Juiz do Porto já tinha minimizado agressão a mulher com bebé ao colo
Acórdão que legitima violência contra “mulheres adúlteras” desencadeia chuva de críticas. Órgão que tutela juízes avisa que “nem todas as proclamações arcaicas assumem relevância disciplinar”.
O juiz do Tribunal da Relação do Porto que este mês desculpabilizou as agressões a “mulheres adúlteras” já em 2013 havia minimizado outro caso de violência conjugal.
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O juiz do Tribunal da Relação do Porto que este mês desculpabilizou as agressões a “mulheres adúlteras” já em 2013 havia minimizado outro caso de violência conjugal.
Neto de Moura estava colocado no Tribunal da Relação de Lisboa quando lhe chegou às mãos um processo relacionado com as agressões de um homem à sua companheira quatro anos antes. Tal como tinha sucedido no tribunal de primeira instância, de cuja sentença a vítima recorreu, o magistrado entendeu que os factos não mereciam uma qualificação jurídica tão grave como a de violência doméstica. E escreveu que a atitude de quem bate na mulher com o filho recém-nascido ao colo e ainda por cima lhe morde não merece especial censurabilidade.
O casal residia em Lisboa, sendo frequentes as discussões em que a mulher era insultada. Numa dessas ocasiões o agressor foi mais longe: deu-lhe um murro no nariz e mordeu-lhe uma mão, estava a companheira com o filho recém-nascido ao colo. Deduzindo que se tratou de um murro desferido com pouca força, uma vez que o nariz ficou apenas “ligeiramente negro de lado”, e que a mão da vítima não ficou marcada, Neto de Moura concluiu que a conduta do homem não era “reveladora de especial censurabilidade ou perversidade” para ser classificada como violência doméstica, tratando-se antes de uma simples ofensa à integridade física, neste caso punível com multa.
“É manifesto que a conduta do arguido não tem a gravidade bastante para se poder afirmar que foi aviltada a dignidade pessoal da recorrente [a vítima], mesmo tendo em conta que a assistente estava com o filho de nove dias de vida ao colo”, decidiu o magistrado, considerando que nem o bem-estar físico nem o bem-estar emocional desta mulher foram intoleravelmente lesados. “O facto de por várias vezes o arguido ter chamado puta à assistente [a sua companheira] pouco ou nada acrescenta à gravidade da conduta”.
Este fim-de-semana o juiz foi alvo de uma chuva de críticas, quando foram noticiados extractos de dois acórdãos seus em que a violência doméstica aparece desculpabilizada com o adultério. “O adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”, escreveu o magistrado, numa sentença assinada também pela colega Luisa Arantes.
Confrontado com as posições do magistrado, que chega ao ponto de recordar que a Bíblia preconiza a morte para a “mulher adúltera”, o Conselho Superior da Magistratura, órgão de disciplina dos juízes, não foi claro sobre o que pretende fazer. Diz que pode vir a discutir o assunto, mas vai avisando que “nem todas as proclamações arcaicas, inadequadas ou infelizes constantes de sentenças assumem relevância disciplinar”.
Mais lesta a pronunciar-se, a sociedade civil condenou Neto Moura - que não quis falar com a comunicação social, mas que o PÚBLICO sabe ter sido surpreendido não só pela avalanche de críticas como também por não ter visto nenhum colega defendê-lo. Um grupo de activistas feministas marcou uma manifestação para esta sexta-feira no Porto, num protesto que deverá também estender-se a Lisboa. Os insólitos argumentos do juiz chegaram à imprensa espanhola e brasileira. E foram vários os juristas a assinalar que tanto a Constituição como as convenções internacionais que o país assinou preconizam a igualdade de género de que o magistrado parece ter-se esquecido.
Uma investigação do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra que analisou 500 decisões judiciais mostra que casos há em que o agressor vê a sua pena reduzida por, entre outras razões, “as agressões deverem-se ao facto de o arguido ter conhecimento que a ofendida teve relações sexuais com outros homens, o que torna a sua culpa mais leve”.
Publicado no ano passado, o estudo dá conta de como decisões judiciais que privilegiam a suspensão provisória do processo, com base num acordo entre agressor e vítima. Um dos objectivos apontados é o da “reconstituição da relação entre ambos”, que é vista pelo decisor “como intrinsecamente positiva para as pessoas visadas “.
Por outro lado, assume-se que “as agressões são ‘problemas’ a ‘resolver’ no ‘interior’ da vida conjugal, co-responsabilizando a vítima, familiarizando o crime e subtraindo-lhe dignidade penal e censurabilidade social”.
Em declarações ao PÚBLICO, a socióloga Madalena Duarte, uma das autoras do trabalho, refere que tem existido “uma crescente sensibilização e conhecimento sobre os contornos do crime” de violência doméstica por parte dos magistrados, o que faz com que o acórdão da Relação do Porto “surja como excepção e não como regra”.
Apesar disso, confirma que subsistem “alguns mitos e estereótipos quer sobre as causas da violência doméstica, quer sobre vítimas e agressores”. O que faz com que em algumas decisões judiciais apareçam como possíveis “atenuantes imputadas ao arguido aspectos relacionados com a sua personalidade e com o comportamento da vítima”. Ou seja, encara-se a vítima como sendo “tão culpada quanto o agressor”.