“Temos que criar novas maneiras de comer”

O alerta é do investigador gastronómico espanhol Toni Massanés. “Não temos mundo para o que estamos a fazer." Na sua Fundação Alícia trabalha com chefs e investigadores para melhorar a comida em escolas, hospitais, casas e nas prateleiras dos supermercados.

Foto
Toni Massanés durante a palestra que deu em Lisboa DR

O espanhol Toni Massanés é crítico, investigador na área da gastronomia e fundador da Fundação Alícia, baseada em Barcelona, sem fins lucrativos. Trabalha com chefs e investigadores em projectos com escolas, hospitais, indústria e a sociedade em geral para tornar a forma como nos alimentamos mais saudável e sustentável.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

O espanhol Toni Massanés é crítico, investigador na área da gastronomia e fundador da Fundação Alícia, baseada em Barcelona, sem fins lucrativos. Trabalha com chefs e investigadores em projectos com escolas, hospitais, indústria e a sociedade em geral para tornar a forma como nos alimentamos mais saudável e sustentável.

Massanés esteve na semana passada em Lisboa para participar no Congresso Gastronómico Estrella Damm onde falou sobre tendências no mundo da gastronomia. Num dos intervalos conversou com o PÚBLICO.
 
O que é que tem mudado nos debates sobre a importância da gastronomia?
Nos primeiros anos, quando surgiram os congressos de gastronomia, as técnicas eram muito importantes. Tinha havido uma mudança de paradigma, com o aparecimento de coisas que antes os cozinheiros não sabiam fazer, a cozinha a baixa temperatura, por exemplo, que permitia texturas novas.

Mas a certa altura era muito difícil continuar a apresentar inovações técnicas e começou a haver uma preocupação mais ideológica, questões como a origem dos produtos, o que é um bom produto, que papel pode ter um cozinheiro na sociedade... Surgiu nos chefs uma preocupação em assumir uma responsabilidade, porque a sua capacidade de influência é tanta e há coisas que começam no cimo da pirâmide e acabam descendo e tendo influência em muita gente.

Hoje, muitos assumem esta responsabilidade de ter o conhecimento e trabalhá-lo não só do ponto de vista alimentar mas de saúde, de sustentabilidade, moral. É nesse ponto que estamos. Qualquer cozinheiro fala do seu compromisso com os produtores locais, da sua investigação para recuperar receitas ou produtos do mar de pouco valor, do esforço para que o seu restaurante seja mais sustentável do ponto de vista do desperdício alimentar.
 
E há alguma democratização disso? O que se passa na alta gastronomia tem um impacto mais vasto?
Claro que para que haja restaurantes de alta cozinha tem que haver quem possa e queira pagar 150 euros para comer e se Portugal está a crescer do ponto de vista turístico, isso é uma boa oportunidade. Não há revolução gastronómica se não houver crescimento económico, não nos iludamos. A nouvelle cuisine surgiu depois dos 20 anos de crescimento económico mais importantes de França depois da II Guerra Mundial, a revolução na gastronomia espanhola deu-se depois de muitos anos de crescimento, e em Portugal há agora essa oportunidade.

Há restaurantes a que a maioria das pessoas não pode ir, mas no Mercado Time Out podem comer um prato desses chefs e há congressos em que os cozinheiros de restaurantes mais populares aprendem com os outros. Se a curcuma está na moda não custa nada pôr curcuma nas vossas verduras. Sempre que há um movimento, acaba alastrando à sociedade, se isso não acontecesse, a mim não me interessaria a gastronomia, por questões morais.

Interessa-me muito mais o foodie, mesmo ingénuo, do que o gourmet aristocrático que gosta tanto mais de uma coisa quanto mais em perigo de extinção ela estiver, quanto mais exclusiva ela for. O foodie talvez tenha demasiada tendência para as tendências, mas tem os seus valores e se acha que o animal que está a comer não foi criado com as mínimas garantias, pode denunciar no Instagram, isso é bom e tem que ver com essa democratização.
 
O discurso sobre sustentabilidade, pequenos produtores, etc... está já a influenciar outros sectores?
Na Fundação Alícia trabalhamos com escolas, com hospitais, com agricultores e também com a indústria alimentar, para termos alimentos mais saudáveis e sustentáveis. O que podemos fazer para que a comida numa escola seja mais sustentável? Se a carne é de muito má qualidade, por que é que não servem legumes duas vezes por semana e servem carne uma vez por semana, mas de uma qualidade melhor? Por que é que não tentam que as alfaces sejam compradas a produtores locais? Não é mais caro. Há que o fazer.

Um restaurante gastronómico não é equilibrado nem sustentável porque quando 40 pessoas trabalham para que tu comas, isso não é sustentável, estamos na dimensão da arte, da excepcionalidade, da festa, coisas intrinsecamente humanas, porque em qualquer parte do mundo por muito mal que as pessoas estejam, precisam de uma festa, de uma celebração.

Sem querer salvar o mundo, os chefs podem contribuir para que todos tenhamos esta gestão do dia-a-dia alimentar mais sã. Porque não há alternativa, não temos mundo para continuarmos o que estamos a fazer.
 
Por vezes, nas escolas, se se servem mais verduras e menos carne os pais sentem que os filhos não estão a ser bem alimentados.  
Na Alícia trabalhamos isto. Há caminhos para melhorar. Os pais ainda têm a memória de que a carne era o bom, mas o risco é criar uma criança obesa com problemas cardiovasculares e que aos 40 anos vai ter diabetes. Vamos demonstrar-lhes que comendo mais verduras come melhor, não apenas na escola, que é 17% da sua alimentação, mas também em casa. Temos que trabalhar com os pais e com as escolas.

Até há 30 anos, os restaurantes de alta gastronomia só davam carne ou marisco. Um restaurante desse nível em Lisboa há dez anos não servia sardinha, servia lagosta. Hoje servem sardinha, evidentemente.
 
E da vossa experiência com os hospitais, há uma abertura para essa preocupação com dietas não apenas saudáveis mas saborosas?
Às vezes têm dificuldade em entender, até porque nos rankings de qualidade hospitais valorizam-se outras coisas que não a qualidade da comida. Não é preciso irmos para o hospital comer gastronomia, mas é verdade que num momento em que estamos necessitados de comer bem, se o fizermos, isso diminui extraordinariamente os tempos de internamento e acaba por ser dinheiro para a administração.
 
Há também um efeito psicológico nos doentes.

Claro. É muito difícil gostarmos da comida de hospital, darmos valor a um prato. Mas se conseguirmos fazer com que um sabor reconforte, recorde a casa, são micro-espaços de felicidade, e se com isso o doente comer mais duas colheres, elas vão ser muito importantes num momento em que precisa de nutrientes.
 
E no vosso trabalho com a indústria, quais são as preocupações?
A indústria quer vender, mas são pessoas normais, embora quando as empresas são muito grandes possam ter algo de desumano. O que é preciso é educar as pessoas para que, como consumidores, digam o que querem e a indústria já percebeu que as pessoas querem coisas saudáveis.

Nós só trabalhamos para fazer as coisas melhores, reformular um produto para ver se podemos usar menos açúcar, por exemplo. E lutamos para que as pessoas continuem a cozinhar em casa, sabemos que se não cozinhamos em casa é difícil comer de forma saudável e sustentável, mas é verdade que todos comemos cada vez mais comida industrial. É preciso que esta indústria seja o mais humana e sustentável e saudável possível. Vai chegar um momento em que não teremos planeta, terra, água, para tanta gente.
 
Esse tipo de preocupações éticas por parte dos chefs e o foco no produto torna a alta cozinha menos criativa?
Como espécie, precisamos da criatividade, de saber mais coisas. Gostamos de comer coisas novas, mas também precisamos de segurança porque tudo o que é novo pode matar-nos. Um sociólogo da alimentação explica que movemo-nos sempre entre a neofilia e a neofobia: o demasiado novo desconcerta, o demasiado velho aborrece.

O original é um enriquecimento pessoal porque nos dá mais possibilidades para viver e comer. Temos que criar novas maneiras de comer. Investigações em carne vegetal ou carne animal sem animais vão ser, nos próximos anos, uma super tendência, porque é necessário, mas, por outro lado, temos que saber que cada vez que desaparece uma variedade de tomate estamos a perder um recurso de conhecimento que nos pode ajudar quando um dia os tomates tiverem uma doença (quem sabe, essa variedade poderá salvar todas).

Seja um produto ou uma receita, no final é o mesmo, uma ideia, uma solução, uma resposta a uma pergunta, tenha ela sido feita ou não, que é a chave do futuro. Quanto mais tivermos, criando coisas novas mas não perdendo as antigas, mais possibilidades temos de garantir uma alimentação futura saudável e sustentável.