John Lee Hooker saiu bem vivo de todo este blues

King of Boogie compila cinco décadas de carreira de um dos maiores bluesman da história, John Lee Hooker, no ano em que passa um século desde o seu nascimento.

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Michael Ochs Archives/Getty Images

Seis dias por semana, o pai trabalhava nos campos de algodão o trabalho duro e mal pago que moía o corpo mas alimentava a família. Ao sétimo, o corpo cansado procurava para si, e oferecia aos outros, a força do espírito que regenerasse a carne. Ao sétimo dia, William Hooker, nascido em 1871 no Mississipi, subia ao púlpito e pregava a palavra de Cristo. Pastor baptista, não autorizava que os filhos ouvissem ou tocassem música profana. Aos domingos, tinha-os à sua frente, todos os 11 nascidos do casamento com Minnie Ramsey, afinando as vozes nos cânticos gospel de catarse e devoção.

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Seis dias por semana, o pai trabalhava nos campos de algodão o trabalho duro e mal pago que moía o corpo mas alimentava a família. Ao sétimo, o corpo cansado procurava para si, e oferecia aos outros, a força do espírito que regenerasse a carne. Ao sétimo dia, William Hooker, nascido em 1871 no Mississipi, subia ao púlpito e pregava a palavra de Cristo. Pastor baptista, não autorizava que os filhos ouvissem ou tocassem música profana. Aos domingos, tinha-os à sua frente, todos os 11 nascidos do casamento com Minnie Ramsey, afinando as vozes nos cânticos gospel de catarse e devoção.

O blues estava em todo o lado naquele território no sul dos Estados Unidos, cantado e tocado nos campos e nas casas, dançado nos cafés e juke joints e ouvido na rádio, mas os blues eram pecado. Nenhum filho de William Hooker iria perder-se nesse caminho. Não se ele pudesse fazer alguma coisa quanto a isso. Mas as coisas estavam prestes a mudar. Para o mais novo dos seus filhos, John Lee, nascido a 22 de Agosto de 1917, de forma decisiva.

Estamos no final dos anos 1920. O pequeno John Lee ouve com atenção o que lhe diz William Moore. É com ele que vive agora a mãe, divorciada do pastor Hooker. Moore não é pastor e não tem medo da perdição. Toca guitarra e, quando não a toca, passa o tempo a rodar discos de blues na grafonola. Um dia, muito sério, chama o enteado. “Ouve, filho, este é o blues a sério, o verdadeiro. Quero que o saibas”. E depois tocou e cantou e o pequeno John Lee não mais esqueceu a imagem do padrasto, cabeça atirada para trás, uma voz de uivo e lamento caída sobre os sons e a cadência repetitiva, insistente, da guitarra. “Nunca ouvi ninguém mais cantar assim”, recordou John Lee Hooker muitos anos depois, numa entrevista ao San Diego Union Tribune. Tinha então 77 anos. “[Aquele som] saiu da boca dele e nunca mais ouvi nada cantado assim por ninguém. Da forma que o Will Moore me ensinou, e da forma que o toco, o blues é simplesmente uma coisa diferente. Não é como o de mais ninguém”.

King Of Boogie é o título da caixa que compila em cinco CDs o percurso de um dos nomes maiores do blues, autor de clássicos fundadores como Boogie chillen’, Boom boom, Crawling king snake ou Dimples, influência maior para o rock’n’roll, ídolo de Rolling Stones, The Animals, Jimi Hendrix, The Doors, MC5, Van Morrison, Eric Clapton, Public Enemy ou Nick Cave, cantor e músico cujos ecos se ouvem em música tão aparentemente distante da sua quanto a dos Suicide armados de caixa de ritmo e sintetizador.

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Gilles Petard/Redferns

Acompanhado dos habituais textos de contextualização, ilustrados com fotografias que mostram a evolução de John Lee Hooker com o passar das décadas, ora de rosto suado em concerto, ora de cigarro no canto da boca enquanto os microfones captam o som no estúdio, e ei-lo já decano de olhos escondidos atrás de óculos escuros, fato elegante como sempre, rugas que não escondem a expressão enigmática, King Of Boogie atravessa cinco décadas de carreira, das solitárias gravações no final dos anos 1940, só Hooker, a sua guitarra e o pé a marcar o ritmo com autoridade, aos anos de consagração entre os pares, na passagem dos anos 1980 para os 1990, quando se especializou em álbuns de colaboração com os seus descendentes musicais (Santana, Bonnie Raitt, George Thorogood, entre muitos outros) que nada acrescentam ao seu legado mas que, Grammy atrás de Grammy, homenagem atrás de homenagem, lhe garantiram o reconhecimento da indústria musical americana.

Pouco temos a aprender com os registos finais e são apenas relativamente interessantes as colaborações com a juventude de outrora que, em Inglaterra e no seu próprio país, redescobria o blues e se apropriava dele. Mas, ouvindo lá atrás, encontramos uma voz única, realmente igual a nenhuma outra. “Com John Lee, há uma quebra na continuidade dos estilos. O que ele recolheu tem que vir de uma geração mais antiga que a de qualquer outro”, disse certo dia Keith Richards, guitarrista dos Rolling Stones, ao historiador blues Jas Obrecht, autor de um dos textos incluídos em Born to Boogie.

O blues caminhou para norte

John Lee Hooker foi uma ponte. William Moore, dizem alguns historiadores, fazia parte do grupo de amizades dos bluesman que definiram o blues rural do Mississipi. Segundo eles, o pioneiro Charley Patton, influência decisiva para o lendário Robert Johnson, por exemplo, era visita de casa e alguém com quem Moore, que nunca gravou, chegou a tocar ocasionalmente. Através deles, e da colecção de discos do padrasto, John Lee Hooker contactou directamente com a fonte. Ouvindo a sua música, o serpentear da guitarra ao longo de toda uma canção, sempre no mesmo acrode, e como a moldava ao dramatismo da narrativa, ignorando noções de ritmo convencionais, somos levados mais longe ainda.

Quando Ali Farka Touré, o grande músico maliano, ouvia alguém classificar a sua música como “blues do Mali”, não demorava a corrigir: “os bluesman americanos é que tocam a nossa música”, recordava. Essa ascendência fez o seu caminho até à guitarra de John Lee Hooker.

Aos 14 anos, como tantos da sua geração, rumou a norte, em fuga da vida árdua nos campos de plantação. Viveu em Memphis, onde trabalhou num cinema na famosa Beale Street, epicentro da comunidade negra da cidade. Não se demorou muito na cidade imortalizada mais tarde através de Elvis e dos Sun Studios. Os pais surgiram para o levar de volta a casa, mas John Lee não se demorou muito. Uma semana depois do “resgate”, ei-lo de novo à boleia. Ignorou Chicago, onde uma vasta comunidade de bluesman elecrificava guitarras e reunia bandas, e escolheu Detroit – “havia demasiada competição em Chicago”, argumentou.

Em Detroit, empregou-se como operário, fez serviço de limpeza e mais um sem número de trabalhos. Em Detroit, enquanto músico contratado para animar festas – recebia gorjetas dos convivas como pagamento – foi aperfeiçoando o seu estilo. Das festas saltou para os clubes da Hastings Street, a rua onde fervilhava a boémia da cidade, e, trocada a guitarra acústica por uma eléctrica, oferecida por T-Bone Walker, forma se fazer ouvir entre o ambiente ruidoso nas salas, começou a destacar-se. Quando o ouvimos pela primeira vez em disco, tinha 31 anos e estava plenamente formado.

O movimento circular da guitarra, o pé marcando o ritmo, o tom grave da voz e o mundo que ela transportava: “When I first came to town, people, I was walkin’ down Hastings Street / Everybody was talkin’ about the Henry Swing Club / I decided I drop in there that night / When I got there, I say, yes people / They was really havin’ a ball”. Editado em 1948, Boogie chillen’ não foi apenas o primeiro disco e o primeiro grande sucesso de John Lee Hooker. Deixou cristalizado um som e um formato musical que seria, a partir dele, reproduzido vezes sem fim.

O segredo estava na sabedoria com que Hooker encarava a matéria musical que lhe havia sido passada pelos seus mestres, incorporando-a e juntando-lhe a sua voz e experiência. “A sua forma de tocar é muito arcaica”, escreveu Keith Richards na sua autobiografia, Life. “A maior parte do tempo, ignora mudanças de acordes. Elas são sugeridas, mas não tocadas. Se ele está a tocar com outra pessoa, os acordes desse músico irão mudar, mas ele mantém-se, não se move. E é inflexível”. O segredo estava também naquilo que cantava. O amor e ciúme, paixão e traição, temas de sempre do blues, mas também as histórias resgatadas ao quotidiano - Boom boom nasce de um comentário que ouvia a uma empregada de bar sempre que chegava atrasado para os concertos: “Boom boom, I’m gonna shoot you right down” -, ou a episódios do seu tempo, que, pela pungência da interpretação, transforma em narrativas com a dimensão de mito – o tom apocalíptico da austera Tupelo blues, canto quase falado e guitarra acústica a evocarem as inundações que arrasaram a cidade do título, era John Lee Hooker uma criança; o blues tumultuoso de Motor city is burning, banda completa e guitarras faiscando uma perante a outra, relato dos devastadores motins que varreram Detroit em 1967, motivados por violência policial sobre a comunidade negra da cidade.

“[A minha música] Conta a história de homens e mulheres. A música é toda sobre isso. Sobre sermos humanos, sobre amar e odiar”, resumiu Hooker na supracitada entrevista com Jas Obrecht. “Qualquer canção que cante, é sobre algo que aconteceu na minha vida ou na vida de alguém neste mundo”, disse noutra ocasião.

Nos seus primeiros anos de actividade discográfica, terá gravado, dizia, mais de cem singles. Muitos deles, porém, não surgem na sua discografia oficial. Desconfiado, após alguns contractos ruinosos financeiramente, gravava para qualquer editora que o desejasse, assumindo nomes diferentes para se proteger de conflitos contratuais – em King of Boogie, temos canções sua enquanto Texas Slim, Delta John ou Johnny Lee. Nesse período, gravava sem acompanhamento – quando muito, tinha a seu lado uma harmónica ou uma segunda guitarra. Era nesse formato que se sentia melhor. “Não havia a banda a interferir. Podia fazer o que quisesse, quando quisesse”. Além disso, como contava o grande crítico norte-americano Lester Bangs, naqueles primeiros anos era difícil encontrar uma secção rítmica que conseguisse acompanhar a estrutura “excêntrica”, palavras de Bangs, das suas canções.

Mas John Lee Hooker gravaria com banda, inevitavelmente. “Criei em três campos. Um campo folk, um campo blues e um campo ‘jump’ para os miúdos. Se fosse necessário, também conseguia tocar hillbilly”, dizia. “Jump music” era um termo usado à época para designar jazz guiado pelo força do ritmo. Os miúdos arranjaram-lhe outro nome. Como recordava o seu grande amigo BB King, quando Boogie Chillen foi editado, ninguém lhe chamava blues. “Aquilo era festa, era o primeiro rock! Fizeste o rock’n’roll a partir dali”. Talvez tivesse feito. Mas não era isso que ouvia na sua música.

Quer transformasse o seu “boogie” minimal em festim dançante, quer se aproximasse do funk, como em Homework, gravado em 1974; quer deixasse Santana incluir flautas sintetizadas e outros marcas demasiada 80s, bem como solos de guitarra incontinentes, como se ouve na penosa The Healer, do álbum de regresso em 1989, John Lee Hooker ouvia sempre o mesmo.

King of Boogie conta a história desde o início a solo, mostra como se adapta ao formato de banda e como regressava, de tempos a tempos, às raízes folk. Mostra as colaborações com os “miúdos” da British Invasion nos anos 1960 e com admiradores como os Canned Heat, nos anos 1970. Dá-nos a oportunidade de o ouvir acompanhado pela banda de Muddy Waters (um privilégio), de ouvir a evolução dos seus concertos ao longo dos tempos e, por fim, de o reencontrar, veterano, a gravar os álbuns de colaboração com estrelas que a indústria tanto aprecia (e que são a componente dispensável desta colecção).

“Os blues vêm de muito atrás no tempo. Quando o mundo nasceu, o blues nasceu também”, costumava dizer John Lee Hooker. Morreu pacificamente durante o sono aos 83 anos, em 2001. "I'll never get out of these blues alive", cantava ele. É uma meia verdade.