REVIVE: o diabo começa nos detalhes e acaba na venda da alma
As políticas públicas de cultura desceram talvez abaixo do plano mínimo que continua a justificar existir um ministério.
Noticiava o PÚBLICO recentemente (13 de Outubro) a realização de um seminário internacional sobre “Descentralização da Gestão Patrimonial”, em Amarante, durante a primeira Bienal Ibérica de Património Cultural, promovida por agentes empresariais do sector. Aí estive, com muito gosto, porque constitui sempre um prazer trocar ideias com pessoas inteligentes, mais ainda quando tendemos a discordar em quase tudo... menos naquilo que nos faz sermos portugueses: a defesa dos valores identitários legados por todos os que nos precederam — algo a que chamamos patriotismo, palavra de que nunca tive nem tenho medo.
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Noticiava o PÚBLICO recentemente (13 de Outubro) a realização de um seminário internacional sobre “Descentralização da Gestão Patrimonial”, em Amarante, durante a primeira Bienal Ibérica de Património Cultural, promovida por agentes empresariais do sector. Aí estive, com muito gosto, porque constitui sempre um prazer trocar ideias com pessoas inteligentes, mais ainda quando tendemos a discordar em quase tudo... menos naquilo que nos faz sermos portugueses: a defesa dos valores identitários legados por todos os que nos precederam — algo a que chamamos patriotismo, palavra de que nunca tive nem tenho medo.
Dito isto, claro que pelo meu lado não confundo descentralização e até regionalização, que defendo, com privatização, de que discordo fora do quadro de políticas públicas de cultura bem definidas. Tenho plena consciência de que nunca o Estado poderá (nem nunca deveria, mesmo podendo) zelar por todo o património cultural nacional, mesmo que fosse somente o classificado (de que, aliás, é proprietário de somente cerca de 10%). É fundamental a participação dos movimentos de cidadãos, mobilizados por finalidades cívicas, e há também amplo lugar para os privados, inclusive para os investidores que visem o lucro. Mas tal terá sempre de ser suportado em políticas públicas de cultura abrangentes e consistentes. Ora, são estas que não existem. Na aflição em que se encontram após anos e anos de penúria (política sobretudo, antes de ser também financeira), as políticas públicas de cultura desceram talvez abaixo do plano mínimo que continua a justificar existir um ministério. Este limita-se por isso a dançar as músicas que lhe põem no gira-discos. Há excepções, é certo, sobretudo a nível local e regional (por exemplo, a magnífica Rota do Românico). Mas o panorama geral, e sobretudo o de maior responsabilidade governativa, é desolador.
A apresentação do REVIVE feita no supra-referido seminário por um dos subdirectores-gerais da ainda subsistente DGPC espelha eloquentemente o que fica dito. Evitei até hoje pronunciar-me sobre este programa, porque penso que poderia ter aspectos positivos, dado o enquadramento político e social mais vasto a que aludi acima. Sei bem o que significa a aflição de ter monumentos a cair e não saber como lhes acudir, podendo os Revives desta terra serem encarados, sobretudo pelas administrações locais, como bóias de salvação face à ineficácia do Governo. Mas houve na apresentação feita em Amarante uma tal entusiasmo e uma tal sinceridade que, embora humanamente compreensíveis, me dão pena pelo que testemunham do “estado a que isto chegou” (expressão que por certo na actual maioria parlamentar haverá quem recorde quando foi proferida). Percebemos ali todos que a Cultura (e não apenas a DGPC, insisto) deixou definitivamente de poder contribuir para qualquer política decente de Património Cultural. Tudo se resume nisto: como não podemos fazer nada, é melhor entregar os monumentos a quem os possa manter de pé, em lugar de os deixar cair em ruínas. A DGPC remete-se para a condição de fiscal de obras (enquanto quem manda a quiser aturar, claro) e deixa-se as “forças do mercado” actuarem, melhor, deixa-se os grandes tubarões cilindrarem os pequenos. Política patrimonial cidadã? Balelas. Precisamos é de quem tome conta dos empecilhos, e ponha dinheiro, mesmo que através de linhas de financiamento (portuguesas e europeias) fortemente bonificadas pelo recurso aos impostos que todos pagamos.
Convém dizer que não atiro pedras a quem assim se resigna, por força dos cargos que ocupa. Admito que se tivesse feito a mesma escolha (cargos de chefia são escolhas e não imposições), e a quisesse manter navegando à bolina, poderia talvez ter chegado aos mesmos becos, escusos e escuros. Concordo em que quase tudo é preferível à ruína. Mas, caramba, não penso que seja necessário ser-se escutista militante na defesa da venda da alma ao diabo. Dos 30 monumentos incluídos no REVIVE, quantos não virão a ser hotéis e restaurantes? Quantos serão aquilo que piedosamente se diz também poderem ser, centros de arte ou residências de estudantes, por exemplo? Para já, os únicos três contratados são hotéis. E tudo parece resumir-se a negócios do Grupo Pestana. A demissão da Cultura quanto ao uso cidadão do Património Cultural conduz também à exclusão das pequenas empresas e das associações ligadas ao sector, porque nenhuma terá condições de concorrer — no que melhor se percebe como se justifica a plataforma patriótica que, afinal, em quase nove séculos de história, constitui a base do nosso contrato nacional.
Dos trinta miraculados “redivivos” (desculpe lá Herculano, onde estiver, roubar-lhe o termo do combate nos seus “monumentos pátrios” contra a fúria do camartelo), tomemos um caso apenas, pelo que encerra de paradigmático: a Quinta Real de Caxias. Ao longo de anos, a Câmara Municipal de Oeiras investiu no local um acumulado de cerca de três milhões de euros. Fê-lo sobretudo na cascata e no jardim, porque no palácio lhe estava vedado intervir, por ser propriedade militar. De repente, o golpe de mágica: o palácio já pode ser entregue a exploração de privados, por pelo menos três décadas. Ora, fumos de venalidade à parte, estou certo que nem neste nem em nenhum outro caso foram feitos os estudos económicos que considerem o investimento público, directo ou indirecto, local ou de contexto, e regulem no detalhe as condições contratuais de tal modo que o capital privado e as taxas da sua remuneração sejam aceitáveis e tudo não se converta em mais exemplos das PPPs de tão má memória. Isto sem falar no principal: aceitar que espaços de tanta carga emotiva memorialista possam ser, no todo ou na parte (beneficiando, aliás, esta do todo), subtraídos ao seu uso cidadão.
Estamos, pois, no REVIVE perante um caso típico de alienação da função primordial dos monumentos, curiosamente promovido por um Governo suportado na maioria parlamentar mais à esquerda que tivemos em décadas. Mas quero ser frontal: não são tanto os Revives, os pequenos-grandes dirigentes da administração pública ou os políticos de discurso fácil em favor da cultura que estão em causa neste processo, onde até autarcas comunistas colaboraram. Somos nós, cidadãos, na facilidade com que nos deixamos desapropriar daquilo que nos deveria ser mais caro, a nossa memória colectiva.