Já todos tropeçámos nas obras de Berri Blue — basta andar na rua
As ruas da Baixa do Porto são a galeria da artista polaca que se inspira no seu inconsciente para tratar com leveza temas como a identidade, a sexualidade, a saúde mental e a morte
Primeiro apareceram os enormes vultos negros à espreita entre as sombras, depois os seios arrebitados de figuras femininas completamente desinibidas com a sua sexualidade e, ainda, as bochechas rosadas de rostos que misturam traços femininos e masculinos. Estas são apenas algumas das obras de Berri Blue que decoram as paredes da Baixa do Porto desde 2016. A artista polaca não se considera uma artista de rua, mas vê este espaço como uma forma de se imbuir no ambiente que a rodeia. “Gosto que os meus trabalhos façam parte da vida das pessoas e que elas possam criar a sua própria relação com eles”, começa por contar ao P3.
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Primeiro apareceram os enormes vultos negros à espreita entre as sombras, depois os seios arrebitados de figuras femininas completamente desinibidas com a sua sexualidade e, ainda, as bochechas rosadas de rostos que misturam traços femininos e masculinos. Estas são apenas algumas das obras de Berri Blue que decoram as paredes da Baixa do Porto desde 2016. A artista polaca não se considera uma artista de rua, mas vê este espaço como uma forma de se imbuir no ambiente que a rodeia. “Gosto que os meus trabalhos façam parte da vida das pessoas e que elas possam criar a sua própria relação com eles”, começa por contar ao P3.
Berri Blue, que se caracteriza como “uma pintora e designer que por acaso coloca o seu trabalho na rua”, trabalha sobre madeira compensada, papel de embalar castanho e jornais e, depois, cola as suas obras pela cidade com uma pasta caseira feita de farinha, açúcar e água. “Espero até estar tudo calmo e vou por aí com um balde e um pincel grande. Os domingos são muito bons, porque os bares fecham cedo”, revela a artista. “Algumas destas obras vivem para sempre. Há uma perto do Aduela [Rua das Oliveiras], que é um dos meus primeiros trabalhos e que ainda está lá”.
Filha de pais polacos, Berri mudou-se com a mãe para Dublin aos 13 anos, cidade onde iniciou a sua carreira e onde ficou até aos 24, altura em que veio para o Porto com o marido, Willim. A turbulenta vida familiar e a adolescência marcada pela mudança levaram a que nunca se sentisse em casa. “Nunca me identifiquei como polaca ou irlandesa. Esse conceito de 'casa' é algo que sempre desejei, mas nunca tive, daí que a minha cabeça se tenha tornado ela própria num lugar”, explica. É, aliás, ao seu inconsciente que Berri recorre para buscar inspiração para as suas obras. “Não sou uma pessoa religiosa ou espiritual, mas tenho sonhos muito vívidos e às vezes até sonho com quadros completos”.
Foi num desses sonhos que surgiu Death, um projecto composto por grandes figuras sombrias que representavam a morte e que eram colocadas estrategicamente em esquinas das ruas do Porto, após jornadas de trabalho que podiam durar uma noite inteira (entre a meia-noite e as 6h). “Sonhei que estava com a minha avó na Polónia e vi esta figura enorme que era a morte. Pensei que ia levá-la, mas em vez disso baixou-se e deu-me um beijo. Foi um daqueles sonhos que nos deixam agitados, por isso quis dar às pessoas a mesma experiência que eu tive”.
A morte é um dos temas recorrentes no trabalho da artista, assim como a identidade, a saúde mental (depressão e ansiedade) e a sexualidade. Temas que, embora exijam alguma seriedade, são tratados com uma certa leveza, graças às linhas descontraídas e cores eufóricas, fruto da influência irlandesa na vida e obra da pintora. “Os irlandeses são muito bem-dispostos e sociáveis, mas não falam sobre os seus sentimentos. Fazem de tudo uma piada”.
Porto, uma cidade "criativamente estimulante"
Depois de deixar a Irlanda devido ao instável clima económico e à inflação dos preços da habitação, Berri e Willim fizeram-se à estrada e acabaram a viver em Arganil durante quatro meses, tendo-se depois rendido ao Porto. “Quando cheguei, pareceu-me logo uma tela, porque os edifícios são gastos e sujos, mas completamente genuínos”, reconhece Berri. “É a cidade mais criativamente estimulante que já experienciei”. Quando não está a admirar e a trabalhar a arquitectura portuense, é possível encontrar a artista entre a Taskinha e a Cervejaria Mirita, zona de eleição para uma saída com os amigos; também pode estar a comer “o melhor arroz de frango da cidade” na confeitaria Império ou a passear e fazer compras no mercado do Bolhão, “onde [a cadela] Muszka é muito mimada por todas as avozinhas".
Há quem dê de caras com as obras de Berri na rua e queira, posteriormente, comprar um quadro seu para consumo privado. Nesses casos, a artista faz questão de receber o comprador no seu estúdio para conversar sobre a obra a adquirir. “Gosto de estabelecer esta ligação pessoal e também é uma oportunidade para o público de conhecer o autor daquele trabalho”.
Além de continuar a produzir trabalhos para as paredes do Porto, Berri Blue está prestes a lançar novos produtos da sua colecção de lenços de luxo e encontra-se à procura da galeria certa para organizar a sua primeira exposição na cidade. E se é verdade que finalmente alcançou a estabilidade, o seu trabalho segue em constante metamorfose. A única certeza é que eventualmente iremos tropeçar nele.