Amizades de cristal

Ninguém chega à idade adulta sem ter perdido amigos de forma idiota. Funcionasse eficazmente o sistema judicial português e a tão mencionada falta de tempo já teria sido criminalmente punida enquanto assassina de amizades. E muitos de nós julgados

Foto
Luke Ellis Craven/Unsplash

Ando com estas palavras entaladas na garganta (ou nos dedos) há mais de seis meses. Sempre que tento expulsá-las, as teclas encravam, o pulso cansa-se, bebo água, respiro, falta-me o ar, tamborilo com os dedos no caderno ou no computador e volto a escrever. Mas não consigo. Acabo sempre a empurrá-las para baixo, mudo de assunto a meio das frases, penso noutra coisa, distraio-me (olha que mosca tão interessante), desconcentro-me, desvio-me, divirjo ou, sendo realmente honesta, fujo a sete pés — e mesmo assim não é depressa o suficiente. Depois disto, o comboio chega ou recebo uma chamada, ou a minha próxima aula começa, e tenho de simular que a minha mente não está no país dos unicórnios e eu não estou mais trémula do que uma gelatina.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Ando com estas palavras entaladas na garganta (ou nos dedos) há mais de seis meses. Sempre que tento expulsá-las, as teclas encravam, o pulso cansa-se, bebo água, respiro, falta-me o ar, tamborilo com os dedos no caderno ou no computador e volto a escrever. Mas não consigo. Acabo sempre a empurrá-las para baixo, mudo de assunto a meio das frases, penso noutra coisa, distraio-me (olha que mosca tão interessante), desconcentro-me, desvio-me, divirjo ou, sendo realmente honesta, fujo a sete pés — e mesmo assim não é depressa o suficiente. Depois disto, o comboio chega ou recebo uma chamada, ou a minha próxima aula começa, e tenho de simular que a minha mente não está no país dos unicórnios e eu não estou mais trémula do que uma gelatina.

Primeiro porque conseguir que nenhuma das minhas amizades perdidas se sinta personalizada constitui um desafio hercúleo. E não é de todo o que eu quero aqui (será que sei sequer o que quero disto?). E, depois, porque escrever sobre relações é todo um arame sem rede por baixo de um campo de minas em que tentamos não nos assemelharmos demasiadamente nem a uma adolescente à beira de um colapso nem a um psicopata dissecador de emoções humanas. Mas vamos tentar.

O principal problema será, talvez, o facto de sermos perfeitos idiotas. Este pequeno detalhe dificulta-nos o percurso tão eficazmente como a fila do IC19. Com a agravante de nos desviar, por vezes irreversivelmente, do nosso caminho, ou dos caminhos das pessoas que seguem ao nosso lado, tão fartas do trânsito como nós. Desta forma, ninguém chega à idade adulta sem ter perdido amigos de alguma forma idiota. Os do costume. Funcionasse eficazmente o sistema judicial português e a tão mencionada falta de tempo (porque é que temos de ter sempre o pé no acelerador?) já teria sido criminalmente punida enquanto assassina de amizades. E muitos de nós julgados enquanto cúmplices.

Chego ao limite do ridículo quando mantenho uma lista, nas notas do telefone, com os amigos a quem tenho de enviar mensagem naquele mês para ter absoluta certeza de que não os deixo escapulirem-se por entre as frestas da minha existência. Em minha defesa, esta catástrofe de gesto traduz a visão de que manter os nossos por perto deve exigir, no mínimo, a mesma dedicação e rigor que imprimimos às nossas profissões. Uma tentativa modesta de concretizar em acções as palavras que tantas vezes desperdiçamos sobre prioridades. Não suporto palavras maltratadas.

Apesar disto, nem sempre somos idiotas. Ou quando o somos, nem sempre é esse o factor determinante. Confesso, é um fenómeno raríssimo. Mas acontece. Raras vezes. Marcantes o suficiente para eu já ter escrito meia página de desvio, roçando ao de leve no assunto e nem por isso tremendo menos.

Amanhã já não posso gostar de ti. Poucas frases me doeram mais do que esta. Emergida das profundidades da minha alma ou cravada nos olhos de outra pessoa. Dessas raras vezes, alguém se deu conta de que a pessoa do lado já não era a mesma que tinha começado aquele caminho e que a transformação se deu num qualquer sentido que não é tolerável. Ou pior. Às vezes, essa pessoa, ou a ideia que tínhamos dela, nunca existiu. De qualquer das formas, há algo que muda irreversivelmente.

E nesse momento, depois dessa explosão violenta, só resta continuar o caminho. Separadamente, guardando uma cópia de segurança do disco rígido cardíaco com tudo o que fomos antes de termos percebido que não éramos nada do que pensávamos. Todas as recordações felizes evocadas aleatoriamente enquanto guardarmos memória.

(Deixo de me sentir trémula depois de bater este ponto final. Entendo que temos obrigação moral de nos tentar desviar, andar aos "esses" de forma consciente ou ligeiramente embriagada evitando as coisas que nos deixam tristes e na esperança de embater, não com demasiada força, nas coisas que nos fazem felizes. Só que agora já não é um desvio. Acabei de encerrar essa estrada à medida que avanço pela seguinte, que ainda cheira a novo, nas linhas abaixo.)

Mas este texto não é só sobre pessoas comuns que se afastam. É sobre idiotas que escolhem sê-lo em conjunto, sobretudo face à evidência de que todas as amizades são frágeis, apesar de nem todas serem de cristal.

Algumas são de papel (ainda bem que também as há de cristal, porque "amizades de papel” parecia-se, de forma demasiado perigosa, ao filme das cidades do mesmo material). Como eu adoro uma folha de papel em branco onde vou escrevendo. Ou o papel de um livro antigo, já meio amarelo, já a cheirar a recordações. Não por isso menos frágil. Há amizades que são papel à chuva. Qualquer coisa delicada e frágil que ameaça a qualquer momento desintegrar-se e tornar-se nada, por mais antiga que seja. Muitas desaparecem mesmo ali, no meio da estrada. Às vezes, não. Foi assim que conheci o papel reciclado, encarnado em forma de amizade. Quando já a damos por perdida, ela escapa-se, reinventa-se, renova-se e ficamos com uma folha novinha, para escrever de novo, provavelmente de forma diferente.

E depois há as nómadas, irrequietas. Porque ao contrário do que nos é tradicionalmente dito, uma amizade não implica que façamos todo o caminho lado a lado, nem sequer que seja para sempre. Há amizades que não conseguem ficar quietas e cruzam-se connosco, várias vezes ao longo da nossa vida, normalmente por acaso. Sempre quando lhes apetece, sempre iguais a si próprias, sempre como se não envelhecessem nunca.

Todas as amizades são espelhos. Provavelmente, ainda é assim que consigo, no seio da minha ingenuidade, distinguir entre um amigo e alguém que ensaia entusiasticamente a sua audição para o conservatório. Não porque os amigos não nos mintam (às vezes mentir é um acto de amizade), mas porque um amigo nos recorda sempre quem somos, ou uma parte de nós que não nos lembrávamos, ou tentávamos não lembrar que existia. Mais do que uma vez, senti a força dos seus olhos em mim, colando os pedacinhos do meu ser que eu não vi que se tinham partido, reparando as feridas que se tinham aberto, uma e outra vez. E por isso, por todos os pensos rápidos, suturas e desfibrilhadores, estarei sempre agradecida.

Às minhas peças de cristal, aos meus papéis e aos meus nómadas. A todos os espelhos que me mantêm inteira.