Será que a próxima geração de medicamentos virá do dragão-de-komodo?
No sangue dos dragões-de-Komodo já foram identificadas 200 moléculas nunca antes vistas. E 48 delas têm efeitos antimicrobianos. Numa altura em que estamos a braços com a resistência das bactérias aos antibióticos, os cientistas viram-se para o sangue destes répteis à procura dos seus segredos.
Durante milhares de anos, os dragões-de-komodo sobreviveram na ilha rochosa isolada na Indonésia, apesar de competirem com outros répteis venenosos, caçarem veados e búfalos capazes de esmagarem ossos com um simples pontapé e lidarem com monções, tsunamis e secas.
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Durante milhares de anos, os dragões-de-komodo sobreviveram na ilha rochosa isolada na Indonésia, apesar de competirem com outros répteis venenosos, caçarem veados e búfalos capazes de esmagarem ossos com um simples pontapé e lidarem com monções, tsunamis e secas.
O sucesso destes lagartos gigantes – que chegam a pesar mais de 135 quilos e a medir mais de dois metros de comprimento – pode estar relacionada com o facto de a sua mordedura ser tão venenosa que até uma muito pequena pode matar.
Os dragões-de-komodo têm mais de 50 variedades de bactérias na boca, mas raramente adoecem. Para além disso, também são imunes às mordeduras de outros dragões-de-komodo. Os cientistas defendem que a razão está no seu sangue repleto de proteínas chamadas péptidos antimicrobianos (AMP, na sigla em inglês), uma defesa versátil contra infecções produzida por todas as criaturas vivas, que um dia pode vir a ser usada em medicamentos para proteger os seres humanos – o que será bem-vindo, uma vez que os antibióticos estão a perder a eficácia à medida que as bactérias desenvolvem resistências.
“Os péptidos do dragão-de-komodo são diferentes de todos os outros. Estes animais têm bactérias na boca, vivem num ambiente difícil e sobrevivem”, afirma Barney Bishop, um químico da Universidade de George Mason (Virgínia, EUA), que participou na descoberta, em 2013, das características invulgares dos péptidos presentes no sangue dos dragões. “Se descobrirmos por que são capazes de combater bactérias e o que os faz ser tão bem-sucedidos, podemos usar esse conhecimento para desenvolver antibióticos.”
Através de um processo chamado bioprospecção, Barney Bishop e a sua equipa identificaram mais de 200 péptidos no sangue do dragão-de-komodo que nunca tinham sido vistos.
Houve pelo menos uma grande descoberta. Um dos péptidos do dragão-de-komodo foi usado para desenvolver uma substância sintética, chamada DRGN-1, que penetra na camada das bactérias que se prende à superfície de uma ferida e que pode impedir a cicatrização. Quando a DRGN-1 foi testada em bactérias vivas e em feridas infectadas com bactérias, os resultados foram surpreendentes: as feridas cicatrizaram de forma significativamente mais rápida do que se não tivessem sido tratadas.
A microbióloga Monique van Hoek, que trabalhou com Barney Bishop no projecto, descreveu assim a DRGN-1, num comunicado de imprensa da Universidade de George Mason: “[É] uma nova abordagem com potencialidade para derrotar as bactérias que se tornaram resistentes aos antibióticos convencionais. Os péptidos antimicrobianos em que estamos a trabalhar representam milhões de anos de evolução na protecção de sistemas imunitários contra infecções perigosas.”
Encontrar estes péptidos e testá-los não é fácil. A DRGN-1 foi desenvolvida depois de um espectrómetro de massa ter identificado péptidos no sangue do dragão-de-komodo com capacidade para atacar bactérias resistentes a antibióticos. “Se um péptido mostrar grande actividade microbiana” em análises de laboratório, “podemos pensar como utilizá-lo”, explica Barney Bishop. “Se tivermos sorte, temos um novo candidato. O mais provável é termos de ajustar a sua sequência e estrutura.”
Os investigadores esperam encontrar outros potenciais fármacos com base no sangue do dragão-de-komodo – assim como no sangue de crocodilos e jacarés – e depois convencer uma empresa farmacêutica a ajudar a levar as descobertas para o mercado. Por enquanto, já se identificaram 48 potenciais AMP no sangue do dragão-de-komodo que nunca tinham sido vistas. Estas descobertas podem vir a ser usadas para tratar problemas do dia-a-dia, como a acne e a pneumonia, ou para neutralizar armas biológicas, como o antraz.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), as infecções causadas por bactérias resistentes matam até 700 mil pessoas por ano, um número que pode chegar aos dez milhões por ano em 2050. A OMS alerta que as bactérias resistentes estão a aumentar para “níveis perigosos em algumas partes do mundo, ameaçando a nossa capacidade de tratar doenças infecciosas comuns, incluindo a pneumonia, a tuberculose, a septicemia e a gonorreia.”
“A verdade alarmante é que para a maioria das populações a era dos antibióticos eficazes já chegou, ou chegará em breve, ao fim”, alertaram os investigadores [da OMS] no ano passado. Agências governamentais de saúde dos Estados Unidos, incluindo os Centros para o Controlo e Prevenção das Doenças, têm insistido na investigação de novos medicamentos e métodos de combate à resistência a antibióticos.
Gotas de sangue preciosas
Ora, Barney Bishop e Monique van Hoek têm estado a testar os AMP do sangue do dragão-de-komodo contra um painel de bactérias, que inclui as bactérias altamente resistentes aos antibióticos e que a OMS considera como agentes patogénicos prioritários. Mesmo depois de quatro anos dedicados aos dragões-de-komodo, Barney Bishop ainda não sabe por que é que os seus péptidos são diferentes de todos os outros. Será o ambiente em que vivem, pergunta-se, ou estará relacionado com a sua evolução?
É complicado estudar um animal que é difícil de capturar, por causa tanto do local remoto onde vive na natureza como da sua mordedura venenosa. Por isso, Barney Bishop tem usado amostras do Tujah, um dragão-de-komodo do Parque Zoológico de Aligátores de St. Augustine, na Florida (EUA). Para os que estão preocupados com o bem-estar do animal, os colaboradores de Barney Bishop só lhe tiram sangue equivalente ao bico de um lápis, obtido através da picada rápida de uma agulha na cauda de Tujah. Desde 2012 que recolheram apenas uma mão-cheia de amostras.
“Cada microlitro desse sangue é precioso”, sublinhou o investigador. “Mas se ele não for sujeito a isso, então não teremos sangue. Estamos atentos à sua saúde e bem-estar.” Depois, as amostras são analisadas para identificar substâncias com potencialidade para desenvolver fármacos. “Não vamos ter quintas de dragões-de-komodo; identificamos os péptidos, sequenciamo-los e depois sintetizamo-los”, explica Barney Bishop.
O projecto deste cientista com o dragão-de-komodo começou em 2012, com um financiamento de 7,6 milhões de dólares (6,5 milhões de euros) do Departamento de Defesa dos EUA, para analisar espécies que conseguem sobreviver, apesar dos grandes desafios ambientais que enfrentam e da interacção com bactérias patogénicas. Além dos dragões, o investigador tem estado a estudar os jacarés-chineses e crocodilos de água salgada, que mostraram ter uma forte imunidade contra as doenças, apesar de comerem animais infestados de bactérias, viverem em ambientes ricos em bactérias e até sobreviverem à perda de membros sem apanharem infecções.
Inicialmente, a investigação foi financiada para ajudar a que os ferimentos dos militares sarassem mais rapidamente e a encontrar maneiras de os proteger de armas biológicas de origem bacteriana. A investigação poderia vir a resultar em produtos comercializados para tratar cortes ou reduzir infecções da pele.
Benefícios para a saúde humana também foram encontrados em substâncias químicas extraídas de outros animais letais, incluindo de uma das serpentes mais venenosas do mundo, a taipan da Austrália. Em 2006, investigadores chegaram a dizer que foram identificados, no veneno desta serpente, os compostos químicos que um dia podem vir a ser usados para reduzir rapidamente o sangramento excessivo em cirurgias. Em 2015, investigadores mexicanos demonstraram que o veneno de escorpiões poderia matar células cancerosas.
“É no mais improvável dos animais que vão ser encontrados os fármacos milagrosos do futuro”, diz Bryan Fry, um herpetólogo da Universidade de Queensland (na Austrália), que descobriu em 2009 que os dragões-de-komodo usam veneno para matar as presas. Até então, explica Bryan Fry, supunha-se apenas que a sua mordedura causava uma infecção mortal produzida pela sua saliva pestilenta. Essa ideia estava tão enraizada nas mentes dos investigadores que ninguém se preocupou em testar se os lagartos eram, na verdade, venenosos.
Bryan Fry concorda com a opinião de Barney Bishop de que os dragões-de-komodo podem ser a próxima fronteira da medicina, comparando o potencial deste réptil com fármacos como o captopril, que foi desenvolvido há 40 anos a partir do veneno de uma espécie de serpente da América do Sul (a Bothrops jararaca) para tratar a tensão arterial elevada. “O medicamento continua a valer por ano dez milhões de dólares [8,5 milhões de euros].” O fármaco obtido do veneno daquela serpente é agora um inibidor da enzima de conversão da angiotensina (IECA), amplamente utilizado no tratamento cardiovascular.
Barney Bishop diz que, para transformar o sangue do dragão-de-komodo num fármaco milagroso, precisa de mais sangue. “Muito mais sangue”, lamenta dizê-lo. “Precisamos de um número maior de animais para estudar.” Mas o Tujah é a única amostra que o investigador tem, e ele pensa que os dragões-de-komodo na natureza têm provavelmente mais péptidos com poderes curativos a correr-lhes nas veias do que o seu dragão em cativeiro há 13 anos, uma vez que viver num ambiente selvagem força o sistema imunitário a funcionar ao máximo.
O investigador nunca viu um dragão-de-komodo na natureza e diz que é improvável ir vê-los no terreno. É caro viajar para a pequena ilha onde vivem estes dragões. Felizmente, têm uma vida longa em cativeiro, de cerca de 25 anos. O desenvolvimento de fármacos ainda tem um longo caminho a percorrer, mas Barney Bishop está confiante. “Tenho uma filha de sete anos que dorme com um dragão-de-komodo de peluche. Gostaria que ela crescesse num mundo com antibióticos eficazes.”
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post