Residentes da praia de Faro sabem que correm riscos mas não arredam pé
O mar já lhes entrou pela casa adentro mas ninguém arreda pé de uma zona que todos sabem sujeita a erosão e tempestades. Esta vitória da emoção sobre a razão, que se repete em muitas situações de risco, tem sido alvo de vários estudos académicos.
A população da praia de Faro, no Algarve, sabe que se expõe voluntariamente ao impacto de tempestades naquela que é uma zonas do país mais vulneráveis à erosão costeira, mas a sua percepção desse risco é baixa. Esta aparente contradição pode explicar-se por altos níveis de apego à praia, aliados a um profundo sentido de comunidade e enraizamento, revela um estudo realizado por investigadores da Universidade do Algarve (UAlg). A emoção sobrepõe-se à razão e é a âncora que os mantém naquela terra.
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A população da praia de Faro, no Algarve, sabe que se expõe voluntariamente ao impacto de tempestades naquela que é uma zonas do país mais vulneráveis à erosão costeira, mas a sua percepção desse risco é baixa. Esta aparente contradição pode explicar-se por altos níveis de apego à praia, aliados a um profundo sentido de comunidade e enraizamento, revela um estudo realizado por investigadores da Universidade do Algarve (UAlg). A emoção sobrepõe-se à razão e é a âncora que os mantém naquela terra.
“A percepção de risco é uma construção emocional, não racional, que depende de factores como a idade, a personalidade, as influências sociais e as experiências passadas”, explica Rita Domingues, investigadora do Centro de Investigação Marinha e Ambiental e do Centro de Investigação sobre Espaço e Organizações da UAlg.
Nos questionários que serviram de base a este trabalho, publicado no último número do Journal of Spatial and Organizational Dynamics, todos os residentes da praia de Faro relataram episódios de confronto com tempestades. “No primeiro ano que vim para cá [1978] houve um grande temporal, o mar entrou-nos pela casa dentro e levou-nos tudo”, relata um dos participantes no estudo. Apesar destes prejuízos materiais, nunca ocorreram fatalidades na sequência de temporais na zona, o que provavelmente contribui para a sensação de segurança física expressa pela população.
Segundo Rita Domingues, facultar mais informação à população acerca dos perigos e vulnerabilidade costeira não implica necessariamente um aumento da percepção de risco. De acordo com um trabalho anterior liderado por Sílvia Luís do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), mais conhecimento do risco ajuda ao que os especialistas apelidam de “normalização do risco”, que é um mecanismo psicológico desenvolvido pelos indivíduos que lidam com situações permanentes de perigo (por exemplo, pessoas com profissões de alto risco ou refugiados).
Num estudo complementar, liderado por Susana Costas, especialista em Ciências Marinhas da UAlg, concluiu-se que os residentes da praia de Faro decidem correr riscos porque, para além do apego ao lugar, consideram que os benefícios e oportunidades que advêm de viver no litoral são compensatórios e proporcionam-lhes uma sensação de liberdade. Deste estudo, publicado na revista Ocean & Coastal Management, fica patente que a perspectiva dos gestores costeiros, consultores, protecção civil e cientistas são frequentemente opostas, o que dificulta a resolução do problema.
Os resultados mostraram ainda que, embora existam soluções técnicas para minimizar o risco costeiro, é necessário que haja diálogo com as populações, coordenação institucional, transparência e vontade política para que as soluções sejam aceites e assumidas pelas populações.
Estes estudos têm sido realizados no âmbito de um projecto europeu (RISC-KIT) que desenvolveu métodos de previsão/alerta e ferramentas de gestão face a eventos meteorológicos extremos em oito países da Europa (Alemanha, Bélgica, Bulgária, Espanha, França, Itália, Portugal, Reino Unido) e no Bangladesh. De acordo com Óscar Ferreira da UAlg, coordenador do projecto em Portugal, “as entidades gestoras têm neste momento os elementos suficientes para perceberem qual é o risco actual para cada tempestade e como é que ele é diminuído pelas medidas de intervenção que se podem lá efectuar”.
O aspecto mais inovador deste projecto é que pela primeira vez se aborda o tema do risco costeiro de forma integrada, incluindo os pontos de vista de investigadores em processos físicos, socioeconómicos e psicológicos.
As tempestades e o litoral
A ocorrência de tempestades — nomeadamente o furacão Katrina nos EUA em 2005, a tempestade Hercules em 2014 na Europa e mais recentemente o furacão Irma em 2017, nos EUA e Caraíbas — demonstrou a fragilidade das zonas costeiras. De acordo com as estimativas de 2009, 41% da população da União Europeia e 83% da população portuguesa vive no litoral, onde as alterações são constantes devido à acção das ondas, correntes, ventos e marés.
No entanto, enquanto a natureza se adapta de forma flexível a estas mudanças, as populações costeiras tendem a manter as suas posições rígidas. Segundo o que João Alveirinho Dias, especialista em dinâmica costeira e variações do nível médio do mar, vem dizendo há décadas, “o principal problema do litoral português não é, na realidade, a erosão costeira, mas sim a ocupação permanente de zonas com elevada vulnerabilidade, onde a erosão costeira já existia”.
A Praia de Faro
A praia de Faro é uma pequena povoação localizada numa das ilhas arenosas da Ria Formosa, com 623 casas e 245 residentes. A ocupação mais antiga conhecida na ilha data da década de 1930, com apenas 10 casas habitadas e usadas por pescadores. O maior desenvolvimento urbanístico dá-se após o 25 de Abril de 1974, relacionado com o aumento do turismo nacional. Actualmente, existem na praia de Faro duas realidades diferentes: uma comunidade piscatória residente, nalguns casos ocupando habitações de fraca qualidade, e a comunidade turística não-residente, em edifícios maiores e de melhor construção.
Texto editado por Ana Fernandes