Aventuras sem telemóveis – a força do terror e a nostalgia 80s de Stranger Things 2
Sem spoilers: A série-surpresa do Verão passado regressa esta sexta-feira, cheia de vontade de viver em 1984 e engrossando a febre em torno do horror no cinema e na TV. A imitação é o melhor elogio?
Já se ouve a música do genérico, como se a cassete tivesse acabado de rolar e de encaixar no videogravador. Stranger Things, a surpresa do Verão passado, regressa esta sexta-feira à plataforma do presente, o Netflix, para o seu segundo acto. O passado é a sua morada, a pilhagem a sua profissão. Stranger Things 2 vem continuar duas tendências da cultura popular na sua mistura de nostalgia, a língua franca de várias gerações, e de sci-fi e terror – uma mistura que já tem em 2017 o seu ano mais rentável de sempre no cinema. Ou será que o que está em causa é, sobretudo, o sonho de aventuras sem telemóveis?
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Já se ouve a música do genérico, como se a cassete tivesse acabado de rolar e de encaixar no videogravador. Stranger Things, a surpresa do Verão passado, regressa esta sexta-feira à plataforma do presente, o Netflix, para o seu segundo acto. O passado é a sua morada, a pilhagem a sua profissão. Stranger Things 2 vem continuar duas tendências da cultura popular na sua mistura de nostalgia, a língua franca de várias gerações, e de sci-fi e terror – uma mistura que já tem em 2017 o seu ano mais rentável de sempre no cinema. Ou será que o que está em causa é, sobretudo, o sonho de aventuras sem telemóveis?
A série dos gémeos Duffer, nascidos no ano orwelliano de 1984, é um ficheiro pouco secreto de popularidade desde a sua estreia em Julho de 2016. O Netflix não fornece dados de audiências mas alguns estudos indicam que é um dos seus títulos mais populares. Eleven, Will, Mike, Dustin e Lucas são os Goonies de 2017, e os actores Winona Ryder e Matthew Modine foram os seus talismãs 80s. Para Stranger Things 2, os criadores chamaram Sean Astin e Paul Reiser e fizeram a acção avançar um ano, de Outubro de 1983 para 1984. E mais não se diz sobre os nove episódios que agora se estreiam.
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Se em 2016 “o Netflix até tinha medo de pôr o monstro no marketing”, para não "desmotivar as pessoas”, como disse ao Guardian Ross Duffer, desta vez está a promover a série sem receios. Até a movimentada estação de metro de Oxford Circus foi decorada como o submundo monstruoso de Stranger Things, o Upside Down, onde vive o Demogorgon (um baptismo à moda do jogo Dungeons & Dragons, claro).
Em 2016, a série foi um sucesso amplamente dissecado, sobretudo pela sua colagem assumida de histórias, filmes e imagens de Stephen King, Steven Spielberg e Sam Raimi, do terror de Wes Craven e de John Carpenter até ao de A Testemunha de Peter Weir. Além da versão Winona Ryder do Richard Dreyfus de Encontros Imediatos do Terceiro Grau, os heróis são os miúdos. Procuram Will, o amigo desaparecido, liderados por Mike, interpretado por Finn Wolfhard, o mesmo que recentemente integrou outra brigada juvenil no filme de terror mais rentável de sempre nos EUA, o recente It, adaptado de Stephen King, que já rendeu 1,1 milhão de euros em Portugal. O género teve, de resto, o seu melhor ano de sempre, com receitas de 630 milhões de euros só nos Estados Unidos.
A era da homenagem
“O que Spielberg fez nos anos 1980 foi pegar nestas ideias de filme série B, como discos voadores e tubarões, e elevá-las", disse Ross Duffer ao Guardian. Eles quiseram tentar o mesmo. Já nos anos 1990 eram devoradores desse cinema. Obcecaram-se com realizadores e viram vezes sem conta cassetes no videogravador. Queriam fazer cinema, lá conseguiram escrever para Wayward Pines na TV. "Começámos a ver a TV a tornar-se cada vez mais cinemática, com coisas como True Detective”, explica Ross, “e A Guerra dos Tronos abriu a ‘TV de género’ e mostrou que não tem de ser pirosa”, também porque tem mais dinheiro e pode finalmente ser mais cool.
Entretanto, a geração que nasceu anos antes já tinha chegado à posição de poder propor produtos como estes, saudosos da sua década de formação. “É a era da homenagem e a satisfatória Stranger Things é o protótipo”, diz Hank Steuver na sua crítica (elogiosa) de Stranger Things 2 no Washington Post. E eis que há Os Goldberg, The Americans, Halt and Catch Fire, Deuschland 83 ou MacGyver na televisão, com Portugal a juntar-se em breve à moda com o 1986 de Nuno Markl, e eis que regressaram Blade Runner, Alien, Star Wars, Mad Max ou It ao cinema, também graças ao facilitismo hollywoodesco da reincidência nos títulos que o público já conhece. Twin Peaks: The Return é também isso, mas se lhe juntarmos Stranger Things, Penny Dreadful, American Horror Story, The Walking Dead, The Strain ou o filme Foge descobre-se outro monstro debaixo da cama.
“Há arte e beleza e poder nas imagens primitivas da fantasia”, diz Guillermo Del Toro, autor de terror e do fantástico. “Poucos outros géneros corporizam de forma tão potente os medos do público, ou nos dão a satisfação de vermos vencidos os nossos demónios, trumpianos ou outros, pelo menos de forma simbólica”, defende o crítico de cinema Justin Chang no Los Angeles Times, diário que postula agora que “o terror nunca foi mais robusto nas suas ideias – e na sua popularidade” – do que hoje. Sobre o vilão de It, esse palhaço que se alimenta dos nossos medos, o próprio Stephen King disse em Janeiro: “Acabámos de eleger Pennywise como Presidente."
Num mundo pós-VHS
Foi também nos anos 1980 que o terror se misturou mais com a ficção científica, ainda que continuando a explorar os clássicos do género e a respeitar os seus ritmos. O presente também mantém algumas melodias do passado – foi nesta década que o FMI voltou a Portugal, como em 1983, ano em que Santana Lopes e Marcelo Rebelo de Sousa eram rostos da social-democracia em Portugal; em 1984, a tabela classificativa do campeonato de futebol português era a mesma que (para já) a de 2017: FC Porto a liderar, seguido pelo Sporting e depois pelo Benfica; as tensões entre os EUA e a Rússia voltaram às notícias, tal como dominaram os anos 1980.
Entre esses dois momentos houve outros nostálgicos profissionais a operar, como J.J. Abrams ou Quentin Tarantino, e pelo menos duas gerações se misturaram. “Pensávamos que ia chamar pessoas como nós, que cresceram com este tipo de histórias”, admitiu Ross Duffer. Mas os ecos da cultura popular da Geração X foram também ouvidos por aqueles que fizeram de Stranger Things um fenómeno particularmente caro ao Netflix – o das redes sociais, dos memes, dos tributos e das máscaras do Dia das Bruxas –, propagados incessantemente graças aos meios da geração Y, os millennials. O genérico e o casting da primeira temporada ganharam Emmys e o elenco ganhou o prémio da Guilda dos Actores – o único prémio de melhor série foi o primeiro MTV Movie & TV Award atribuído a um programa de TV.
Mas quão perigosa é essa nostalgia, problematizava no ano passado o investigador Mark Steven, da Universidade de New South Wales? Steven evoca o aviso do crítico cultural britânico Mark Fisher: estarmos presos a esse passado representa “o lento cancelamento do futuro”. Mas o investigador australiano defende que a série, em toda a sua obsessão formal com menções a mestres e a sua imagem falsamente vintage (“Acrescentámos grão de película que foi digitalizado de película dos anos 1980”, contou orgulhosamente Matt Duffer à revista New York), também promove um valor, uma mundividência afectiva – “o comunismo primitivo da amizade de infância”.
Uma infância mais livre, mais inocente, mais perigosamente aventureira numa cidade pequena como nos filmes. E mais simples, com menos obstáculos a uma intriga de mistério e de suspense como o telemóvel ou o Google. No actual mundo das ideias, “a cultura popular decidiu que roubar é a melhor forma de elogio que existe”, constata Hank Steuver. Os irmãos Duffer, que insistem que Stranger Things 2 é como um filme, uma sequela, porque continuam a sonhar com o cinema – nem que seja caseiro –, “são claramente melancólicos quanto a um tipo de vida que já não existe”. Dias depois da estreia em 2016, o último fabricante de cassetes VHS fechou as portas.