Aki Kaurismäki: “Já não tenho muita paciência para filmar”
Diz que O Outro Lado da Esperança, história de amizade entre um finlandês e um refugiado sírio, vai ser o seu último filme. Conversa com alguém que se define como preguiçoso, poeta, idiota e ecologista.
Fazer perguntas a Aki Kaurismäki – numa entrevista ou numa conferência de imprensa – é uma experiência. Não é que o homem não tenha coisas a dizer, que as tem (e que as sabe dizer). Um jornalista israelita fala do lado abertamente nostálgico que o seu cinema tem, a sensação de que estamos num filme fora de tempo inspirado nos clássicos dos anos 1930, e o finlandês responde: “O meu nome do meio podia perfeitamente ser Nostalgia. Aki Nostalgia Kaurismäki. Aliás, é esse o meu nome do meio. Está no passaporte e tudo.” (Não é nada, o nome do meio é Olavi.) O jornalista insiste: essa nostalgia nunca é gratuita, tem sempre uma razão... “Eu nunca analiso nada. Se um pelotão de fuzilamento me viesse buscar às seis da manhã eu batia-lhes a continência, porque estou sempre interessado em tudo, até mesmo na bala.” Há um sorriso pelo meio, como quem pisca um olho, como quem diz que é tudo mentira ou que é tudo verdade.
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Fazer perguntas a Aki Kaurismäki – numa entrevista ou numa conferência de imprensa – é uma experiência. Não é que o homem não tenha coisas a dizer, que as tem (e que as sabe dizer). Um jornalista israelita fala do lado abertamente nostálgico que o seu cinema tem, a sensação de que estamos num filme fora de tempo inspirado nos clássicos dos anos 1930, e o finlandês responde: “O meu nome do meio podia perfeitamente ser Nostalgia. Aki Nostalgia Kaurismäki. Aliás, é esse o meu nome do meio. Está no passaporte e tudo.” (Não é nada, o nome do meio é Olavi.) O jornalista insiste: essa nostalgia nunca é gratuita, tem sempre uma razão... “Eu nunca analiso nada. Se um pelotão de fuzilamento me viesse buscar às seis da manhã eu batia-lhes a continência, porque estou sempre interessado em tudo, até mesmo na bala.” Há um sorriso pelo meio, como quem pisca um olho, como quem diz que é tudo mentira ou que é tudo verdade.
Será tudo um jogo, ou será que pelo meio do humor seco, da comédia stand-up em versão desacelerada a que Aki Kaurismäki (n. 1957) nos habituou ao longo dos anos se revela mais do que o cineasta aparentemente diz? Durante os 30 minutos de uma entrevista colectiva em que o Ípsilon esteve presente em Fevereiro, no Festival de Berlim, o autor de Le Havre, Sombras no Crepúsculo, O Homem sem Passado ou Contratei um Assassino diz que O Outro Lado da Esperança, que acabava de ser recebido triunfalmente no certame alemão (e ganharia poucos dias depois o Urso de Ouro de Melhor Realizador), será o seu último filme. “Não vou voltar a filmar mais. Vou parar agora.”
Mas este não era, supostamente, o segundo filme de uma “trilogia dos portos” transformada em “trilogia dos refugiados”, iniciada em 2011 com Le Havre (onde André Wilms ajudava um refugiado africano naquela cidade portuária francesa)? (A trilogia, há que dizê-lo, é uma desculpa regular assumida pelo realizador – na conferência de imprensa com que apresentou o filme, disse-se “tão preguiçoso” que a trilogia é uma maneira de se forçar a fazer um filme “para fazer qualquer coisa em vez de ficar em casa a cortar madeira”.)
Por este andar, não haverá um terceiro filme, como Kaurismäki dirá após uma longa pausa. “Já cumpri o meu papel,” diz finalmente, “e já não tenho mais nada a dizer. Já produzi 50 filmes, realizei 20… Se fizesse mais alguma coisa seria uma coisa de câmara, à Bergman, com gente sentada no sofá.” (E Kaurismäki possui a câmara com que Bergman filmou muitas das suas obras.) “Não faço ideia. Acho que já não tenho muita paciência para filmar.”
Há uma questão prática: Kaurismäki filma em película. O Outro Lado da Esperança foi rodado em 35mm – e foi, aliás, o único filme exibido no festival de Berlim em projecção 35mm – porque a película “está viva, tem vida”, e se “não puder filmar mais em película, não filmo mais.” Mais à frente, dirá que a culpa deste filme existir é do amigo e cúmplice e companheiro de aventuras Jim Jarmusch, a quem chama de “Mr. Slow”, “porque ele é sempre mais lento do que eu a filmar, ele vai em 13 filmes e eu em 19”: “Há coisa de um ano, talvez mais, ele disse que ia deixar de filmar, e eu disse-lhe «se tu parares de filmar eu também páro, porque deixo de ter razão para continuar». E depois soube que ele estava a fazer dois filmes [Gimme Danger e Paterson]. E eu disse 'Merda, agora tenho que fazer pelo menos mais um'.”
Verdade ou mentira, ou verdade e mentira? O sentido de humor e a seriedade são equivalentes no peculiar universo de Kaurismäki, que gosta de falar de coisas muito sérias com muita graça e de coisas muito engraçadas com muita seriedade. E a conversa está sempre a resvalar para outros temas. Para o futebol, por exemplo – às tantas fala-se do jogo com que Portugal ganhou o Euro 2016, que Kaurismäki, que vive desde há 25 anos metade do ano em Viana do Castelo, viu na Finlândia. “É impossível fazer um filme sobre o futebol,” diz, “porque o desporto é algo de muito complicado. Veja o ténis: uma coisa é ver ténis na televisão, porque há suspense em directo, mas tente lá fazer um filme de ficção sobre o ténis! Os ianques bem tentam, mas nunca conseguem. O único filme bom que se fez sobre futebol na história da cinema chama-se Two Half-Times in Hell [Zoltan Fabri, 1962], é um filme húngaro sobre um jogo de futebol num campo de concentração, entre os prisioneiros e os guardas.”
Mais à frente, fala-se da herança do cinema clássico que o cinema de Kaurismäki assume abertamente: na conferência de imprensa, o finlandês evocara A Grande Ilusão (1937) de Jean Renoir como “a tentativa de Renoir de parar a Segunda Guerra Mundial”, durante a conversa evoca os comediantes Laurel & Hardy – Bucha & Estica – falando de Os Filhos do Deserto (1933) e Marinheiros à Força (1940) como filmes que partilham temas “portuários” com a suposta “trilogia dos portos”. “Os barcos sempre me fascinaram, e os portos eram muito mais simpáticos do que os aeroportos são hoje em dia”, diz.
A referência a Laurel & Hardy não é, claro, casual: é precisamente esse humor burlesco, seco que Kaurismäki mantém vivo na sua conversa e no seu cinema. Exemplos possíveis ao longo de 30 minutos com um jornalista português, um israelita e um polaco, num dos salões do Savoy, pequeno hotel de bairro com um ar de Berlim pré-muro. (É o hotel onde Kaurismäki fica sempre em Berlim, pela conveniência de estar situado mesmo em frente ao cinema Delphi, “centro nevrálgico” da secção paralela Forum, onde o realizador já foi seleccionado por nove vezes – O Outro Lado da Esperança foi o seu primeiro título na competição oficial da Berlinale.)
Pergunta: “Porque é que fez questão que o filme fosse exibido em 35mm?”
Resposta: “Porque não tive dinheiro para o fazer em 70mm.”
Pergunta: “Porque é que filma tanto em restaurantes?”
Resposta: “Talvez porque passei a minha vida adulta em bares e tascas.”
Pergunta: “Uma vez disse que metade dos seus filmes eram feitos consigo bêbado e metade consigo sóbrio.”
Resposta: “É verdade e é muito esquisito. Fiz os filmes mais inteligentes completamente bêbado e os mais sensatos completamente sóbrio. Não sei explicar. Mas posso realizar em qualquer condição.”
Pergunta: “O seu sentido de humor é muito particular.”
Resposta: “É o único que tenho e nasci com ele.”
Pergunta: “Se este filme fosse nomeado para o Óscar aceitava?”
Resposta: “A questão nem sequer se põe, este filme nunca será proposto aos Óscares.” (Kaurismäki boicotou a cerimónia quando O Homem sem Passado foi nomeado para Melhor Filme Estrangeiro em 2003, solicitou que Luzes no Crepúsculo fosse retirado como nomeado finlandês aos Óscares e, entretanto, solicitou também que O Outro Lado da Esperança não fosse incluído na pré-selecção ao prémio da Academia de Hollywood.)
Não é defeito, como se costuma dizer, é feitio: é um diálogo entre o humor e a seriedade como duas faces de uma mesma moeda, e que O Outro Lado da Esperança reflecte na perfeição. Kaurismäki faz colidir a história de um refugiado sírio (o não-profissional Sherwan Haji) que entra em Helsínquia clandestino num cargueiro e pede asilo com a de um vendedor de camisas (o velho cúmplice Sakari Kuosmanen) que se reforma e decide comprar um bar-restaurante chamado A Caneca Dourada. “Uma decisão muito sábia”, diz uma das suas clientes, “porque quando os tempos vão mal os clientes bebem muito e quando vão bem ainda bebem mais”. A história do sírio Khaled é um melodrama com muito de sério, mesmo que contado com muita leveza; a história do finlandês Wikström é uma comédia muito burlesca, mesmo que contada muito a sério. Mesmo no fundo do poço (ou no fundo da caneca), Khaled e Wikström não desistem.
É um filme sobre a esperança, perguntamos? “O título pode significar seis coisas diferentes,” explica Kaurismäki, com um copo de vinho branco à frente. “Pode querer dizer, 'OK, estamos salvos, passámos para o outro lado” ou “Olha, deste lado da esperança as coisas não são o que esperávamos'. Não sou um pessimista quanto à humanidade – embora numa conversa telefónica com o Jim Jarmusch há um par de anos tenha ficado na dúvida sobre qual de nós era mais pessimista – mas acho que a nossa curiosidade vai matar-nos. Eisenhower disse para nunca darmos o poder à coligação dos militares, da tecnologia e do capital. E foi precisamente isso que aconteceu.” É então um filme sobre o futuro? “O futuro é uma chatice.”
Mesmo que Kaurismäki não pronuncie nunca a palavra, O Outro Lado da Esperança é evidentemente um filme político. Na conferência de imprensa, tinha dito: "Não temos, no último século, tomado conta da nossa cultura humanista. Temos um tipo de organização democrática que se vai desfazer em dez anos porque não somos boas pessoas. A nossa cultura resume-se a um mílimetro de poeira sobre os nossos ombros. Há 50 anos tínhamos 60 milhões de refugiados na Europa; então ajudámo-los, hoje vemo-nos como inimigos. Se não formos capazes de ver isso e sermos humanos, então não devíamos sequer existir, não merecemos existir." E depois fez questão de dizer: “Isto não é uma declaração política”.
No hotel Savoy, Kaurismäki desenvolve – mas só um pouco. “Tive de fazer um filme sobre os refugiados porque a situação na Finlândia era o que era”, diz, referindo-se à intolerância que os seus compatriotas tiveram para com os 10 mil refugiados aceites pelo país. “É a minha pequena contribuição para tentar influenciar as pessoas a não serem cruéis. Não me lembro já quem o disse, mas sei que alguém disse uma vez que, o que quer que seja que queiramos dizer, temos de o dizer bem alto e bem nítido. É melhor para toda a gente.” Recorda os seus tempos de juventude: “Lembro-me que, em 1975, quando eu tinha 18 anos, disse aos meus amigos «se não formos para a política vamos acabar todos na merda». E não fomos. E agora estamos mesmo na merda. Acho que 80% dos países têm hoje em dia literalmente um idiota no poder. Mas não sei se o conceito de humanidade ainda quer dizer qualquer coisa. Não estou preocupado com a humanidade mas sim com o planeta: um de nós tem de desaparecer e, infelizmente, como não somos civilizados, como somos tão gananciosos, é melhor se formos nós a desaparecer e o planeta a ficar.”
Aki Kaurismäki ecológico? “Posso viver sem o cinema, mas não posso viver sem árvores. Não consigo viver sem um beija-flor numa árvore. Enquanto houver um pássaro continua a haver esperança.” Ah, é por isso que os seus filmes estão sempre à procura de poesia no quotidiano, remata o israelita. “Claro que sim, sempre, caso contrário eu seria um idiota. Que provavelmente até sou.”
Aki Kaurismäki sorri.