Nas drogas “o que conta não é a ideologia, mas a realidade”
As salas de consumo assistido destinam-se a responder a um problema localizado. No final do ano, diz o director do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência, serão dez os países com programas deste género de redução de riscos. Portugal não será um deles.
Alexis Goosdeel, director do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência (OEDT), uma das duas agências europeias sedeadas em Lisboa, fala, nesta entrevista, sobre a legalização da cannabis nos EUA e no Canadá e de como a discussão sobre estes temas é hoje cada vez mais técnica e menos ideológica.
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Alexis Goosdeel, director do Observatório Europeu das Drogas e da Toxicodependência (OEDT), uma das duas agências europeias sedeadas em Lisboa, fala, nesta entrevista, sobre a legalização da cannabis nos EUA e no Canadá e de como a discussão sobre estes temas é hoje cada vez mais técnica e menos ideológica.
Há uma tensão constante entre a ciência e a política. O trabalho do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT) tem servido para influenciar as políticas na União Europeia?
O nosso trabalho é não tentar influenciar num sentido ou noutro. A objectividade ou neutralidade ideológica do OEDT tem sido uma das nossas qualidades. Os países que têm preparado alterações legislativas têm pedido o nosso apoio. Foi esse o caso da Roménia. Fui convocado pela comissão de saúde do parlamento alemão para partilhar informação sobre drogas, porque tinham um novo projecto de lei. No ano passado, fomos chamados pela Irlanda para os apoiarmos tecnicamente na elaboração da estratégia e do plano nacional das drogas. Não sei se se lembra, mas eu costumo dizer que sou o último dos moicanos, porque fiz parte do estudo de viabilidade do OEDT em 1992/93. Quando nos pedem apoio isso significa que confiam no nosso trabalho.
As recentes alterações políticas em alguns parlamentos de países europeus tiveram um impacto nas respectivas legislações?
Há muita convergência entre os Estados-membros, apesar da competência legislativa estar do lado dos governos nacionais, o que é bom. Conseguimos ter uma bateria de modos de intervenção que há quinze anos era conflituosa. Tratando-se de uma competência nacional, há um diálogo técnico e político que se foi desenvolvendo nos últimos anos entre os países, o que fez parte da estratégia e do plano de acção da presidência portuguesa em 2000.
A Europa olha para as questões da droga sob um prisma mais técnico do que moral?
Sim. Mensalmente, há uma reunião em Bruxelas para a coordenação entre os Estados-membros, nos quais participam o OEDT e a Interpol, e a discussão é hoje mais técnica e menos ideológica do que era há 20 anos. Não significa que todos vejam as coisas da mesma forma. Em Nova Iorque, na sessão especial da assembleia geral das Nações Unidas sobre drogas, a Europa falou a uma só voz, defendendo uma posição muito clara. E essa foi a primeira vez que tal aconteceu.
Há uma diferença muito grande entre o discurso da União Europeia e o das Filipinas...
Ou o da China, por exemplo, onde há pena de morte. Há uma tolerância técnica em respostas como, por exemplo, na questão das salas de consumo protegido, de que alguns países não gostam, ou não vêm necessidade de implementar. Há uma tolerância para com o facto de já serem sete ou oito — e no final do ano serão dez — os países que já usam este tipo de programas de redução de riscos.
As salas de injecção assistida nunca avançaram em Portugal por causa do receio da contestação pública: ninguém quer um equipamento deste tipo ao lado de casa.
“Not in my backyard” [“não no meu quintal”]. Assisti ao mesmo debate durante a criação de centros comunitários para toxicodependentes na França ou na Bélgica e acho que há um elemento importante: o facto de as salas serem uma resposta a um problema local. Em Copenhaga, por exemplo, não há ninguém que tenha dito que sonhava ter uma sala de consumo protegido ao lado de casa. Mas aquela sala foi a maneira de responder a um problema local, que se notava nas ruas e nas praças, com todas as consequências do consumo de rua. No próximo ano vamos organizar uma reunião técnica em Lisboa sobre este tema.
A experiência de Veneza é muito interessante: a sala de chuto foi criada com a participação da comunidade e dos jornalistas...
Não sabia.
... para que estes tivessem informação sobre o projecto e não contribuíssem para a reprodução de estereótipos que gerassem receios.
Interessante. Muita gente não quer uma sala no bairro, mas se perceberem que a alternativa é terem um problema maior de saúde e de segurança, se calhar mudam de ideias ,se tiverem mais informação.
Se eu vivo numa rua tranquila em Lisboa e, subitamente, abre uma sala destas, a primeira coisa em que vou pensar é que o valor da minha casa vai baixar imediatamente. O que conta não é a ideologia, seja dos técnicos ou dos promotores dos programas, mas a realidade.
Na nova estratégia do OEDT até 2025 há uma separação entre saúde/indivíduo e segurança/dispositivo policial. Porquê?
É uma distinção de método de trabalho. Existimos para contribuir nestas duas dimensões. O nosso trabalho é contribuir para uma Europa mais saudável, que é uma palavra que não existe na minha língua [o francês].
Temos três prioridades: aumentar o acesso dos consumidores a testes e tratamento de HIV e da hepatite C; reduzir a mortalidade associada ao uso das drogas (vamos publicar no próximo ano critérios de boas práticas mínimas para salas de chuto); e contribuir para uma melhor transferência das boas práticas para a prevenção.
Vão fazer um guia de boas práticas?
Não é um guia, porque este não é um tema mainstrem. Mas teremos 100 salas no final do ano na União Europeia. Não somos nós que dizemos se devem ser criadas salas de chuto ou não. A nossa responsabilidade é, com base na informação existente, dizer que há critérios mínimos que têm de ser respeitados, para que não tenham efeitos negativos. Por outro lado, contribuímos para a política de segurança interna da União Europeia com o nosso sistema de alerta sobre novas substâncias psicoactivas. Portanto, queremos contribuir para uma União Europeia mais saudável e mais segura.
A vaga migratória de refugiados tem sido utilizada para o tráfico de estupefacientes.
Não existe nenhuma evidência disso. O problema é a vulnerabilidade das pessoas que estão nos campos de refugiados. Mas sabemos que os grupos criminais organizados são multi porpose e que estão a traficar a troco de qualquer coisa. Observamos que há uma nova rota de cannabis, que sai de Marrocos em direcção à Líbia...
A caminho da Europa?
Não, não. É uma nova rota — uma parte até pode ir para Itália — que se está a dirigir a outras zonas do mundo. Dou-lhe um exemplo caricatural: quando um camião com armas vai para o sul da Argélia pode voltar com cannabis. A nossa estimativa do valor do mercado da droga no ano passado era de cerca de 24 biliões de euros por ano. No mínimo!
Esse é o mercado ilegal. Depois, há um mercado legal. A legalização da cannabis em alguns estados norte-americanos terá algum impacto nos mercados europeus?
Não se podem avaliar os impactos directos porque é muito cedo para o fazer. Há um facto negativo: é uma fonte de muito dinheiro, é uma fonte de impostos muito fáceis. É um desafio conseguir uma avaliação objectiva desse impacto, sabendo que há interesses económicos muito importantes.
Quando a Philip Morris se interessa pelo tema...
Sim.
... está tudo dito.
Não sei se já está tudo dito. Com Obama, havia uma tolerância. A lei federal não permite a abertura de uma conta bancária ou de um depósito com dinheiro proveniente do comércio de droga. Há muitas coisas imprevisíveis que podem acontecer nos EUA. A verdade é que o Canadá anunciou uma mudança de política, e o México também, no sentido da legalização da cannabis. Nos próximos cinco anos, se uma maioria de estados norte-americanos legalizar a cannabis, e se o Canadá e o México também o fizerem, significará que toda a América do Norte produzirá e venderá mais ou menos livremente cannabis. Não sei qual será a reacção dos estados europeus.
A Holanda foi uma referência em matéria de política de droga na Europa, o Colorado teve o mesmo efeito nos EUA...
Só que a Holanda manteve a proibição, mas há uma tolerância, e no Colorado a produção é autorizada.
O caso holandês não foi seguido por outros países europeus, que mantiveram uma atitude proibicionista, nos EUA o modelo do Colorado assente no negócio...
Não só, não só. Tem razão, mas não é só isso. Há outras diferenças: os referendos foram feitos em cada um dos estados; houve uma razão económica, mas também houve o argumento do usufruto da liberdade individual. A Holanda tem uma política de tolerância e não sei o que é que pode mudar agora com um novo Governo, que tem a intenção de facilitar o cultivo de cannabis. Pode ser que exista uma declaração governamental e que a realidade seja distinta. Mas não creio que haja uma mudança rápida das políticas.