Godard, a televisão e o dinheiro

A um dia do fim, o Doclisboa exibe um dos títulos mais raros do repertório do cineasta: Grandeur et Décadence d’un Petit Commerce de Cinéma.

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Enquanto se espera o novo opus de Jean-Luc Godard, anunciado para 2018 com o título Le Livre d’Images, o Doclisboa permite este sábado a (re)descoberta de um dos títulos mais raros do repertório do cineasta: Grandeur et Décadence d’un Petit Commerce de Cinéma (ou seja, em tradução livre, “Grandeza e Decadência de um Pequeno Negócio de Cinema”). Foi feito em 1986, por encomenda da televisão francesa (a TF1, mais exactamente), para integrar uma série de telefilmes (a Série Noire) que tinha por base a releitura de clássicos da ficção policial – e, quanto mais não seja nominalmente, Grandeur et Décadence é uma “adaptação” de um romance de James Hadley Chase (embora presumivelmente reste no filme tão pouco do livro como no Pedro, o Louco restava do romance de Lionel White que esse título formalmente “adaptava”).

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Enquanto se espera o novo opus de Jean-Luc Godard, anunciado para 2018 com o título Le Livre d’Images, o Doclisboa permite este sábado a (re)descoberta de um dos títulos mais raros do repertório do cineasta: Grandeur et Décadence d’un Petit Commerce de Cinéma (ou seja, em tradução livre, “Grandeza e Decadência de um Pequeno Negócio de Cinema”). Foi feito em 1986, por encomenda da televisão francesa (a TF1, mais exactamente), para integrar uma série de telefilmes (a Série Noire) que tinha por base a releitura de clássicos da ficção policial – e, quanto mais não seja nominalmente, Grandeur et Décadence é uma “adaptação” de um romance de James Hadley Chase (embora presumivelmente reste no filme tão pouco do livro como no Pedro, o Louco restava do romance de Lionel White que esse título formalmente “adaptava”).

Exibido então na televisão, nunca foi distribuído em sala, e viveu estas décadas em cópias mais ou menos clandestinas, com base em VHS da época. A Cinemateca nunca o exibiu em nenhuma das várias retrospectivas Godard que já fez, e salvo alguma falha arquivística, a única exibição do filme em Portugal ocorreu no Lisbon & Estoril Film Festival do ano passado, embora não numa cópia com a qualidade da que vai ser exibida hoje, resultante de um restauro mostrado no último Festival de Locarno que precedeu o (re)lançamento do filme em sala, 31 anos depois da sua exibição nos pequenos ecrãs franceses.

Os pequenos ecrãs: Godard, evidentemente, não deixa passar em branco o facto de se tratar de um telefilme e de uma encomenda televisiva. Esses aspectos são incorporados no filme, com referências repetidas à “omnipotência da televisão“ (Godard não o diz aqui, mas diria, por esta altura, ipsis verbis, que a televisão era “o inimigo”), múltiplos planos dos minúsculos visores das câmaras vídeo (como se, quod erat demonstrandum, a televisão “reduzisse” o cinema), e inusitadas “interferências” e “interrupções” típicas da televisão pré-cabo (por mais do que uma vez o ecrã é tomado pela “mira técnica”, ou a imagem desaparece para ficar apenas um fundo negro com a legenda “acidente técnico”).

Com aquela típica abundância de elementos significantes que neste período Godard exacerbava (sons, fragmentos musicais, cartazes de filmes, fotos, citações, nomes que reenviam para os mais variados capítulos da história do cinema – os protagonistas chamam-se Bazin, Almereyda, há uma Gina Lang…), Grandeur et Décadence... reflecte, sempre entre a luminosidade e a obscuridade, sobre o cinema na época da televisão, na época do vídeo, de uma forma que faz deste filme mais um dos possíveis preâmbulos às monumentais Histoire(s) du Cinéma em que o cineasta já pensava e que começariam a ver a luz no final da década. Mas o  mais importante é, porventura, a maneira como o filme reflecte a sua condição de encomenda, praticamente se assumindo como uma espécie de seu próprio making of – é um filme sobre um grupo de pessoas, nomeadamente um realizador (Jean-Pierre Léaud) e um produtor (Jean-Pierre Mocky) que tentam pôr um filme de pé. A “produção”, portanto, no seu duplo sentido criativo (o trabalho artístico, mais ou menos “romântico”) e económico (o dinheiro, tema presente no filme de uma ponta a outra, incluindo, num gag de interlúdio, uma espécie de videoclip para Mercedes Benz, a canção de Janis Joplin que fala de dinheiro, Mercedes e Porsches, e televisões a cores).

O próprio Godard aparece, enquanto Godard ele próprio. O produtor lamenta-se que “o Polanski recebeu dois milhões e meio para fazer um filme”, e Godard retorque: "De que é que te queixas? Com esse dinheiro fazes tu dez filmes."