“Lenine tomou o poder à maneira russa, e criou uma autocracia brutal”
Victor Sebestyen quis ir às motivações de um homem e não alimentar o mito. Uma história improvável que mudou o mundo com um protagonista ainda mais improvável. A Revolução de Outubro e Lenine contados em Lenine, o Ditador — Um Retrato Íntimo.
Lenine, o Ditador — Um Retrato Íntimo está pousado em cima da mesa. Victor Sebestyen pega no livro e antes de avançar com a conversa fixa-se no retrato da capa. O rosto de Lenine a sépia, a olhar directamente para uma eventual câmara, sem um sorriso, lábios fechados e nenhuma tensão aparente. Não há uma palavra sobre esse rosto. Nem título, nem nome do autor, o próprio Victor Sebestyen, jornalista, historiador, um estudioso do período da Guerra Fria que escreveu a mais recente biografia de Lenine. O livro revela uma faceta mais pessoal de Ivan Ilitch, um “Lenine apaixonado”, como escreve no prefácio da edição que a Objectiva acaba de publicar em Portugal e o trouxe ao Folio (o festival literário de Óbidos), quando se completam cem anos da Revolução Russa. É, assim, a primeira pergunta, porque ele quer mesmo falar desse assunto.
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Lenine, o Ditador — Um Retrato Íntimo está pousado em cima da mesa. Victor Sebestyen pega no livro e antes de avançar com a conversa fixa-se no retrato da capa. O rosto de Lenine a sépia, a olhar directamente para uma eventual câmara, sem um sorriso, lábios fechados e nenhuma tensão aparente. Não há uma palavra sobre esse rosto. Nem título, nem nome do autor, o próprio Victor Sebestyen, jornalista, historiador, um estudioso do período da Guerra Fria que escreveu a mais recente biografia de Lenine. O livro revela uma faceta mais pessoal de Ivan Ilitch, um “Lenine apaixonado”, como escreve no prefácio da edição que a Objectiva acaba de publicar em Portugal e o trouxe ao Folio (o festival literário de Óbidos), quando se completam cem anos da Revolução Russa. É, assim, a primeira pergunta, porque ele quer mesmo falar desse assunto.
O que acha da capa? Falta-lhe título...
(risos) É verdade, mas não é isso. Primeiro, não gostei. É a mesma da edição inglesa; só a cor é ligeiramente diferente, mas a fotografia é a mesma. Achei-a demasiado revolucionária, muito diferente do conteúdo. E depois não tem o meu nome. (risos) Mas fui mudando de ideias; diz muito dele.
O que diz?
Alguém muito intenso e temível; também reprimido e com muita raiva, mas emotivo. A reputação de Lenine é a de um homem muito frio e calculista, muito unidimensional. Não foi esse Lenine que descobri. Esta fotografia conta alguém muito mais complexo.
Uma crítica muito recente no New York Times comparava a intriga deste livro com a da série House of Cards. Concorda?
Talvez. O meu problema é que não segui toda a série e faltam-me algumas referências, mas se se refere a um homem calculista capaz de tudo pelo poder, sim, reconheço isso. A única coisa que lhe interessa é o poder. A ideologia era importante, contudo ele queria mudar o mundo, e o poder era o mais importante.
A questão posta pelo escritor Stefan Zweig, “Como é que aquele homem pequeno tão obstinado conseguiu ser tão importante?”, foi também a sua pergunta ao longo da biografia?
Foi a pergunta a que tentei responder, e tentei fazê-lo mais como jornalista do que de forma académica. Como é que alguém que durante grande parte da vida viveu em pensões em várias cidades da Europa arranca com vinte seguidores e toma conta de um dos maiores impérios do mundo? Foi mais prático do que ideológico, tinha um programa e sabia como se organizar. Enquanto uns estavam no café a discutir a revolução, Lenine foi para o terreno pô-la em prátic,a como só era capaz de fazer alguém tão obcecado com o poder. Foi um dos indivíduos que fazem a História. Ele teria sempre tido sucesso em alguma coisa e provavelmente seria na política, qualquer que fosse a sua ideologia. Era russo e isso diz mais sobre ele do que o facto de ser marxista.
Que marca identitária é essa, ser russo, em Lenine?
Significa que tomaria o poder à maneira russa, uma autocracia brutal e o Estado que cria é um espelho disso. Exilou pessoas, centenas de milhar de pessoas, fundou o Gulag e uma polícia secreta extremamente eficaz e brutal. A Revolução de Outubro nunca teria acontecido sem Lenine. Ele conduziu-a. Pegou em gente e disse que era naquele momento ou não seria e muita dessa gente estava muito relutante. Mas ele convenceu, intimidou, ameaçou retirar-se da liderança. Fez de tudo para que o acompanhassem. Não teria acontecido sem ele. Trotsky disse isso. É absolutamente verdade. A ideia marxista de que as revoluções são fruto de forças políticas, forças sociais, forças económicas foi contrariada pela revolução de Lenine, feita por um homem.
No seu livro estabelece um paralelo entre o momento que se vivia há cem anos, as tensões actuais e a convicção de que é precisa uma resposta diferente das que até agora foram tentadas...
A ideia de que estamos num período revolucionário agora? Penso que Lenine olharia para este período dessa forma e pessoas como ele podem ver algo semelhante. Quando as regras não funcionam à velha maneira é um momento revolucionário. Isso não significa necessariamente que haja uma revolução mas que ela é possível. Milhões de pessoas no Ocidente estão a perder a fé na globalização, no liberalismo económico e na democracia, e demagogos como Lenine podem vir e aproveitar-se dessa insatisfação, desse sentimento de falha. Não é por acaso que Lenine é uma figura muito reconhecida hoje em dia. Ele é o tipo de demagogo que pode aparecer na rádio ou nas mais variadas lideranças. Quando tomou o poder usou violência e terror, mas neste momento ele usaria certamente outros métodos.
Tais como?
Ele seria brilhante no Twitter!
Como Trump?
Sim, mas de um modo mais inteligente, e porventura escreveria correctamente. Ele era capaz de escrever longos textos, inteligíveis, mas a sua mensagem era muito simples. A guerra tinha-se instalado, havia fome e ele disse: paz, terra, pão. Mensagem simples. Ele falou das elites e vemos agora os populistas fazerem o mesmo, à direita e à esquerda; falam da "elite global". Ele tinha soluções simples para problemas complexos; mentia sem vergonha; o fim justificava os meios; sempre que alguma coisa correia mal inventava sabotadores inimigos do povo. Tudo isto é muito familiar.
Chama a Lenine o padrinho da política da pós-verdade. É uma ideia com 100 anos?
A ideia de destruir tudo para reconstruir, e de que se pode alterar factos isso faz-nos recuar a Lenine.
O que o levou a escrever esta biografia?
Não há o que se possa chamar uma biografia, em inglês, há uns 20 anos e há muita informação nova. Muitos arquivos foram abertos. Sobretudo sobre a sua vida pessoal, mas também sobre a política. E acho que cada geração deve interpretar estas grandes personagens. Há muito boas biografias anteriores a esta, mas muitas são feitas numa ou noutra perspectiva dos intervenientes da Guerra Fria. Agora que aquela Guerra Fria acabou, podemos tentar ser um pouco mais objectivos, mais desapaixonados. Escrevi três livros sobre esse período e quando pensei no que iria fazer a seguir decidi ir onde tudo começou, à Revolução Russa, e Lenine era a figura óbvia. O resto do século XX foi basicamente uma reacção a isso. Provavelmente não teria existido Hitler sem a revolução russa, talvez não tivesse existido uma II Guerra Mundial. E o aniversário dessa revolução estava a chegar.
Como fez a pesquisa?
Tive alguns problemas para conseguir entrar na Rússia. Demorou muito até conseguir um visto. Já tinha escrito coisas sobre a Rússia em que tinha sido muito crítico em relação a Vladimir Putin. Finalmente deixaram-me entrar. Tive ajuda de assistentes lá, mas havia muita informação disponível, em memórias de outras pessoas que tinha colaborado com ele ou se tinham relacionado e que não estavam disponíveis antes de 1991. Li diários de muita gente, recolhi muito material novo sobre a sua amante, por exemplo, Inessa Armand, um dos temas que me intrigaram na última parte da sua vida. E consultei muitos arquivos. Descobri coisas surpreendentes que me fizeram gostar menos dele.
Por exemplo?
Viver com Lenine durante três anos é mais do que pouco saudável. Estava impressionado. Como é que ele tinha sido capaz?! O tremendo poder, o seu carisma, como é que conseguia que as pessoas estivessem ao seu lado. Ele não era uma figura sedutora. O seu carisma não tinha a ver com isso. Ele era incrivelmente intenso, com uma vontade tremenda, impunha a sua vontade de uma forma que ninguém se sentia intelectualmente capaz de contrariar ou de desafiar. Ele alterou completamente o debate à esquerda. Tornou-o tremendamente agressivo, muito pessoal. Nisto não era possível ter um debate civilizado. Esmagar as pessoas fazia parte da sua personalidade, adoptou essa técnica deliberadamente, e usou ao mesmo tempo uma linguagem rude. Fez isto deliberadamente, sublinho, o que era muito diferente do debate relativamente polido à esquerda. Eu queria realmente entendê-lo. Mas quando se vê na sua caligrafia, ou em documentos que assinava "mate este", "mate aquele", e usava a expressão "sem piedade", isso muda a nossa ideia dele. Há muito o argumento à esquerda de que Lenine era o idealista, que se ele tivesse vivido mais do que os seus 54 anos tudo teria sido muito diferente, Estaline não teria existido. Não estou certo disso. Quando comecei o livro eu tinha alguma simpatia por ele, mas não no fim.
Lenine é um mito. Como se passa isso e se chega ao homem e ao retrato íntimo que quis fazer onde há paixão, sexo, intriga...?
Eu quis o homem, não o mito nem a ideia. Tenho sido um pouco criticado por acharem que é um erro humanizar. Discordo. Ele é um ser humano e não nos podemos limitar à culpa. Lenine, Estaline, Hitler... E dizer que o que acontece de errado no mundo é culpa desses monstros. Há um monstro e está tudo explicado. Não. E também como escritor quero chegar ao que motivou estes homens. O que é que os transformou em assassinos? Não foi uma ideia mítica de mal. Não acredito em demónios nem em santos. São pessoas que fizeram coisas bestiais. Ele fez coisas horríveis, descrevo muitas delas, mas também digo que escreveu lindamente sobre a natureza, adorava caminhar gostava de montanhas. Quando se faz uma biografia é preciso pôr isto tudo. Isto e o facto de ter tido uma vida amorosa interessante que não o impediu de criar o Gulag, o KGB. São coisas contraditórias? Não sei, o meu objectivo não é político, mas escrever sobre uma pessoa.
Lenine, personagem de romance russo?
Absolutamente. De Tolstoi ou Dostoiévski. [Alexander] Solzhenitsyn tratou-o como tal [em Lenin in Zurich, 1975]. Mas penso muito nele enquanto possível personagem de Dostoiévski. O que Dostoiévski escreveu sobre pessoas como ele...
O livro é escrito como se a Revolução de Outubro fosse o acontecimento que determinou a História até aos nossos dias.
Quando se vê como o resto do mundo reagiu de forma sangrenta à revolução bolchevique penso que sim, que foi o acontecimento mais significativo dos últimos cem anos. É preciso falar desse acontecimento que formou o nosso mundo. A América provavelmente não seria a superpotência que é. O comunismo era visto como uma grande ameaça, ideológica e materialmente. Foi o medo do comunismo que fez com que a América tivesse bases militares por todo o lado. E a China sem essa revolução dificilmente seria o que é hoje. No meu entender, é o acontecimento mais importante do século XX. O livro começa com a descrição do dia mais importante da vida de Lenine e se aquele dia tivesse falhado tudo teria falhado.
Uma biografia pressupõe um pacto de verdade com o leitor. Com uma figura que suscita tantas paixões, essa verdade é mais difícil de atingir?
O mais importante deste livro é o que fez Lenine quando conquistou o poder e como o fez. Quando se está a lidar com um tema tão sensível é preciso fazer escolhas, sempre em nome dessa verdade. Por isso incluí um episódio de menage a trois. Isso diz muito sobre ele. Mas a amante foi apagada da História oficial. Todas as suas cartas foram censuradas. Ela é raramente referida, pela esquerda e pela direita. Entendo: tê-la seria humanizá-lo. É preciso fazer esse pacto de verdade, pôr as coisas e deixar que o leitor tire as suas conclusões.
Como acha que a esquerda e a direita modernas vão ler este livro?
Este livro não pretende ser uma crítica à esquerda moderna ou à direita moderna. O meu livro é sobre aquele homem e aquele período. Acho que se pode ver além do mito. Ao mesmo tempo, a ideia à direita de que o colapso do comunismo responde a todas as questões e leva a um triunfalismo da direita... não. Muitas das perguntas que Lenine fazia são as que se fazem hoje, as respostas não têm de ser tão sangrentas, mas o que quero dizer é que o populismo, à direita ou à esquerda, faz as mesmas perguntas. Sobre justiça social, desigualdade. O capitalismo não respondeu, mesmo quando pensa que respondeu é hoje absolutamente claro que não conseguiu. E as pessoas estão muito zangadas com isso. Não é possível ficar-se mais e mais rico. Estamos, num caso e noutro, a falar de ilusões.
Houve alguma pergunta entre todas as que fez ao longo deste trabalho que tivesse ficado por responder?
O que é que ele teria feito se tivesse vivido mais tempo? O que teria feito se depois da revolução e das mudanças económicas que se seguiram visse que não funcionavam? Recuaria para uma nova política económica? Ele viveu sete anos depois da revolução, mas nos últimos dois foi quase um vegetal. O que teria feito? Não tenho resposta para isso porque ele nunca deixou isso claro. Ele era muito contraditório. Talvez tivesse feito o mesmo que fez Estaline, mas talvez tivesse encontrado diferentes tácticas. Essa é a maior questão para a qual não encontrei resposta.
Como sintetiza a relação da Rússia com Lenine ao longo deste século?
Interessa-me essa relação sobretudo agora. No Ocidente a Revolução de Outubro está a ser assinalada de muitas maneiras. Exposições, debates, festivais, documentários, mas na Rússia não acontece quase nada. Há uma razão: Putin odeia a palavra revolução. Ele não usa essa palavra, é um anátema; não vende uma mensagem muito favorável aquele povo dominado por autocratas e corruptos. Além disso a revolução e Lenine são complicadas para a Rússia. Não se pode ignorar completamente, faz parte da história moderna, mas Lenine é uma personagem difícil para o nacionalismo à volta. Para Putin o início da História moderna é 1945, o momento da vitória, o do império que se estende até Berlim e à Europa de Leste e Estaline aparece como o grande nacionalista russo. Lenine é um grande líder e Putin quer estar nessa linha directa de sucessão, mas não quer ser associado ao caos que se seguiu. Por isso ele apaga o que aconteceu nos anos 20 e 30. Estaline era o grande líder quando a Rússia era uma grande nação.
O mausoléu está na Praça Vermelha.
Sim, que é muito visitado. O facto de continuar lá como símbolo é muito interessante. As pessoas não podem ignorar Lenine mas não querem uma revolução e ele representa a revolução.
No seu livro diz que Lenine criou Estaline.
Absolutamente. Lenine criou todas as instituições de terror que Estaline usou de modo mais eficaz. Estaline acreditava que estava a seguir o grande líder. E estava. Era muito mais brutal, mais paranóico, mas também acreditava que os fins justificavam os meios e que o terror não fazia mal porque se estava a criar o tal estado utópico. Isso é Lenine.
Escreve também que ele fundou o comunismo enquanto religião.
Sim, muitas pessoas discordam disso. O Marxismo sempre acreditou que era científico, mas pertencer ao Partido Comunista, ser bolchevique, não era muito diferente de pertencer a uma igreja com um líder. A ambição de Lenine era enorme. Ele não queria mudar apenas a estrutura política, ou o sistema social, ou o sistema económico. Ele achava que se eliminasse os chamados mecanismos de exploração criava um novo tipo de homem. Acreditava profundamente nisto, que era capaz de mudar a natureza humana, o que é uma ideia muito religiosa. Lenine e os bolcheviques acreditavam que salvavam almas e o fervor com que acreditavam nisso é muito religioso. Não é uma crença política democrática. É muitos mais como um culto religioso do que como um partido político.
Fala do fim dessa religião.
Isso é o que faz a sua falha muito mais épica. Não estou a falar dos milhões de mortes que provocaram, do facto de as pessoas não querem ser aperfeiçoadas. Quando se diz que se vai criar o homem perfeito parece óbvio que as pessoas não querem realmente de ser perfeitas, sobretudo quando esse aperfeiçoamento é feito com uma arma apontada. Mas eles fizeram-no, com o argumento de que era para salvar a sociedade, salvar o sonho. É isso que faz a falha épica. As pessoas desistiram da ideia e o que aconteceu a seguir foi corrupção, aproveitamento, carreirismo. Quando se percebe que os grandes milagres não acontecem, o que sobra?
Mas o comunismo existe.
Com um culto muito pequeno, só que a herança é enorme. Na Europa talvez tenha morrido, mas existe noutros lugares do mundo. Na China. Não é a mesma religião, mas é uma prática muito similar. Há um partido único que se rege muito segundo os princípios de Lenine. A Coreia do Norte que agora está a ser falada todos os dias - Trump faz questão que assim seja - é um país leninista. O leninismo sobrevive.