Ainda não somos um país de grandes vinhos brancos
Os brancos têm origem em terras frias e Portugal é um país de clima quente. Quantos vinhos brancos de topo há no Alentejo? E No Douro? Precisamos de puxar pela cabeça para dar num minuto uma lista de dez vinhos brancos portugueses de nível mundial.
Marcos Lagoa, presidente da Resiquímica, empresa portuguesa que produz e comercializa polímeros destinados às indústrias de tintas e vernizes, é um enófilo militante e generoso. Possui uma grande colecção de vinhos e gosta de fazer jantares com provas às cegas. Os convidados só têm a certeza de que vão provar grandes vinhos, mas desconhecem os nomes e as regiões de origem.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Marcos Lagoa, presidente da Resiquímica, empresa portuguesa que produz e comercializa polímeros destinados às indústrias de tintas e vernizes, é um enófilo militante e generoso. Possui uma grande colecção de vinhos e gosta de fazer jantares com provas às cegas. Os convidados só têm a certeza de que vão provar grandes vinhos, mas desconhecem os nomes e as regiões de origem.
Há uns anos, Marcos Lagoa provou o branco Gouvyas 2007, do Douro, e gostou tanto do vinho que decidiu naquele instante programar para 2017 um jantar só com grandes brancos dessa colheita. Vinhos com dez anos, portanto. A prova, memorável e harmonizada com belíssimos pratos criados pelo chef João Sá, aconteceu no passado domingo à noite em Oeiras e juntou duas dezenas de amigos e convidados.
Os vinhos foram servidos em pequenas séries de dois e de três copos. Em 22 vinhos, só um deles estava contaminado com TCA (abreviação da substância química 2,4,6- Tricloroanisole, que provoca o chamado cheiro e gosto a rolha, semelhante a mofo), por triste ironia, o vinho que havia inspirado o jantar, o Gouvyas, produzido desde 1996 por João Roseira e Luís Soares Duarte. É nestas alturas que vinha a calhar ter alguém da indústria das rolhas por perto para podermos despejar toda a nossa ira. Imaginem se era uma garrafa de Romanée-Conti?
Se os industriais das rolhas soubessem a quantidade de desgostos que provocam todos os dias, fugiam de vergonha. Uma rolha com TCA em 22 vinhos nem parece ser nada de extraordinário: é “só” cerca de 5%. Mas 5% de problemas num produto alimentar como o vinho não é pouco, é muito. Basta para destruir um jantar e causar grandes prejuízos na imagem de um vinho. Não por ter TCA, porque pode acontecer a qualquer um, mas porque o vinho atingido perde o seu momento, e o vinho é o momento, ainda mais, como foi o caso, quando em confronto estão vinhos de classe mundial. Ora, é também nestes confrontos que se forja a reputação de um vinho. Como não havia uma segunda garrafa de Gouvyas, este branco perdeu o seu momento.
Já aqui escrevemos que, apesar dos muitos investimentos e avanços que foram feitos pela indústria das rolhas de cortiça natural, o problema do TCA nos vinhos continua a ser uma tragédia. Algumas empresas já possuem tecnologia de despiste do TCA, só que ainda não o fazem a uma escala industrial. Quando se julgava que o problema era cada vez mais residual, a experiência do dia-a-dia tem-nos vindo a mostrar que não é bem assim. Por mais que os empresários do sector insistam em traçar um quadro cor-de-rosa, a contaminação dos vinhos devido a problemas nas rolhas continua a ser um problema sério em Portugal. E o mais grave é que o problema incide, especialmente, sobre as rolhas mais caras, porque estas, ao contrário do que acontece com as mais baratas, não podem ser sujeitas a tratamentos de choque, sob pena de se deformarem.
Por isso, temos mesmo que invocar todos os santinhos quando vamos abrir uma garrafa especial. É um momento de fé que devemos habituar-nos a introduzir na liturgia do vinho. Não para a enriquecer, mas como um sacrifício que somos obrigados a fazer. Porque, mesmo com todos os problemas, a rolha de cortiça continua a ser o melhor vedante para vinhos. Em especial, para os vinhos com uma longa vida pela frente, aqueles que podem aspirar a ser considerados “grandes”. Um vinho que nasça perfeito e se desvaneça ao fim de dois ou três anos nunca poderá ser um grande vinho. Os melhores são aqueles que vencem o desafio do tempo e apuram com ele.
O jantar que Marcos Lagoa organizou no passado domingo mostrou isso mesmo. Mostrou também que já andámos muito nos brancos. Partimos quase do zero e em menos de duas décadas já alcançámos um nível assinalável. As pontuações das revistas da especialidade confirmam-no. Há cada vez mais vinhos brancos com notas acima dos 90 pontos em 100 possíveis, algo que até há poucos anos era só reservado aos tintos.
É verdade que estamos a assistir a uma inflação das pontuações nos vinhos. A tendência é mundial e também já chegou a Portugal. Atribuir 19 pontos em 20 a um vinho tinto português com apenas dois anos, por exemplo, era quase uma impossibilidade, mas a nova revista Vinho-Grandes Escolhas, criada pela antiga redacção da Revista de Vinhos, acaba de fazê-lo a dois vinhos do Douro de 2015, o Poeira 44 Barricas e o Quinta da Leda. Os vinhos podem ser muito bons, mas que margem de pontuação fica para os vinhos realmente excepcionais? Não estaremos a ir longe e depressa de mais?
Apesar desta súbita generosidade da crítica, que abrange tanto tintos como brancos, ainda não somos um país de grandes vinhos brancos — e dificilmente o seremos, porque os grandes vinhos brancos têm origem em terras frias e Portugal é um país de clima quente. Quantos vinhos brancos de topo há no Alentejo? E No Douro? Na Bairrada e no Dão já encontramos alguns. Mas precisamos de puxar pela cabeça para dar num minuto uma lista de dez vinhos brancos portugueses de nível mundial.
Três deles foram servidos no jantar de domingo: o Bussaco, o Redoma e o Soalheiro Reserva. Todos já com dez anos e todos ainda muito bons, em especial o Bussaco. Muito bons mas não tão bons quanto os William Fevre Grand Cru Bougrois, de Chablis, ou o Montée de Tonnerre 1er Cru, de François Raveneau, também de Chablis; ou o Domaine Huet Clos du Bourg, un Chenin Blanc de Vouvray; ou o Sauvignon Blanc Les Monts Damnés, de François Cotat, de Sancerre; ou, continuando no Loire, o Sílex, de Pouilly Fumé, do lendário Didier Dagueneau, morto em 2008 num acidente com um ultraleve; ou o magnífico Corton Charlemagne Grand Cru de Pierre Ives Colin Morey, um dos grandes brancos de Chardonnay produzidos na montanha de calcário de Corton, na Borgonha; ou, ainda, o excepcional e mítico Coche-Dury, de Mersault, Borgonha, um dos melhores vinhos brancos do mundo. Cito estes, porque foram os que mais impressionaram no jantar. Mas houve mais. Houve E. Guigal e J.L.Chave, dois monstros de Hermitage, no vale do Ródano, ambos feitos de Marsanne e Roussanne; Réserve de Caveau, um Savagnin de Arbois, Jura, de Lucien Aviet & Fils; Schoenenbourg Grand Cru, de Marcel Deiss, da Alsácia; Wehlener Sonnenuhr, um Auslese da Joh.Jos.Prum, do Mosel; Schloss Lieser Riesling Beerenauslese, também do Mosel; e os champanhes Bollinger La Grand Anné, Larmendier-Bernier Vieille Vigne de Cramant, Benoit Marguet Sapience, de Ambonnay (uma das melhores comunas para casta Pinot Noir), e Agrapart & Fils Minéral Extra Brut, de Avize, o nosso preferido. Mas aqui tenho que revelar uma franqueza: sou um fã de Agrapart, apesar deste vigneron não ser uma figura particularmente simpática. Mas quantos franceses do mundo do vinho o são? Nisso, em simpatia, somos mesmo os melhores do mundo.