Protesto: desta vez Polanski não ficou em casa nem ficou calado
Retrospectiva que a Cinemateca Francesa dedica ao cineasta acusado de agressão sexual arrancou apesar dos protestos. Enquanto na rua pediam a sua extradição, na sala Polanski agradecia a “eternidade” dos seus filmes.
Foi pelas traseiras e escoltado por seguranças que Roman Polanski entrou na Cinemateca Francesa na noite de segunda-feira para apresentar o seu novo filme, D’après une Histoire Vraie, no arranque da retrospectiva que agora lhe dedica este museu francês. Na entrada principal, dezenas de pessoas que responderam à convocatória de várias organizações de defesa dos direitos das mulheres manifestavam o seu desagrado perante um programa que vêem como uma homenagem a um “violador”.
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Foi pelas traseiras e escoltado por seguranças que Roman Polanski entrou na Cinemateca Francesa na noite de segunda-feira para apresentar o seu novo filme, D’après une Histoire Vraie, no arranque da retrospectiva que agora lhe dedica este museu francês. Na entrada principal, dezenas de pessoas que responderam à convocatória de várias organizações de defesa dos direitos das mulheres manifestavam o seu desagrado perante um programa que vêem como uma homenagem a um “violador”.
“Pedocriminoso muito importante (Very Important Pedocriminal, em inglês)”, lia-se no tronco nu de uma das mulheres do Femen, grupo feminista com sede em Paris, numa irónica deturpação da sigla VIP (Very Important Person). “Se a violação é uma forma de arte, dêem a Polanski todos os Césares”, defendia um cartaz, enquanto os manifestantes pediam a extradição do realizador franco-polaco.
Polanski, o homem que dirigiu Chinatown e O Pianista, foi acusado por quatro mulheres de outros tantos crimes sexuais que remontam à década de 1970, quando todas eram ainda adolescentes. A mais recente suspeita foi lançada no início deste mês de Outubro, quando Renate Langer, uma mulher que tem agora 61 anos, disse ter sido violada pelo cineasta quando tinha 15, em Gstaad, na Suíça.
A agressão terá acontecido em 1972, mas Renate Langer resolveu falar dela passados 45 anos, e só depois dos seus pais terem morrido, porque, disse aos jornalistas, só agora ganhou coragem, graças à denúncia de outra das alegadas vítimas de Polanski, identificada simplesmente como Robin.
Robin falou em Agosto para dizer que Polanski a violou aos 16 anos, em 1973.
Estas mulheres juntaram-se, assim, a outras duas – Samantha Geimer e Charlotte Lewis. O realizador admitiu apenas ter tido relações sexuais com Geimer, em 1977, na casa do actor Jack Nicholson, que estava de férias. Ela tinha na altura 13 anos, ele 43.
Lembra o diário francês Le Figaro que Polanski passou, então, 47 dias na prisão, antes de sair sob caução. Foi quando aguardava julgamento em liberdade que o realizador, hoje com 84 anos, fugiu dos Estados Unidos, país a que jamais regressaria.
Samantha Geimer, que levou Polanski a tribunal e foi por ele indemnizada, já perdoou ao realizador há muitos anos e escreveu um livro em que conta a sua versão do sucedido. No dia 17 de Outubro, esta mulher que já é avó e está hoje casada com um empresário do imobiliário, voltou a falar sobre o assunto. Deu uma entrevista ao programa televisivo Good Morning Britain em que disse, entre outras coisas, que a agressão sexual de que foi vítima a prejudicou menos do que o cerco montado pelos media e pelos tribunais na sequência da queixa que a sua mãe apresentou contra o realizador.
“Eu era sexualmente activa. O sexo [com Polanski] traumatizou-me muito menos do que a maioria das pessoas gosta de pensar. […] Nos anos 70 tudo era muito diferente….”, disse aos jornalistas. “O que se passou no tribunal, nos media, isso sim, traumatizou toda a minha família, mudou as nossas vidas. A minha mãe teve de abandonar a sua carreira.”
Geimer lembrou ainda que o juiz encarregue do caso era desonesto, passava informação aos jornalistas, instruía os advogados sobre o que dizer e ameaçou Polanski com uma pena de prisão de 50 anos que dificilmente seria aplicada. “Roman Polanski tentou fazer a coisa certa – pediu-me desculpa, cumpriu a sua pena e estava a ser ameaçado por um juiz corrupto. Qualquer pessoa no lugar dele teria feito o que ele fez [fugir dos Estados Unidos].”
Quanto à apreciação da sua obra hoje, na Cinemateca Francesa ou fora dela, Samantha Geimer diz-se perfeitamente tranquila: “O seu trabalho não tem nada a ver comigo. […] Não me perturba minimamente que os seus filmes sejam reconhecidos.”
"Lógica de linchamento"
Reagindo à pressão das organizações feministas para que cancelasse a retrospectiva que começou segunda-feira à noite, o presidente da Cinemateca, Frédéric Bonnaud, fizera já saber num comunicado e em declarações à imprensa francesa, dias antes, que não cederia à “lógica de linchamento popular” que propunham.
O seu objectivo, acrescentara quando questionado sobre a pertinência de organizar uma retrospectiva de Polanski tendo havido novas denúncias em Outubro e no meio do turbilhão provocado pelo “caso Weinstein”, não era provocar, mas reconhecer a merecida importância da sua obra, numa altura em que o realizador se prepara para lançar um novo título: “Não estamos a substituir-nos a nenhuma Justiça. A nossa programação faz-se com um ano de antecedência. Sabíamos que Polanski tinha um novo filme pronto para Cannes [passou no último dia do festival de cinema, fora de competição]. Os grandes cineastas têm direito a uma retrospectiva todos os 12 anos”, disse ao diário Le Figaro.
Frédéric Bonnaud não quer ser juiz nem fazer da Cinemateca Francesa um tribunal, uma posição aceite, e contestada, por muitos. Alice, de 39 anos, ouvida pelo jornal Libération, está entre os que o acusam de estar “perfeitamente consciente do que está a fazer” e de querer “proteger os seus”. “Honras aos predadores”, lia-se no seu cartaz.
Para Pauline e Jonathan não se trata de censurar a filmografia de Polanski ou de negar o seu contributo como cineasta, mas de mostrar a sua obra sem esquecer o seu contexto – as acusações de violência sexual contra as mulheres. Pauline, admite, gostou muito de alguns dos filmes do realizador quando os descobriu, ainda muito nova, mas agora é incapaz de os rever: “Não posso. É necessário que nos lembremos a quem prestamos homenagem.”
Camille, de 28 anos, aproveita o facto de ter à sua frente um jornalista do Libération para se indignar contra um “sistema que revela a impunidade dos homens poderosos”, para responder ao presidente da Cinemateca e para denunciar aquilo que diz ser o preconceito de Bonnaud em relação ao cinema que é feito no feminino: “Quando a Cinemateca diz que aqueles que a atacam nunca puseram os pés nas suas salas, isso é falso, eu venho aqui com frequência. E fico chocada com o facto de serem raros os ciclos consagrados às mulheres cineastas.”
Lá dentro, na sala onde se esperava o arranque da retrospectiva, falaram Bonnaud e o realizador grego Costa-Gravas. O primeiro para assegurar a assistência que nunca lhe passou pela cabeça fazer qualquer alteração ao programa previsto, apesar da pressão social; o segundo para se dizer “honrado” com a presença de Polanski e para lhe garantir que, na Cinemateca Francesa, ninguém está preparado para se ver privado da sua obra.
Polanski, que em Fevereiro recusara presidir à cerimónia dos Césares, os prémios do cinema francês, para não acicatar polémicas, desta vez resolveu não ficar em casa e não ficar calado. Esteve nesta antestreia do seu D’après une Histoire Vraie (baseado no livro homónimo de Delphine Vigan, publicado em Portugal pela Quetzal Editores) com a mulher, a actriz Emmanuelle Seignier, e agradeceu o trabalho do museu do cinema: “A Cinemateca guarda os meus filmes. E é possível conservá-los para a eternidade, digamos… Em tempos podíamos queimá-los como Hitler queimava livros […]. Hoje temos o digital e podemos passá-los de um suporte para o outro sem perder qualidade e é por isso que a manutenção dos meus filmes está assegurada apesar de alguns loucos.”
A retrospectiva da obra de Polanski termina a 25 de Novembro, mas a Cinemateca Francesa parece apostada em continuar na mira das organizações feministas. Segundo o Figaro, o museu dirigido por Frédéric Bonnaud já anunciou para Janeiro de 2018 um ciclo dedicado a outro realizador controverso – Jean-Claude Brisseau.
Brisseau, que dirigiu filmes como Os Anjos Exterminadores e A Rapariga de Parte Nenhuma, foi condenado em 2005 a um ano de prisão por assédio sexual a duas actrizes. No ano seguinte, uma terceira actriz fez as mesmas acusações e, em 2007, o realizador foi ouvido num processo que envolvia uma violação. Foi deixado em liberdade.