Futebol, esse famoso tão mal compreendido

O futebol contribui para o desenvolvimento individual e colectivo e pode contribuir de forma relevante para a forma como nos comportamos em sociedade

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Andy Hall/Unsplash

Gosto de ver um jogo de futebol no café. Gosto de estar no meio de pessoas que vivem intensamente cada momento daquele espectáculo. Gosto de apreciar a forma como vibram; os desabafos de uns, as piadas de outros, os nervos de alguns. É certo que a maior parte dos comentários se referem de forma superficial ao jogo; focam-se numa falta mais dura, numa oportunidade iminente de golo desperdiçada, num erro de arbitragem; relegando táticas, pressões ou ao espaço entre linhas para um plano secundário ou mesmo de importância duvidosa. O jogo é mais complexo do que o que se ouve num café, mas também é aquilo que ali se vive.

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Gosto de ver um jogo de futebol no café. Gosto de estar no meio de pessoas que vivem intensamente cada momento daquele espectáculo. Gosto de apreciar a forma como vibram; os desabafos de uns, as piadas de outros, os nervos de alguns. É certo que a maior parte dos comentários se referem de forma superficial ao jogo; focam-se numa falta mais dura, numa oportunidade iminente de golo desperdiçada, num erro de arbitragem; relegando táticas, pressões ou ao espaço entre linhas para um plano secundário ou mesmo de importância duvidosa. O jogo é mais complexo do que o que se ouve num café, mas também é aquilo que ali se vive.

O futebol não escolhe classes sociais. Em qualquer parte do mundo qualquer um pode jogar, basta que arranje pelo menos um companheiro. Depois, com uma bola de trapos ou outra de uma marca famosa, num pelado ou num relvado, descalços ou com as melhores chuteiras do mercado, faça chuva ou faça sol, com balizas de paralelos ou com belas redes, com ou sem caneleiras, todos podem jogar, todos podem vibrar, todos podem viver o jogo.

É certo que jogar à bola e jogar futebol tem diferenças significativas. Para jogar à bola basta vontade, uma bola e um terreno; para jogar futebol, é necessário conhecimento e muita prática. É, contudo, ingrato que um tão grande desconhecimento do jogo, da sua essência e das suas dinâmicas, tenha conduzido à forma injusta como o futebol tem sido descrito e instrumentalizado. Normalmente considerado como um dos “ópios do povo” pela fácil massificação, e frequentemente apontado como um meio onde o ódio e os interesses económicos pululam tranquilamente, o jogo, em si, tornou-se gradualmente de interesse menor, tornou-se invisível. Lentamente, o foco nos erros dos árbitros, nas transferências de valores astronómicos ou na qualidade individual dos jogadores ganharam terreno e saltaram, pela facilidade de análise, para um plano principal, obscurecendo a essência do jogo. No entanto, o futebol tem muito mais do que o superficial, muito mais do que o facilmente observável, mais complexo, social e humano do que o que aparenta.

O futebol contribui para o desenvolvimento individual e colectivo e pode contribuir de forma relevante para a forma como nos comportamos em sociedade. Começa por um princípio simples: uma equipa é constituída por várias pessoas com diferentes personalidades, temos que aprender a gerir essas diferenças, aceitar as divergências, procurar consensos, compreender também que muitas vezes encontraremos pessoas incríveis e outras das quais não gostaremos tanto. Aprendemos, de qualquer modo, que é incontornável lidar com a diferença, com a divergência e com o conflito, farão parte do jogo e da vida. Aprendemos, gradualmente, à medida que a consciência do jogo aumenta, a importância do autocontrolo, da interpretação dos adversários, das movimentações, das dinâmicas, das fragilidades e dos pontos fortes daqueles. Aprendemos como é fundamental a cooperação, a solidariedade no interior da nossa equipa, e como o jogo assenta na compensação, na verdade é de extrema importância que saibamos corrigir os nossos colegas como esperamos que nos corrijam a nós, e para isso exige-se uma concentração e uma leitura atenta, rápida e global do que acontece durante o jogo. A este conjunto de competências, junta-se a tomada de decisão. Temos que ser pragmáticos e objectivos, o jogo desenvolve-se com uma rapidez vertiginosa, temos que tomar decisões em milésimos de segundo, em vários casos uma hesitação ou uma má decisão pode colocar em causa a coesão da equipa, e daí surgir uma jogada de perigo, ou mesmo um golo.

O jogo exige que lentamente tenhamos consciência do nosso contributo para um colectivo. As nossas características individuais fazem parte de um puzzle que se torna completo quando a ele somos somados. Implica, ainda, que percebamos que tendo o jogo uma génese colectiva, teremos que nos tornar mais altruístas e abandonar o narcisismo, a ideia que somos incríveis e que sozinhos podemos resolver os desafios — não podemos. A não ser que sejamos um Cristiano Ronaldo, um Neymar, ou um Messi, a probabilidade de que as nossas acções individuais garantam os objectivos da equipa são, frequentemente, diminutas. Não obstante estes argumentos, o futebol é um jogo colectivo que não pode idolatrar as suas individualidades, mas também não as pode menosprezar. E este é outro jogo dentro do jogo. Quanto maior e melhor for o crescimento individual, maior e melhor será o contributo para a equipa. É aqui que se encaixa a noção de competição, porque ela adquire proporções diferentes ao longo do tempo, inicialmente é a equipa adversária, depois o colega que ocupa a mesma posição e, finalmente, num estado avançado, é cada um de nós, ou seja a luta deve passar a ser com cada um de nós, é uma luta interna pelo aperfeiçoamento individual sem ignorar as necessidades colectivas. Tal como na vida.

Posto isto, o futebol faz parte da minha vida, sou apaixonado pelo jogo. Adoro jogar, é talvez o único período de tempo em que a minha mente não consegue pensar em mil e uma coisas ao mesmo tempo, a exigência e a concentração (mesmo a jogar entre amigos) são princípios que depois de adquiridos não se abandonam facilmente. Ao mesmo tempo, tive que conviver com o rótulo segundo o qual os jogadores de futebol são normalmente pouco inteligentes, se aliarmos a isso um bom aspecto físico, o estigma ganha outra dimensão. A justificação é fácil e pode ser transposta para vastos contextos das nossas vidas: a ignorância, por um lado, daqueles que desconhecem algo sobre o qual decidem falar e optam, como estratégia, por denegrir o objecto da conversa, julgando que dessa forma evitam expor a sua ignorância sobre o assunto; e, por outro, a definição de inteligência, tão fortemente conectada com o saber escolar, sendo que os conhecimentos e as competências que o futebol nos fornece são desvalorizadas e muitas vezes amesquinhadas, quando todas elas são importantes para as nossas vidas.

O futebol não deve ser considerado apenas sob uma perspectiva, tal como tudo na vida.

Gosto de ver um jogo de futebol no café.