#metoo

Não me lembro de nenhum episódio que possa contar. Só me lembro de ter aprendido a fingir que não percebia, que não via, que não ouvia, a fingir que não acontecera. Deve ser por isso que não me lembro de mais nada e não tenho nada para contar. Deve ser por isso

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Drew Hays/Unsplash

Quando começou a circular esta hashtag pensei, gostava de escrever qualquer coisa sobre isto mas não tenho nada para escrever, devo ter sido a única mulher do mundo que nunca foi assediada. Não me lembro de nenhum episódio que possa contar.

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Quando começou a circular esta hashtag pensei, gostava de escrever qualquer coisa sobre isto mas não tenho nada para escrever, devo ter sido a única mulher do mundo que nunca foi assediada. Não me lembro de nenhum episódio que possa contar.

Nem um, nada. Nada de importante para assinalar, porque só me lembro de ter aprendido a desviar os olhos na altura certa, a tapar-me, a compor-me, a não rir muito, muito menos a rir alto, a não dar conversa e a mudar de assunto, a desconversar, a endurecer a voz, a sair da sala no momento certo, a procurar outra com mais gente, a não andar sozinha de noite, nem em sítios vazios de dia, a fingir que telefonava a alguém e às vezes a telefonar mesmo, a achar normal ter medo, a vestir-me de forma a não repararem em mim, a medir o tamanho dos saltos e das saias, a sentar-me de pernas juntas, a limpar o batôn com as costas da mão para não dar nas vistas, a ser muito séria para me levarem a sério, a atravessar a rua quando ouvia uma boca ordinária, a baixar os olhos como se a culpa fosse minha, a decorar a matrícula do táxi, a desviar-me do bafo do gajo no autocarro, a empurrar o que me apalpou, a desculpar o gajo bêbado que tentou naquela noite e aquele que ainda estava sóbrio mais o outro que tentou trancar a porta sem que eu percebesse.

Só me lembro de ter aprendido a fingir que não percebia, que não via, que não ouvia, a fingir que não acontecera. Deve ser por isso que não me lembro de mais nada e não tenho nada para contar. Deve ser por isso.