A virgem, o marquês sádico e um crime à mesa
Os contos fantásticos que compõem The Bloody Chamber, da escritora britânica Angela Carter, foram transformados num jantar sangrento através de um projecto académico transdisciplinar que cruza literatura, gastronomia e design.
Iluminados por uma luz pálida, os bustos de pedra nos pedestais ao longo do corredor do Palácio Foz, em Lisboa, aguardam silenciosos, como fazem há séculos, a chegada dos convidados. A porta da magnífica Sala dos Espelhos está, por enquanto, fechada e quem chega é levado primeiro para o pátio que dá para o jardim interior.
Os últimos sinais do dia, já ténues, desaparecem suavemente. No jardim, os contornos das coisas tornam-se menos nítidos e, no meio da folhagem verde, agora escura, notamos duas únicas rosas solitárias. Angela Carter teria gostado do cenário.
Subitamente, alguém entrega uma carta lacrada e assinada precisamente por Angela Carter, escritora britânica, nascida em 1940 e morta em 1992, e cujos contos reunidos no livro The Bloody Chamber (1979) nos trazem esta noite até ao Palácio Foz. “Porque é que estamos a ler histórias através de uma experiência gastronómica?”, pergunta a carta. “Porque toda a ficção deve ser aberta.”
Estamos na segunda parte de Angela Carter: Apetites para além do alcance da imaginação, um jantar concebido pelos alunos do Mestrado em Inovação em Artes Culinárias (MIAC) da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril em colaboração com a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a Faculdade de Arquitectura de Lisboa e a Universidade da Beira Interior.
O jantar anterior, que constituiu a primeira parte do projecto, aconteceu em Maio e incluiu, entre outros pratos, a experiência de comer uma “cabidela desconstruída” em cima de uma lápide funerária da própria Angela Carter, completada com data de nascimento e morte.
O objectivo aqui é cruzar disciplinas — neste caso, a literatura com a cozinha — e este segundo jantar encerrou a conferência internacional Experiencing Food Designing Dialogues, sobre Food Design e Food Studies, que aconteceu entre 19 e 21 de Outubro em Lisboa.
Na carta, Angela Carter diz acreditar que os textos estão sempre abertos a novas leituras e declara-se “totalmente a favor de pôr vinho novo em garrafas antigas, sobretudo se a pressão do vinho novo fizer explodir as garrafas antigas”. Neste caso, as “garrafas antigas”, os seus contos, são já uma espécie de vinho novo — baseados em histórias tradicionais como o Barba Azul, a Branca de Neve ou o Capuchinho Vermelho, tornam-se pela escrita de Carter em versões mais subversivas, de um erotismo de contornos negros, a tocar o macabro.
Avançamos para a Sala dos Espelhos, atravessada por uma longa mesa com uma toalha vermelha. Sentada ao piano de cauda, Catherine Morisseau toca as primeiras notas da música que irá acompanhar a noite: Clair de Lune, de Debussy, Variações Goldberg, de Bach, mas sobretudo músicas dela, em breve editadas em disco.
Em cada lugar da mesa, um cofre de madeira fechado a cadeado com o perfil de uma mulher, em sombra chinesa, gravado na tampa. A chave que abre o cofre está escondida por baixo dos nossos pratos. No interior, vários cartões, um para cada prato que será servido.
Três alunos — Fábio Abreu, André Gerardo e Rui Mota (Filipe Leonor, que fez parte do projecto inicialmente não pôde estar presente) — preparam a refeição. “Estou a montar o fundo do mar”, explicara Fábio quando, um pouco antes, passámos pela cozinha.
Desejo, imaginação e sonho
Em cima de uma bancada alinhavam-se os pratos: uma base de sal tornado cinzento por uma mistura com sementes de sésamo, plantas que crescem junto ao mar, conchas e, no centro, uma ostra num molho de maçã e beterraba e uma “pérola” frita de carne de porco. A ostra no suco avermelhado é a interpretação culinária do primeiro, e maior, dos contos e aquele que dá o nome ao livro The Bloody Chamber.
Nessa história, resume o primeiro cartão, uma jovem e talentosa pianista casa-se com um marquês francês rico e mais velho que a leva para um castelo rodeado por água onde ela descobre que ele é um adepto de pornografia sádica. Depois da noite de núpcias, o marquês parte numa viagem e proíbe a jovem de entrar num dos quartos do castelo. Ela não resiste e aí “percebe a verdadeira dimensão das tendências perversas e assassinas" dele.
Só no prato seguinte — uma espinha de carapau sobre arroz tufado, com maionese de pimentos, tomate e ervas, uma forma de trazer ao jantar produtos da cozinha portuguesa, que foi uma das preocupações de Fábio, André e Rui — vamos entender o que isso significa: no quarto proibido estão os corpos das três anteriores mulheres do marquês, todas assassinadas por ele.
Quando o marido regressa e percebe que ela lhe desobedeceu, tenta decapitá-la (e o carapau só tem a ponta da cauda e a cabeça), mas a mãe da jovem aparece e mata a tiro o marquês. À mesa do jantar há quem se interrogue sobre se a cabeça crocante do peixe é mesmo para comer e que, mais descontraído, se faça fotografar com ela entre os dentes. Algo do espírito subversivo de Carter parece já dominar o ambiente.
A sopa rica de peixe traz carabineiro, salmonete, percebes, peixe e marisco “ricos” cuidadosamente dispostos no centro do prato, mas, quando o caldo é servido, toda a composição se desfaz perante os nossos olhos. “If you are so careless of your treasures” é a frase de Carter que inspirou o prato, uma evocação do conto The Tiger’s Bride, ou a Bela e o Monstro, no qual uma jovem vai viver com um misterioso Milord depois de o pai, “descuidado com os seus tesouros”, a ter perdido num jogo de cartas.
Alice-Wolf e o seu lobisomem, um conto sobre a descoberta da nossa verdadeira natureza — “the voices of my brothers, darling; I love the company of wolves”, lemos no cartão — traz-nos um prato que nos obriga a pegar com as mãos num osso e a arrancar com os dentes a carne que ele traz agarrada. A terra comestível encanta alguns dos presentes, que já usam os dedos para apanhar os pedaços que os garfos deixam escapar.
Chegamos às sobremesas com The Snow Child, a história de um conde que deseja uma criança “branca como a neve”. O merengue de hortelã com carqueja no nosso prato é também branco como a neve, tal como as pétalas de rosa que o rodeiam — uma rosa como aquela em que a criança desejada se pica, o que leva à sua morte. Usamos a pipeta com sumo vermelho para deixar cair gotas sobre o merengue e as pétalas e lemos como o corpo da criança se derreteu na neve, deixando apenas uma mancha de sangue.
Antes da “recompensa”, o bolo que virá, o cartão avisa-nos de que temos de “comer a carne” — e esta surge sob a forma de um carpaccio de melancia, feito, explicam-nos os alunos, com uma técnica usada no restaurante espanhol Mugaritz, em que a fruta é desidratada durante dez horas e depois congelada e descongelada três vezes.
O aspecto final é o de um carpaccio de carne sobre o qual foi ralado queijo da ilha e granola de frutos secos.
A “recompensa” é um bolo de azeite com espuma de gin tónico do Alentejo, laranja, creme de ovos de Aveiro e pólen. Ambas as sobremesas são inspiradas no conto The Earl-King, figura que representa a floresta e que tenta aprisionar uma rapariga. Esta conquista a liberdade estrangulando o Earl-King e evitando assim transformar-se num pássaro.
As pequenas cavacas que chegam à mesa com o café são uma referência à passagem de Angela Carter por Portugal. Foi em 1977 que a escritora veio para participar num festival de arte contemporânea nas Caldas da Rainha que a deixou estupefacta, e divertida, com, entre outras coisas, evidentemente exóticas aos seus olhos, a cerâmica das Caldas e o toque de surrealismo que encontrou no facto de a mesma loja vender objectos religiosos ao lado de bonecos a ter relações sexuais.
“Estava”, escreve num dos dois textos jornalísticos sobre essa experiência em Portugal (ambos publicados no livro Shaking a Leg: Collecting Journalism and Writtings), “curiosa e excitada para perceber o que se passava num país em que o vírus da arte moderna tem estado isolado em zonas de quarentena em Lisboa e no Porto ou enviado para Paris com uma bolsa”.
Toda a aventura acaba com responsáveis do Partido Comunista local — estávamos em 1977, convém não esquecer — a acusar os artistas de fazer “uma série de disparates burgueses” e a convidá-los a pedir desculpa pela ocupação de um jardim. E Angela Carter resume assim o desencontro que viveu durante aqueles 12 dias nas Caldas: “Desejo, imaginação e sonho — os domínios da arte — devem ser distribuídos com parcimónia num país onde a mera possibilidade destas coisas pode parecer estar a troçar da realidade dos seus habitantes.”
“We must learn to cope with the world before we can interpret it”, diz-nos o último cartão do nosso jantar. O bombom final deixa-nos os lábios pintados de vermelho — e há quem se entusiasme e pinte olhos e cara, deixando a tinta escorrer pelo queixo como se tivesse acabado de cravar os dentes afiados num tenro pescoço.
Apesar dos esforços para manter o decoro, o jantar tornou-se sangrento. E os guardanapos brancos manchados de vermelho abandonados em cima da mesa são a prova de que todos participámos, voluntariamente, no crime.
Todos os sentidos à volta do texto
A ideia de cruzar literatura e gastronomia nasce da colaboração entre o Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa e o MIAC (a Universidade da Beira Interior entra no projecto com a criação de aplicações digitais inspiradas também pelos contos de Carter e a Faculdade de Arquitectura com a criação de mobiliário).
Antes de Angela Carter, explica a professora Maria José Pires (que é, com Ricardo Bonacho, Cláudia Viegas, João Paulo Martins e Sara Estêvão, uma das organizadoras), houve já outros trabalhos, com William Blake, com Shakespeare e, em breve, com Jane Austen, todos integrados no projecto Receiving/Perceiving English Literature in the Digital Age.
“O que queremos é mostrar como esses textos podem ser recepcionados por diferentes áreas”, diz Maria José Pires. “A ideia de que as humanidades estão de um lado e as ciências duras do outro cada vez se esbate mais.”
No caso de Blake, com o apoio da professora Alcinda de Sousa, os alunos trabalharam a ideia dos contrastes, dos opostos. “Aí a cozinha pode oferecer muito nas texturas, nas cores, nas temperaturas. Num trabalho como este, todos os sentidos estão a ler o texto, não só a visão mas o olfacto, o paladar, a audição.”
Os alunos de Design, da Faculdade de Arquitectura, participam criando mobiliário. “Com que materiais é que se vê o texto? Há transparências? Cores? É confortável ou não? Pode, por exemplo, haver uma gaveta que se abre e tem dentro uma lixa. Para nós, é um desafio dar a conhecer um texto com as diferentes leituras que ele pode ter.” Os alunos da Universidade da Beira Interior criaram, por seu lado, uma aplicação para os donos de gatos poderem deixar os animais com alguém quando vão de férias, inspirados por um dos contos de Angela Carter.
No caso de Shakespeare, sob o tema Play Out the Play, foi escolhida apenas uma personagem: Sir John Falstaff. “Sir John era um amigo do rei, um bon vivant que passava muito tempo nas tabernas, um homem cheio, redondo”, descreve a professora. O desafio foi transformá-lo em algo comestível, transportando a personalidade de Falstaff para um snack.
Aí, os alunos partiram da teoria dos humores, a base do conhecimento sobre as doenças e a saúde durante séculos e que distingue quatro tipos fisiológicos — o sanguíneo, o fleumático, o colérico e o melancólico — e que relacionava determinados alimentos com traços de personalidade que poderiam ser reforçados ou acalmados pela ingestão dessas comidas. O resultado foi uma espécie de pequena empada, agridoce, que equilibrava o humor dominante de Falstaff sem lhe retirar os traços característicos.
Agora, terminada Angela Carter, a equipa está já a pensar no próximo projecto, previsto para o início de 2018: A little tea if you please — A Midafternoon chat with Jane Austen. “Cada autor é tratado de uma maneira diferente. No caso de Jane Austen, será um lanche.” No entanto, avisa Maria José Pires, “não será chazinhos e bolinhos”. Será muito mais do que isso — embora certamente não tão sangrento como o jantar inspirado por Angela Carter.
O artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO