“Às 4h da manhã começaram a chegar cadáveres de homens, mulheres e crianças”
Relatório da corporação de bombeiros de Odivelas nas 48 horas que se seguiram às cheias de Novembro. Um texto de 1967.
A primeira chamada de pedido de socorro foi recebida pelas 21h10 para o lugar do Silvado, onde havia várias barracas inundadas e animais em perigo. Saiu a viatura A.P.S.T. nº 2, que embora não pudesse chegar ao local, a sua guarnição conseguiu retirar de uma das barracas 4 vitelas e 2 porcos, tendo ajudado várias pessoas a abandonar o local, visto não ser possível esgotar as águas, pois que continuava a chover torrencialmente. Esta viatura foi depois para o Bairro Olaio para as caves que se encontravam inundadas, onde nada puderam fazer senão aconselhar os inquilinos a irem para os andares superiores.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A primeira chamada de pedido de socorro foi recebida pelas 21h10 para o lugar do Silvado, onde havia várias barracas inundadas e animais em perigo. Saiu a viatura A.P.S.T. nº 2, que embora não pudesse chegar ao local, a sua guarnição conseguiu retirar de uma das barracas 4 vitelas e 2 porcos, tendo ajudado várias pessoas a abandonar o local, visto não ser possível esgotar as águas, pois que continuava a chover torrencialmente. Esta viatura foi depois para o Bairro Olaio para as caves que se encontravam inundadas, onde nada puderam fazer senão aconselhar os inquilinos a irem para os andares superiores.
Às 22h30 começaram as chamadas de socorro para gente que se encontrava em perigo nos seguintes locais: Bairro Espírito Santo, Silvado, Pombais, Póvoa de Santo Adrião, Olival de Basto, Senhor Roubado, Urmeira, Bairro de Santa Maria, Pontinha, Serra da Luz, Famões, Bairro da Barrosa, Odivelas etc.
As viaturas começaram a sair por ordem de urgência até às 23h10 como se tratasse de inundações, para nós consideradas normais, mas a partir desta hora verifiquei que o nível das águas já tinha ultrapassado o pontão dos Pombais e o de Odivelas inundando toda a área.
Às 23h40 estava consumada a grande catástrofe com todas as estradas cortadas para Odivelas, e centenas de pessoas a gritar pedindo para as salvar. Foi difícil e árduo o trabalho de todo o pessoal, e para abreviar os serviços que foram prestados, passo a descrever os salvamentos feitos e que foram possíveis de identificar.
O primeiro salvado foi feito nas cocheiras da Câmara Municipal de Loures na Calçada do Tojal, donde retiramos uma mulher entrevada e que estava prestes a morrer afogada.
Na Arroja, Rua A nº 20 C foram salvas de morrerem afogadas duas crianças, cuja identidade é a seguinte: Margarida Felicidade de Jesus Basílio de 3 anos e Dina Teresa de Jesus de 2 anos, filhas de Manuel Batista Basílio e de Maria Rosa de Jesus, residentes na mesma morada. Estes salvamentos foram feitos pelo Bombeiro de 3ª Classe nº 14, o qual a nado e ás escuras conseguiu retirar as crianças, pelo que sofreu vários ferimentos, tendo de ser assistido no local pelo Sr. António Ferramenta, com estabelecimento na mesma Rua no nº 10.
Na Estrada da Arroja foi salvo de morrer afogado o menor de nome António Manuel Santos Leitão, de 15 anos, filho de António da Silva Leitão e de Maria Manuela dos Santos Leitão, residentes na Quintinha da Arroja Letras P.V. r/c. Este salvamento foi feito a nado pelos voluntários Bombeiro de 1ª Classe Nº 2 e pelo 3ª Classe nº 23.
No lugar do Senhor Roubado foram salvos de dentro do carro Austin 850 FG-58-93, o Senhor Alberto de Oliveira Pinto, sua esposa e seus filhos Lígia Maria Fernandes de 5 anos e Celsio Fernandes de 9 meses, moradores na Estrada de Benfica, 91 -3º Esq. Lisboa. Estes salvamentos foram feitos por meio de espia pelos voluntários Subchefe Arlindo e Aspirante nº 40. Estes mesmos voluntários salvaram no mesmo local de dentro doutro automóvel um casal que não puderam identificar.
No lugar do Silvado e Pombais, onde se encontravam um número elevado dos nossos voluntários, foram salvas 25 pessoas entre adultos e crianças com o auxílio de escadas de molas e de cima do telhado dum prédio de lº andar e cerca de 25 pessoas de cima de barracas e arvores. Estes salvados foram feitos sobre a orientação do Subchefe Interino Guilherme, 1ª Classe nº 4 e Aspirantes nºs. 53-56-61-63-64 e MP 58, Auxiliares nºs 6 e 7 e Aspirantes 43, 58 e Auxiliar nº 13, os quais com risco da própria vida conseguiram estes salvamentos. Não foi possível fazer identificações, visto serem tantas pessoas a pedirem socorro.
O Bombeiro de 1ª Classe nº 5 conseguiu salvar de cima de uma barraca junto ao Externato Caravela o senhor Lageira, digo António Duarte Lageira Lemos de 33 anos de idade, que perdeu a sua mulher e dois filhos que não conseguiram resistir até á chegada dos socorros. Neste salvamento colaborou o auxiliar nº 14 e o Cadete nº 5.
Às 23h40 com todo o pessoal e material em serviço e tendo verificado ser necessário mais material, especialmente barcos de borracha e pessoal, pedi auxílio ao B.S.B. o qual não pode comparecerem em virtude de também em Lisboa se verificar grandes inundações e ter também todo o pessoal e material em serviço.
Como a situação continuasse a agravar-se e como o meu Quartel só tem uma linha telefónica que aliás estava sempre impedida com pedidos de socorros, resolvi ligar para o Governo Civil de Lisboa pelas 00h10, pedindo ao Sr. Oficial de serviço Capitão Galhardas a quem comuniquei a situação, para solicitar á Força Aérea um Helicóptero para acudir a tanta gente que ainda se encontrava em perigo e mais solicitei para pedir aos Fuzileiros Navais para me virem ajudar. Este Oficial, que me prestou um auxílio relevante, manteve-se a partir daquele momento sempre em contacto comigo.
Às 00h40 começou a chegar ao meu Quartel os salvados, quase todos em trajos menores, os quais em princípio começaram a ser vestidos com roupas dos nossos voluntários e a quem foram prestados os primeiros socorros, dando-lhes café quente etc.
Às 4h00 da madrugada do dia 26, começaram a chegar cadáveres de homens, mulheres e crianças, que ficaram depositados no nosso Quartel.
Às 5h30 da manhã compareceram os Fuzileiros Navais, comandados pelo Snr. Aspirante Santos Silva e 45 praças que carregaram desde a Calçada de Carriche até ao nosso Quartel 4 Barcos de Borracha.
Em colaboração com o pessoal deste corpo de bombeiros, começaram a fazer pesquisas, tendo recolhido 52 cadáveres.
Às 16h estavam depositados no nosso Quartel 61 cadáveres.
A identidade das pessoas salvas e assistidas no nosso Quartel é a seguinte: Carlos Chivita, Madalena Silva, José da Fonseca, Aurora de Jesus, Maria Júlia e Filhos, António Rosário, António Manuel, Carlos Alberto Andrade, António Silva, Rosaria Mola Capitão, Manuel da Fonseca, Aurora Ferreira e filhos, Fernando Garcia, esposa e filhos, Maria Rosa, José Ferreira, Deolinda Fonseca, João Jesus Lopes e filhos, José Porto, António Nunes, João Vareta, Joaquim Mendonça, Carlos Manuel, António Fernandes, José Firmino, João Brito, Elisa Cunha e filhos e Manuel Antunes.
Por não terem para onde ir, estas pessoas ficaram alojadas na nossa camarata e em macas no parque de viaturas, onde se fez uma divisão entre os vivos e os mortos.
O nosso corpo auxiliar feminino (que estava em organização) montou uma cozinha e serviu durante 4 dias alimentação a todas estas pessoas, e graças ao auxilio que nos foi prestado pelo povo, foi possível vestir toda esta gente e alimenta-la até serem transferidos para a Paróquia de Odivelas, onde o Pároco Sussano montou uma camarata improvisada também.
No dia 26, com receio de epidemia motivada pela permanência dos cadáveres dentro do Quartel, pedi aos Serviços da Assistência para junto da Direcção Geral de Saúde providenciarem as medidas de segurança, o que foi prontamente atendido, tendo no dia 27 a Direcção Geral de Saúde enviado pessoal e material que no nosso Quartel começaram a dar as vacinas.
Dos cadáveres depositados no Quartel, só dois foram entregues ás famílias, tendo todos os outros sido transportados para o Instituto de Medicina Legal.
Nestas inundações ficamos com todas as viaturas danificadas e perdemos o nosso Auto-Pronto Socorro Tanque nº 2, que por motivo de ter ido na enxurrada em Olival de Basto, ficou praticamente sem possibilidades de recuperação.
O nosso trabalho continuou nos dias seguintes, já com a ajuda de várias corporações, na remoção de terras, viaturas, animais mortos e pesquisas de sinistrados. Tendo nestas pesquisas encontrado mais 3 cadáveres.
Os serviços de Saúde estiveram a cargo do Exmo. Senhor Dr. Rogério Proença, Dr. Vamona Sinari e as Enfermeiras D. Ivone Patrocínio e D. Maria Eugénia e os Enfermeiros Senhores 2º Sargento da C.V.P. Manuel Caldeira, Manuel Monteiro Fernandes Palha e José da Conceição Emídio, que desde a madrugada do dia 26, prestaram assistência aos sinistrados dentro do nosso Quartel.
Quartel em Odivelas aos 27 de Novembro de 1967
O Comandante do Corpo
Fernando de Oliveira Aleixo
O texto foi mantido na íntegra e encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO