O adeus às armas
Memória das Brigadas Revolucionárias e de outros grupos, a par de uma tentativa de formulação de uma “teoria geral da luta armada”.
Nos últimos anos tem-se verificado um interessante — e historio-graficamente importante – trabalho de recuperação da memória das Brigadas Revolucionárias (BR) e, com menos intensidade, do Partido Revolucionário do Proletariado (PRP). Esse labor é patente, desde logo, na criação, em 2007, da Associação Memoriando (http://memoriando.net/), seguida da publicação em 2012 de um excelente livro, Mulheres de Armas, da autoria de Isabel Lindim, filha de Isabel do Carmo e com introdução desta, ou mesmo noutros registos, como o documentário biográfico sobre o escritor Nuno Bragança, U Omãi Qe Dava Pulus, realizado em 2008 por João Pinto Nogueira.
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Nos últimos anos tem-se verificado um interessante — e historio-graficamente importante – trabalho de recuperação da memória das Brigadas Revolucionárias (BR) e, com menos intensidade, do Partido Revolucionário do Proletariado (PRP). Esse labor é patente, desde logo, na criação, em 2007, da Associação Memoriando (http://memoriando.net/), seguida da publicação em 2012 de um excelente livro, Mulheres de Armas, da autoria de Isabel Lindim, filha de Isabel do Carmo e com introdução desta, ou mesmo noutros registos, como o documentário biográfico sobre o escritor Nuno Bragança, U Omãi Qe Dava Pulus, realizado em 2008 por João Pinto Nogueira.
É certo que, até por razões de afirmação política no confronto com outros grupos de luta armada — a LUAR e a Acção Revolucionária Armada (ARA), ligada ao PCP —, as Brigadas sempre se preocuparam em deixar registo das suas actividades e dos seus textos e comunicados, podendo destacar-se, a este propósito, obras como Brigadas Revolucionárias – Dossier (com capa de Leonel Moura) ou Documentos do Partido Revolucionário do Proletariado – Brigadas Revolucionárias, ambas dadas à estampa pelas Edições Revolução, sendo impressas na Proculope, Quinta dos Comediantes de Baixo, lote 6, cave, em Setúbal (a Margem Sul, em particular o Barreiro, terra natal de Isabel do Carmo, sempre foi um território de eleição no desenvolvimento das BR e no recrutamento dos seus militantes).
Destituído de intenções de projecção dos movimentos do passado na arena política dos nossos dias, o actual esforço de recuperação do passado das BR é indiscutivelmente louvável, até pelo levantamento de documentos ignorados e que permaneciam escondidos no estrangeiro. Poderá questionar-se esse projecto, dado ser empreendido pelos próprios líderes das BR, Carlos Antunes e Isabel do Carmo, sendo essa crítica facilmente rebatível com o argumento óbvio de que são os principais protagonistas desse movimento que detêm o acesso ao acervo nuclear das Brigadas e do PRP, onde se inclui, como é evidente, muita documentação clandestina. Na narrativa do passado haverá, porventura, uma concentração excessiva na personalidade daqueles dois dirigentes das BR, sendo curioso observar que, na página da Internet da Associação Memoriando, surgem apenas, no tópico “Biografias”, os nomes de ambos, sem referência a quaisquer outros militantes das Brigadas. Contudo, ao dar voz a outros intervenientes, mais precisamente mulheres, Isabel Lindim demonstrou de forma concludente e exemplar que existe um intuito de não centrar por completo a memória das Brigadas nos seus comandantes supremos. Ainda assim, essa preocupação só se tornou mais visível nos últimos anos, justamente quando os dois líderes das BR e os seus próximos, como Isabel Lindim, começaram a desenvolver o seu meritório “trabalho de memória”; até aí, e além de um ou outro nome, como Artílio Baptista, as únicas personalidades que emergiam, além de Carlos e Isabel, eram os sempre evocados “mártires” Carlos Curto/ “Luís” e Arlindo Garrett/ “Ernesto”, mortos acidentalmente na preparação de um engenho explosivo, algo que Isabel do Carmo já qualificou como “um azar”, na entrevista que concedeu a Joana Stichini Vilela para o livro Lx70 — Lisboa, do sonho à realidade (em 1975, e em contestação aos métodos burgueses de ensino, o PRP-BR instituiu a Universidade Proletária Ernesto e Luís, numa ampla moradia ocupada na Avª 5 de Outubro).
Quanto ao clássico argumento da “parcialidade” da narrativa, ele poderá ser válido até certo ponto, mas o subjectivismo do narrador é – e ainda bem – uma realidade inescapável em todas as intervenções de tipo memorialístico, autobiográfico ou testemunhal. Aliás, ao convocar neste livro o depoimento de antigos dirigentes de duas outras organizações de luta armada, a LUAR e a ARA, com as quais as BR tiveram relações de rivalidade e tensão (especialmente com a ARA, pela sua ligação umbilical ao PCP), Isabel do Carmo revela agora que, em certa medida, há uma reconciliação mais serena, e até algo nostálgica, com um passado não muito distante e literalmente explosivo. Para isso contribuem, decerto, o perfil e o percurso das personalidades entrevistadas, Camilo Mortágua, pela LUAR, e Raimundo Narciso, da ARA. Era impensável, por exemplo, que Jaime Serra, um outro destacado dirigente da ARA e do PCP, mostrasse a mesma complacência perante rivalidades antigas como a que é demonstrada pelo seu ex-camarada Raimundo Narciso, o qual, questionado sobre as formas de luta que propõe para a actualidade, confessa: “eu agora proponho-me tratar das rosas do meu jardim e saborear um arroz-doce como sobremesa…”. Anote-se que, devido à densidade intelectual e finesse d’esprit do entrevistado, o depoimento de Raimundo Narciso é extremamente interessante, sendo muito superior, a todos os níveis, ao de Camilo Mortágua. Ambos já tinham, aliás, produzido obras assaz interessantes de cunho autobiográfico: do primeiro, A.R.A. – Acção Revolucionária Armada, de 2000, e, mais recentemente, um livro sobre Cunhal e a dissidência da “terceira via”; de Camilo Mortágua, os dois volumes de Andanças para a Liberdade, saídos em 2009 e em 2013, além de uma obra mais recente de apoio à chamada “geringonça”.
No entanto, e ao contrário do que se poderia supor, este volumoso livro de 750 páginas, da autoria de Isabel do Carmo, não se circunscreve à realidade portuguesa nem tem um propósito exclusivamente histórico ou memorialístico. Possui o objectivo muito mais ambicioso de se configurar, digamos assim, como uma «teoria geral da luta armada», com amplas digressões doutrinárias por terrenos da filosofia e da doutrina políticas, mescladas por apontamentos históricos, alguns de natureza pessoal. Desta junção de duas perspectivas muito distintas — a história e a ideológica — resultou um volume de grande dimensão, cuja lógica e coerência internas não são facilmente captáveis pelo leitor, confundido que fica por uma amálgama de referências, factos e depoimentos, alinhados de uma forma que acusa graves desequilíbrios internos (é incompreensível, por exemplo, que à Frente de Acção Popular sejam dedicadas umas escassíssimas cinco páginas).
Por outro lado, o “núcleo português”, por assim dizer, acaba por se cingir a um resumo da luta armada até aos anos 1960-1970 e, depois, por três longas entrevistas feitas por Isabel do Carmo (a Camilo Mortágua, a Raimundo Narciso e a Carlos Antunes) e outra empreendida pelos filhos de Isabel do Carmo a sua mãe, a que se adiciona um testemunho autobiográfico que, apesar da sua extensão, não traz, no essencial, informações novas ou dados que não constassem de diversas intervenções em que Isabel do Carmo se desdobra, desde as memórias da acção armada aos livros de divulgação sobre nutricionismo, a sua especialidade clínica, podendo mencionar-se a extensa entrevista concedida a José Jorge Letria e publicada em 2015 com o título Isabel do Carmo: a luta também cura.
Sendo este um livro de investigação histórica, ou pretendendo sê-lo, Luta Armada não cumpre os requisitos mínimos nem segue as metodologias exigidas neste tipo de trabalhos, baseando-se tão-só em entrevistas a membros destacados de grupos armados, e sem qualquer esforço de investigação a partir de fontes primárias (v.g., no Arquivo da Torre do Tombo) ou, inclusive, da bibliografia já produzida sobre o tema. Mesmo do ponto de vista da reconstituição histórico-factual, existem alguns problemas, uma vez que neste livro é flagrante a tentativa para empreender uma certa “oficialização da História”, sendo omitidas e silenciadas questões sombrias ou politicamente incómodas, como a existência de vítimas da acção das BR (duas crianças, feridas acidental mas gravemente por um petardo, aquando da vigília da Capela do Rato, em 1973) e o nunca sanado conflito suscitado, após essa vigília, entre as BR de Carlos Antunes e os católicos de vanguarda, com destaque para Nuno Teotónio Pereira e Luís Moita. Entre uns e outros existe uma discrepância profunda sobre a autoria daquela vigília pacifista e anticolonialista. Neste livro, Isabel do Carmo mantém a versão oficial das Brigadas, desta feita apresentada, todavia, sob uma forma mais matizada. Ainda assim, a omissão dos nomes de Luís Moita e Teotónio Pereira, os cérebros da vigília da Capela do Rato, demonstra que a reconciliação com o passado, de que atrás se falou, não é completa nem isenta de ruidosos silêncios. A mais gritante omissão, no entanto, diz respeito à actividade do PRP e suas sequelas, que deveria ser muito mais desenvolvida até para compreendermos — e não é esse o propósito da autora? — a natureza da luta armada e as suas eventuais diferenças quando praticada em ditadura e em democracia. Anos volvidos sobre o desmantelamento das FP-25 de Abril, e questionada pelos seus filhos sobre o destino dado ao arsenal do PRP e à sua alegada transferência para as FP-25, Isabel do Carmo responde de forma evasiva e escapista: “Ah, o arsenal…”, limita-se a dizer, mantendo o laconismo, como se ainda estivesse na clandestinidade, a prestar declarações à polícia ou, pior do que isso, como se receasse o passado, atitude que se pode compreender, mas não para quem enaltece o heroísmo da luta armada e, mais ainda, se dispôs a falar, em inúmeras ocasiões, sobre o seu envolvimento nessa violenta modalidade de actuação política.
Mais lamentáveis ainda são os erros históricos grosseiros, incluindo em domínios que a autora deveria conhecer bem, dada a sua proximidade com eles. Assim, por exemplo, na pág. 346 chama-se O Esquerdismo com Roupagens Socialistas ao famoso escrito de Álvaro Cunhal O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista, e diz-se ser um texto de 1972 quando, na realidade, foi redigido em Novembro de 1970 e editado ainda esse ano pelas Edições Avante, sendo este um erro particularmente grave, aqui salientado a título meramente exemplificativo, já que outros lapsos factuais se poderiam juntar, em especial nos capítulos dedicados aos grupos revolucionários de outros países.
Significará isto que o presente livro deve ser totalmente descartado devido aos problemas atrás enunciados? De modo algum. Mais do que nele é escrito e dito, Luta Armada vale pelo que a partir dele se intui ou deduz. É possível, graças às entrevistas publicadas neste livro, acompanhar a atitude pretérita dos antigos protagonistas da acção directa, os incontáveis riscos que correram, os conflitos fratricidas e as constantes desconfianças, mas também a sua forma de encarar as causas que os mobilizaram, mormente a violência, reconstruir a sua psicologia, digamos assim, e até o modo como se posicionam no entardecer das suas vidas. Há, porém, algumas ambiguidades em tudo isto. Apresenta-se uma visão complacente, desculpatória e até certo ponto laudatória, sobretudo por parte de Isabel do Carmo, perante grupos estrangeiros que deliberadamente mataram pessoas, como as Brigadas Vermelhas ou o Baader Meinhoff, do mesmo passo que todos os protagonistas portugueses, de Carlos Antunes à própria Isabel do Carmo, passando por Raimundo Narciso ou Camilo Mortágua, sublinham o valor político da violência e a sua inevitabilidade antropológica (“a violência é um instrumento da luta pela vida”, diz Narciso). Mas, por outro lado, e naquilo que sempre foi um ponto de honra do PRP/BR, da ARA e da LUAR, todos sublinham com veemência — como, aliás, reiteradamente o fizeram há quarenta ou cinquenta anos — que nunca foi intenção das suas organizações matar quem quer fosse, nem sequer os membros da polícia política ou os principais dirigentes do regime deposto a 25 de Abril. “A posição é clara: não matar. Fazíamos todo o possível para não matar ninguém, nem os odiados pides. Se quiséssemos atingir os pides não era impossível chegar muito perto da sede da PIDE, deixar ali um carro armadilhado e fugir» — diz Narciso, numa afirmação que era, e é, recorrente em todos os participantes da luta armada, especialmente os das BR e da ARA (uma das regras mais rigorosas da ARA consistia em «evitar ao máximo a perda de vidas humanas”, diz Jaime Serra em Eles têm o direito de saber... O que custou a liberdade. Páginas da luta clandestina. 2ª ed., 2004). Houve, por certo, danos colaterais e involuntários, como as mortes de «Ernesto» e «Luís», as crianças vitimadas pela acção da Capela do Rato, ou a de um jovem de 15 anos que pereceu no início de 1973 ao passar, a caminho do trabalho, junto à Escola Técnica da PIDE/DGS, em Sete Rios, no preciso instante em que aí deflagrava uma bomba da ARA, um morto acidental que Jaime Serra qualificaria, de forma bastante peculiar, como “vítima da sua curiosidade e alguma leviandade própria da idade” (As Explosões Que Abalaram o Fascismo. O que foi a ARA, 1999, p. 49). Fica por explicar, todavia, o sentido de acções sangrentas que ocorreram — e, note-se, já em democracia — como a alegada execução, em Novembro de 1979, do ex-militante José Plácido, por delação e alegada apropriação de fundos resultantes de assaltos a bancos.
Ao contrário das outras organizações de luta armada, as BR chegaram ao 25 de Abril sem que os seus dirigentes tenham sido capturados, pese a fragilização ocorrida com as prisões, em finais de 1973, de personalidades que com elas colaboraram, como os católicos Nuno Teotónio Pereira, Luís Moita e sua irmã, Conceição Moita. No depoimento de Carlos Antunes neste livro, são abordadas de forma aberta e muito elucidativa questões como a vivência da sexualidade por parte dos militantes, o seu “machismo” e a sua “costela marialva”, surgindo esta desarmante transparência em gritante contraste com os silêncios e as obscuridades que ainda se mantêm em muitos outros domínios — e que Luta Armada não esclarece. O livro é também uma demonstração de conformismo e de acomodada integração no “sistema”, sendo curioso observar o apoio declarado dos diversos protagonistas à actual governação, da responsabilidade de um partido que solicitou a intervenção da troika e que mantém um compromisso declarado com a economia de mercado, o Banco Mundial, o FMI, a NATO ou Bruxelas. Em muitos lugares da obra há ainda vestígios da pulsão rebelde de outrora, com manifestações de apreço por movimentos alternativos e acções de contestação, como o Occupy Wall Street ou o português “Que se Lixe a Troika” que ocorrem nas ruas de várias cidades europeias e americanas, agora flageladas por uma outra forma de violência política, protagonizada pelo islamismo radical. O livro não esclarece por que motivo deve existir compreensão para com a luta armada do passado e repúdio pelos atentados da Al-Qaeda ou do Daesh, sobre os quais nada se diz. Por tudo isto, uma obra que vale como documento histórico mas, de modo algum, como exposição coerente e sistemática do conceito de luta armada e, sobretudo, dos limites da sua legitimidade.