Bordalo II confronta-nos com os nossos desperdícios
Até agora conhecíamos as suas peças de grande escala em espaço público na forma de animais. A partir deste sábado Bordalo II apresenta as suas obras feitas a partir de desperdícios num estúdio-armazém em Xabregas.
A relação entre arte e lixo é antiga e profícua. Essa ligação tanto serviu para questionar a própria prática artística ao longo da história da arte, como para mostrar as deformações da sociedade, surgindo como forma de protesto e de consciencialização cívica, nomeadamente nas duas últimas décadas, quando as discussões sobre o ambiente se acentuaram.
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A relação entre arte e lixo é antiga e profícua. Essa ligação tanto serviu para questionar a própria prática artística ao longo da história da arte, como para mostrar as deformações da sociedade, surgindo como forma de protesto e de consciencialização cívica, nomeadamente nas duas últimas décadas, quando as discussões sobre o ambiente se acentuaram.
É neste contexto que se insere a prática de Artur Bordalo (Lisboa, 1987), mais conhecido por Bordalo II, um dos artistas lusos oriundos da chamada “arte urbana” que mais impacto público tem tido nos últimos anos, dentro e fora de portas. Não surpreende por isso que, este sábado, pelas 16h (com entrada gratuita, até 26 de Novembro), seja inaugurada a sua primeira grande exposição a solo, Attero, com a mesma a decorrer no seu atelier-armazém, na Rua de Xabregas 48, ao Beato, na zona oriental de Lisboa.
Poderia ter optado por um espaço expositivo convencional, mas acabou por preferir o lugar onde tem vindo a trabalhar nos dois últimos anos, na forma de um velho armazém. “Por um lado, acaba por ser interessante agarrar num lugar destes e transformá-lo num espaço expositivo”, reflecte Artur Bordalo, neto do pintor Real Bordalo (1925- 2017), “e, por outro, isso permite uma grande liberdade criativa, porque não existem condicionantes: pode-se partir tudo.” “E muitas vezes destruindo cria-se. Em simultâneo acabei por me afeiçoar a este lugar e com o tempo fui percebendo o seu potencial em relação às minhas necessidades.” E existe ainda um outro factor que o seduz: “Olhamos para esta arquitectura com ar devoluto e temos a sensação de que estamos também na rua, onde a minha actividade começou por se fortalecer.”
Entra-se no armazém gigante e deparamo-nos com pneus, electrodomésticos, embalagens, cartões, botas, um carro velho, um Ronald McDonald, latas, pára-choques, bonecos, calçado, plásticos, enfim, lixo, resíduos e desperdícios, que acabam por adquirir a forma de peças ou instalações, na forma de animais gigantes, um rinoceronte, um chimpanzé ou peixes suspensos do tecto. São trabalhos novos que constituem uma extensão das obras que Artur Bordalo tem criado em espaço público nos últimos anos, seja em Portugal, seja em cerca de 20 países de todo o mundo.
No âmbito da exposição que agora inaugura criou três peças em espaço público lisboeta que fazem parte da série Big trash animals: uma raposa na Avenida 24 de Julho, um sapo na Rua da Manutenção e um macaco no pátio do armazém de Xabregas onde estará patente a presente exposição.
“É importante manter a componente de rua nas minhas acções, daí essa opção de a exposição sair porta fora e ocupar a cidade”, justifica. Acrescenta que o maior desafio de uma mostra deste género “é surpreender quem já conhece muito bem o [seu] trabalho” – ou seja, espera que a série de novos trabalhos que agora concretizou, “utilizando materiais mais minuciosos e menos dependentes das condições atmosféricas”, criem impacto junto de quem não domina a sua obra até aqui, mas também junto de quem a conhece bem. “Espero que as pessoas saiam daqui a pensar não só na parte estética, mas também em todos os outros aspectos políticos e conceptuais que isto poderá levantar.”
O estilo de vida das sociedades ocidentais contemporâneas, a forma pouco sustentada como tem sido feita a interligação entre ambiente, política, economia e sociedade, são os elementos que Artur Bordalo gostava que provocassem debate através da sua obra. “Estamos a dar cabo do planeta e são as próximas gerações que o irão sentir ainda mais”, reflecte, proclamando que é necessário mais responsabilização, seja ela da parte dos cidadãos, dos grandes grupos económicos ou dos Estados.
Na sua obra, os temas que aborda são indissociáveis dos materiais utilizados, algo que foi ganhando sentido nos últimos anos. “Primeiro, fui fazendo experiências muito espontâneas e depois existiram uma série de sinais que me incentivaram a ir neste sentido”, recorda, dizendo que um desses momentos definidores aconteceu há quatro anos, quando criou “um presente feito de lixo” no contexto de uma greve. Outro acontecimento importante foi ter tomado contacto com o trabalho do artista brasileiro Vik Muniz, que também opera a partir do lixo. “Foi relevante perceber que havia mais gente a fazê-lo e motivador”, comenta.
Para as peças de grande escala, que são até agora o que mais o identifica, existem, diz ele, “quatro ou cinco tipos de material que são quase sempre omnipresentes – pára-choques, caixotes de lixo partidos ou queimados, bicicletas danificadas, partes plastificadas de carros ou algo redondo para fazer os olhos.” Em Portugal é relativamente fácil encontrar estes materiais. Em alguns países onde já foi convidado a intervir, por vezes, é mais difícil e ele e a sua equipa de duas ou três pessoas já se depararam com dificuldades. “Há países sem sistema de reciclagem e outros que nem sequer sistemas de recolha de lixo possuem. Não havendo essa divisão, com aterros que são lugares assustadores, com quilómetros de lixo inutilizado que nunca será reciclado, o nosso trabalho é mais difícil.”
Por norma, quando parte para uma dessas acções, já leva uma ideia pré-definida do que deseja fazer. “Sabemos a parede onde vamos operar e é-nos enviada informação sobre o ambiente do contexto onde vamos intervir, o que ajuda no processo de decisão”, afirma, alertando, no entanto, para o facto de existir ainda assim “espaço para o improviso”. Por vezes, “o plano inicial é alterado e as coisas adquirem outras formas.”
Para já existe Attero, uma exposição com curadoria de Lara Seixo Rodrigues, que tem tanto de retrospectiva do seu trabalho feito até agora, como de prenunciador de novas pistas do que se seguirá. “Nesta exposição as peças de vídeo e os plásticos em bruto são coisas de que gosto muito, até porque indiciam novas possibilidades”, afirma. Novos itinerários que, apesar de poderem tomar as mais diversas formas, passarão quase de certeza pelo lixo, pela tomada de consciência ambiental e pelo desejo de surpreender e interpelar as pessoas com os seus próprios desperdícios.