A Galiza em três dias e três paragens
O Verão quente português que deixamos para trás em pleno Outubro seguiu-nos até Norte, à Galiza. Nos três dias que nos esperam, no meio da natureza virgem e sempre com o mar a espreitar ao fundo, é de braços abertos que o recebemos.
No meio das dunas, no Parque Natural de Corrubedo e Lagoas de Carregal e Vixán, na província da Coruña, quase não corre uma brisa.
“Estamos num dos seis espaços naturais galegos que, devido aos seus valores paisagísticos e ecológicos, é necessário preservar”, começa por dizer o guia, de binóculos ao peito pronto a apanhar na mira os corvos marinhos, garças-reais, cisnes e patos (para quem é novo na observação de aves, a app Birding Galicia pode ajudar a encontrá-los). Nestes quase mil hectares no município de Ribeira, “há tudo quanto possam imaginar”, vai dizendo o biólogo durante o trilho calcorreado sempre em passadiço, para preservar as espécies endémicas dunares que só existem ali e no Norte de Portugal. “Lagoas, uma de água doce e outra salgada, rios de água cristalina, cascatas majestosas escondidas nas profundidades dos bosques e oceanos repletos de vida” é a promessa da marca que quer afirmar o turismo de natureza na região.
O parque de Corrubedo pode ser conhecido todo o ano, de terça a domingo, gratuitamente, e através de seis rotas à escolha. Escolhemos percorrer o “Caminho da Praia”, 1,5 quilómetros de baixa intensidade a começar na recepção do espaço que todos os anos recebe mais de 100 mil visitantes. Por este itinerário circular é possível ver quase todos os valores naturais e patrimoniais do parque, fortemente ligados ao mar. Ainda assim, não é o percurso mais escolhido. Diz quem sabe que o melhor caminho é o “do Rio do Mar”, um trilho mais longo, de 3,5 quilómetros, que vai desaguar na airosa praia do Vilar. Se tiver habilidade para isso, aconselhamos a levar a prancha, deixar o carro no parque de estacionamento cheio de autocaravanas e dar um mergulho nas águas límpidas (e geladas) do Atlântico, pontuadas por dezenas de surfistas.
Outro dos caminhos, o do Vento, oferece uma vista privilegiada para a grande duna móvel, a “montanha de areia” que se eleva por 20 metros e é um dos grandes sistemas a proteger deste complexo. “Também a podem ver bem do miradouro Pedra da Ra, em Aguiño”, no monte Castro, diz o guia, em jeito de despedida. Como é que o encontramos? “Ora, é mesmo uma rã em pedra”, ri-se. Não será exactamente isso, claro, mas sim uma janela para o Atlântico, para a vila de Pobra do Caramiñal, o farol de Corrubedo e as Illas de Sálvora, com uma grande rocha em forma do anfíbio no centro. Se seguir um caminho de terra à direita, encontra outro miradouro, plantado 210 metros acima da linha da água e com vista para o castro da cidade.
Em Corrubedo é sempre a areia, o vento e o mar
Em vez de nos distanciarmos, optamos por nos aproximar do mar que hoje bate manso na areia do Porto de Corrubedo. A Galiza, devido à costa muito recortada, é a região espanhola com mais quilómetros de litoral. Custa a acreditar que esta parte seja uma das mais perigosas do litoral galego, com ondas gigantes e fortes correntes marítimas a desafiarem o trabalho dos pescadores. À hora do almoço (ou do xantar, como lá dizem), vemos os barcos de pesca muito próximos, a repousar, quase sem balançar à mercê da água transparente, do terraço da Casa dos Casqueiros.
Esta casa de alojamento local com cinco quartos (85€ por noite, duas pessoas) que são janelas e clarabóias abertas de par em par para o oceano já pertenceu a homens e mulheres do mar. Foi reabilitada por dois advogados e desde Agosto do ano passado que Lucía Plaza não tem mãos a medir. “Já estamos completamente cheios para o próximo Verão”, diz, enquanto mostra todas as divisões que misturam a estrutura tradicional em pedra, material resistente às ondas, com pitorescos quadros de temas náuticos e decoração em tons de branco e azul. Tudo começou com os pais da advogada. “Eram de Santiago e chegaram aqui há 40 anos, de moto Vespa. Enamoraram-se pelo sítio e construíram aqui uma casa. A partir daí vinham cá passar todos os fins-de-semana.” Faziam cerca de 50 quilómetros desde a capital galega, perto de uma hora de caminho. Ainda hoje, enquanto nos fala com ar sonhador, não desgruda os olhos da janela para o mar. “Isto é lindo assim, mas ainda gosto mais no Inverno, é mais acolhedor, vemos a maré brava quase a galgar o terraço” diz, com as mãos a imitar o frenesim tempestuoso que acaba de dedo apontado à nossa última paragem em Corrubedo, no meio da boca da ria de Arousa. É com um abraço que nos despedimos, que as gentes da Galiza são como nós: riem-se muito, a hospitalidade aqui também é caso sério.
No porto de Aguiño, apanha-se o barco para a ilha de Sálvora, uma das quatro do Parque Nacional Marítimo Terrestre das Ilhas Atlânticas da Galiza, candidato a património mundial. Entre Cortegada, Ons e Cíes, Sálvora é a mais agreste. A ilha foi privada até 2007 e só há pouco tempo é que recebe turistas, sempre acompanhados por guia. Não há barcos públicos e para lá chegar é preciso recorrer a empresas privadas (existem mais de 15 que realizam esta travessia), que normalmente contratam um guia e organizam a visita. A entrada é feita junto ao castelo e, mais próximo da terra de firme de A do que do mar, começa a ver-se uma estátua de uma sereia a indicar a chegada ao destino.
O arquipélago, constituído pela ilha principal e por várias ilhotas, tem 190 hectares de área e foi casa de oito famílias até aos anos 1970. Da aldeia só sobram as casas de pedra, em risco de derrocada, algumas com placas a indicar nomes de “heróis e heroínas” que foram para o mar durante o naufrágio de Santa Isabel, em 1921. O desastre, popularmente conhecido como “o Titanic galego”, provocou a morte de 213 pessoas, a apenas 200 metros da costa da ilha. Os faroleiros, ouvindo os gritos, correram a chamar a população, que desafiou as ondas gigantes em três embarcações: uma para pedir ajuda à população de Ribeira e outras duas para resgatar os membros da tripulação. Salvaram 55 pessoas.
A caminhar pela rota da aldeia (cerca de uma hora), sozinhos na ilha, dizem-nos que podemos encontrar cavalos selvagens, veados e coelhos no meio do silêncio que se espera de uma ilha deserta. Com o sol baixo, quase a ser engolido pelo mar, deixamos para trás o mar de vento e areia numa lancha rápida, a última do dia a fazer a travessia.
A cidade que nasceu aos pés da água quente
Só começamos verdadeiramente a acordar, no dia seguinte, já a bordo de um dos comboios turísticos da Galiza. O “Tren Ourense Termal de Compras” parte de Santiago da Compostela e dirige-se à cidade das oito pontes e da água quente que brota, a 65 graus, aos nossos pés. O rio Minho guia o caminho até Ourense, a “província espanhola que mais quilómetros de fronteira tem com Portugal”, diz-nos o seu autarca. “É o que vos digo, minhotos e galegos é a mesma raça”, comenta baixinho Xosé Merelles,
Vamos pelas termas, que existem por todo o lado, e onde é possível banharmo-nos gratuitamente, mas a cidade, ora medieval, ora a vibrar entre copos de vinho, polbo á feira e pinchos, também merece uma visita. A pé entre lojas de marcas de luxo, igrejas e praças inclinadas que são das mais bem conservadas da Galiza, entramos na catedral (5€), onde os olhos se prendem no gigante Pórtico do Paraíso. Poucas ruas à frente, o sagrado dá lugar à tentação. As ruas Paseo, Paz e Santo Domingo são autênticos centros comerciais ao ar livre, não fosse a cidade a casa de Adolfo Dominguez e de Roberto Verino.
Não sabemos se eles se banhavam nas termas romanas, mas se não o faziam fogem à regra de costumes da população de Ourense e arredores, que aproveita o fim-de-semana para se estender pelas várias piscinas de água quente que a segunda maior cidade termal europeia, só ultrapassada por Budapeste, oferece. À tarde, os mergulhos são nas termas japonesas de Outariz (5,50 euros) — também há as da Chavasqueira, com a mesma inspiração —, onde a palavra de ordem é “relaxar” e “tranquilizar o ruído da cidade”. As instalações são constituídas por dois circuitos, quase em cima do rio e rodeados por verde a virar laranja e amarelo por esta altura. O Zen, com seis termas em madeira e pedra, e o Celta, com piscinas e cascatas a imitar os castros e dólmenes das populações antigas. Além do circuito termal, há ainda um spa com massagens (9€ - 41€), banhos aromáticos (13€), tratamentos faciais, corporais e outros que variam em cada estação.
Todos os caminhos vão dar a Santiago
É costume dizer que o caminho se faz caminhando — e devem ser poucas as cidades que levam o dito popular tão a sério quanto Santiago de Compostela (embora também se aceitem as opções do cavalo e da bicicleta). Da última vez que Silvia Cantera lá esteve, a “catedral ainda estava inteira”, havia muita fila para entrar e ela não “entendia porquê”. Voltou agora, a fachada tapada pelas obras que terminam em 2021, o próximo ano santo, e depois de mais de 300 quilómetros de caminho a pé, com a mochila gigante que atirou ao chão mal chegou à praça, já entende a fila. “É engraçado como em Santiago só se vê gente nesta praça e naquela rua maior, a de Franco.” Senta-se a descansar, pernas a amolecer. “Depois disso é a tranquilidade absoluta”, sorri. Tem razão, quanto mais nos afastamos menos se ouvem as vozes dos peregrinos, os flashes e os vendedores de rua. O barulho da cidade volta a notar-se no mercado de abastos, o segundo lugar mais visitado, principalmente ao sábado.
Nas bancas apertam-se moluscos, carnes, queijos e vegetais que pode comprar e pedir para cozinhar ali mesmo, “sem frigorífico”, no Marisco Mania. É a tendência que acaba em guerra dos mercados municipais: os frescos em simbiose com marcas gourmet e esplanadas. Não era bem assim quando Maria Teresa, das Patatas Gomez, ali começou. “Mudou muito, para melhor, desde que entrei de empregada e fiquei de dona”, diz, enquanto pesa um saco de tomates. “Te garanto que aqui compras um tomate a saber a tomate. E a melhor preço!”. Já conhece todos os clientes, tira a pinta aos turistas ao longe e já sabe que não vão parar na banca que tem há 30 anos. “Os portugueses gostam mais daquela parte”, ri-se, queixo empinado em direcção à muito mais recente Viñoteca do Mercado, uma taberna moderna com cerca de cem marcas de pequenos produtores galegos. Jacobo Garcia, atrás do balcão, traz para a mesa uma travessa de quejo tetilla (que os clientes compraram umas bancas à frente) e pega numa garrafa de vinho galego, a especialidade da casa. “Abrimos aqui há seis anos porque é um local de reunião dos compostelanos e dos visitantes, com história, como os nossos vinhos. É uma combinação e tanto”. Salta a rolha: “Sin palabras”, ri-se, a apontar para o rótulo.
Estes jovens chefs galegos querem é “bom produto”
“Isto aqui é broa, não sei se têm em Portugal”, saúda-nos Lúcia Freitas, chef d’A Tafona, palavra galega para “fábrica de pão”. Com este nome, só podia ser o pão a dar as boas-vindas a quem entra no restaurante, com uma estrela Michelin, escondido entre duas ruas apertadas de Santiago da Compostela.
Há broa (“Sim, também fazemos muito em Portugal”, respondem-lhe), pão de água salgada, pão de cea (da vila de San Cristovo de Cea), de milho, cebola e azeitonas pretas com um pouco de cerveja ou pão de castanha para molhar sem medo de sujar as mãos em azeite isbilya ou na manteiga de cogumelos. “O pão galego tem muita fama” e este vem da Padaria Divina, com banca no mercado principal da cidade, quase sempre vazia de tão rápido que vende.
Quando se tem “bom produto” como o “pescado acabado de sair do mar” e vegetais biológicos arrancados a uma terra não muito longe do restaurante onde nos sentamos, na quinta biológica da chef, não “é preciso inventar muito”. Que o diga Lúcia, 35 anos, mãe há pouco tempo de uma menina e de um outro restaurante galego, o Tomatiño, este com poucas semanas, e em Nova Iorque, onde é chef-executiva.
Com um sorriso rasgado, puxa uma cadeira há muito desejada, sopra o teimoso fio de cabelo loiro que teima a cair do puxo que usa na cozinha e senta-se para falar connosco no final do longo menu de degustação que serviu. A jovem cozinheira faz parte do Grupo Nove, uma associação de cozinheiros galegos que se juntaram para divulgar a filosofia de “cozinha galega vanguardista”.
“É gente jovem que também se dedicou à agricultura, todos muito pequenos, mas apoiamo-nos uns nos outros. É gente com ideias sustentáveis, que valorizam os produtos tradicionais e fazem as coisas bem num sítio em que nunca valorizamos o que é nosso”, conta. “Esta nova vaga pega nos produtos e dá protagonismo também às mãos de quem cozinha, de quem faz a louça (na Tafona é a Pordamsa), o azeite, aos pequenos produtores locais”, explica.
Ao apresentar um bonito prato (15€) onde salta o bonito (atum), o tomate e o figo declara, braços estendidos e mãos abertas, que é a sua horta num prato. “Na Tafona fazemos uma cozinha de mercado e de temporada, baseada na nossa horta”, diz, acrescentando que gosta que “as pessoas saibam o que estão a comer”. O que não pode faltar numa cozinha tradicional galega é “tudo o que se refere ao mar”, o “pimento”, o “loureiro”, as empanadas, as vieiras, a salada de tomate, a pescada, o bacalhau com couve flor tradicional. Ela faz tudo isto com um “toque de criatividade”. E, para o bem e para o mal, este toque muda tudo.
A Fugas viajou a convite do Turismo da Galiza no âmbito de um protocolo com o Turismo do Porto e Norte de Portugal