudo. Gente seduzida por coisas mórbidas, os chamados “maluquinhos das caveiras”, mas também (e sobretudo) muitas pessoas interessadas nas vertentes de história da arte e património, que “vão a uma visita destas como se estivessem a ver um museu”. E ainda as famílias, muitas delas com crianças cheias de perguntas difíceis: “É interessante ver as reacções delas”, conta o investigador da Universidade do Porto e especialista em História da Arte.

O tema começou a ser debatido por cá há coisa de dez anos. O interesse vem crescendo e agora, acredita Francisco Queiroz, este é “um processo imparável”. Por isso, há coisa de ano e meio, no Instituto Superior de Ciências Empresariais e do Turismo (ISCET), no Porto, começaram a magicar um curso que respondesse a esta tendência.

Acontece nos dias 17 e 18 de Novembro, com sete horas de formação teórico-prática, visita ao cemitério da Lapa incluída. “Do turismo negro ao turismo cemiterial” (que não são a mesma coisa: já lá vamos), curso livre, aberto a todos e com inscrições abertas até quarta-feira, 15 de Novembro, por um preço de 90 euros, percorrerá as principais atracções nacionais e internacionais do turismo negro, bem como o seu papel social e questões éticas e políticas que arrasta; explicará a origem e evolução do turismo cemiterial, os seus pontos de maior interesse; e terá ainda um lado mais virado para guias turísticos: como planear e fazer uma visita.

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Cemitério dos Prazeres, em Lisboa Daniel Rocha

Em Portugal há ainda “muito por fazer” nesta matéria. No Porto e em Lisboa já se fazem visitas guiadas a alguns cemitérios, mas noutras cidades esses são eventos excepcionais. A explicação cabe sobretudo no “preconceito” à volta do tema, sobre o qual se tem produzido poucos conteúdos: “Não é qualquer guia que faz uma visita guiada a um cemitério, é preciso conhecer bem”, explica o investigador, que orientará o curso com Belmira Coutinho, autora da primeira tese de mestrado sobre o tema. As editoras mostram-se relutantes em apostar no assunto — e até nas universidades existem barreiras: “Se houvesse mais docentes a incentivar os alunos a fazer teses de mestrado, as coisas estariam bem melhores”, analisa Francisco Queiroz, cuja tese de doutoramento se debruça sobre essa matéria.

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A Lapa é o mais antigo cemitério católico de Portugal Nelson Garrido

Vamos então aos pontos nos is: qual a diferença entre turismo negro e cemiterial? O primeiro não tem necessariamente os cemitérios como epicentro — se for uma viagem por locais onde tenha morrido muita gente ou haja uma forte memória de sofrimento, então estamos a falar de turismo negro: Auschwitz, o Tarrafal, até o forte de Peniche, onde presos políticos foram torturados, são exemplos disso. Já o segundo restringe a área de actuação aos cemitérios.

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Aula prática do curso vai decorrer no cemitério da Lapa, no Porto Paulo Pimenta

E muito há para dizer sobre eles. Nos cemitérios cabe “o outro lado das cidades”, uma nova narrativa. “Pistas fantásticas para perceber história da arte”. Há esculturas. Pequenas obras arquitectónicas. Muitas vezes, o estudo de estilos e materiais usados passa por aquelas obras “em miniatura” que “são quase experimentais”. Um exemplo: “Há um jazigo engraçado no cemitério dos Prazeres que por baixo diz ‘cimento armado’. Quem fez aquilo deu-se ao trabalho de escrever aquela nota porque na altura quase não se usava aquele material. São quase experiências”.

Falar de cemitérios é estar próximo da morte. Mas é debater “uma coisa feita para os vivos”, sublinha Francisco Queiroz. “Por muito que se diga que é para os mortos, não é. Toda a arte e os monumentos são para os vivos. Ali, há mensagens morais, cívicas, de vaidade... é como estar num museu.”

E lugares existem em que há mesmo museus dentro dos cemitérios. No principal cemitério de Dublin, construiu-se um na entrada do espaço, com uma secção de pesquisa genealógica, há uma loja com livros sobre cemitérios e temas relacionados com a história da Irlanda, abriu-se uma cafetaria, um serviço de empréstimo de guarda-chuvas. E há uma linha de autocarros que entram no recinto de meia em meia hora.

Por cá, ainda “há muito investimento a fazer”. Mas matéria-prima não falta. No curso livre do ISCET, vai viajar-se pelo mais antigo cemitério católico português, o da Lapa. É um dos poucos criados fora da lei dos cemitérios públicos, sempre foi de elite, tem o maior conjunto de maiores capelas tumulares do país. E por lá jazem figuras como o José Ferreira Borges, jurista e político português, ou o escritor Camilo Castelo Branco. Com muitas histórias para contar.