Como um documentário sobre as marchas se tornou num filme sobre a “perda” de Alfama
Projecto “Alfama é Marcha” procura preservar as memórias do bairro lisboeta. Ao falar sobre a tradição, o colectivo Left Hand Rotation cruzou-se com outra coisa. “Alfama é Marcha” — mas também é gentrificação, turismo excessivo e “descaracterização”.
Quando o colectivo Left Hand Rotation se fez às ruas de câmara na mão, levava no guião apenas o desafio da Associação do Património e População de Alfama (APPA): produzir um documentário sobre as marchas do mais antigo bairro de Lisboa. Mas ao falar sobre as marchas já o assunto era todo o bairro — e um sentimento de “profunda tristeza e perda” perante aquilo que ali se passa.
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Quando o colectivo Left Hand Rotation se fez às ruas de câmara na mão, levava no guião apenas o desafio da Associação do Património e População de Alfama (APPA): produzir um documentário sobre as marchas do mais antigo bairro de Lisboa. Mas ao falar sobre as marchas já o assunto era todo o bairro — e um sentimento de “profunda tristeza e perda” perante aquilo que ali se passa.
Di-lo o colectivo espanhol chegado à capital portuguesa há já seis anos, disseram-no os entrevistados, repete-o Maria de Lurdes Pinheiro, a presidente da APPA, que há coisa de um ano deu início ao projecto “Alfama é Marcha”, criado para envolver a população com o seu território e valorizar aquele património cultural, material e imaterial. “O bairro está no caminho da descaracterização e há um sentimento de perda muito profundo [entre os moradores]”, vai contando num tom de voz a variar entre a revolta e a tristeza.
O documentário de 40 minutos, já disponível online, não nasceu para ser um filme sobre a “gentrificação” lisboeta e do bairro de Alfama em particular. Os espanhóis — que preferem apresentar-se como um colectivo e não fazer apresentações individuais — aceitaram o desafio de Maria de Lurdes porque eles próprios, também moradores do bairro, estão “preocupados com o que está a acontecer”, contou uma das activistas ao PÚBLICO. Imaginaram que ao explorar o sentimento à volta das marchas podiam também fazer um retrato de outra “forma de resistência”.
Mas ao percorrer as ruas inclinadas do bairro e conversar com os moradores sobre a tradição dos Santos Populares os depoimentos iam todos no mesmo sentido e traçavam um diagnóstico claro: “Tristeza com o que se passa, a falta que quem já saiu faz, os problemas de habitação. Tudo está conectado”, constataram. A gentrificação não é tema novo para os Left Hand Rotation: recentemente apresentaram um pequeno documentário sobre o mesmo tema na Rua dos Lagares, já tinham denunciado o que se tem passado nas ilhas do Porto, na freguesia do Bonfim, há menos de um ano apresentaram Terramotourism, também sobre uma “Lisboa abalada por um sismo turístico”. Nos últimos tempos, têm visto alguns movimentos a tentar combater o fenómeno — mas dizem que o problema está longe de se esbater e chamam a atenção para uma outra tendência: “Com a expulsão de pessoas dos centros, as periferias começam a sofrer. A cidade é uma rede, um problema num lado afecta os outros.”
Maria de Lurdes Pinheiro tem um nome forte para aquilo que se está a passar. “Bullying, os moradores estão a ser vítimas de bullying.” À APPA têm chegado muitos pedidos de ajuda de gente que se vê “completamente sozinha e perdida”. Uma moradora que se recusou a abandonar a sua casa contou-lhes que viu a água e luz serem-lhe cortadas. Outros deparam-se com obras no exterior do edifício como uma pressão nada subtil para a sua saída. “É uma dor de alma ver isto”, aponta, “estas pessoas não têm para onde ir”.
O esquecimento de Alfama não é de hoje. Quando a associação foi criada, há 30 anos, já tinha como foco “chamar a atenção da Câmara Municipal de Lisboa” para os problemas ali existentes. “Apesar de ser um bairro histórico, o mais visitado de Lisboa, sempre foi muito mal tratado a nível político”, denuncia. Maria de Lurdes Pinheiro gostava de ver mais apoios, estatais ou municipais — mas o que aconteceu foi o contrário. Alfama “começou a perder há uns 15 anos”, quando a “câmara deixou de reabilitar e começou a vender o seu património”. Depois veio “a queda do comércio, fecharam-se farmácias, a esquadra, algumas escolas”. A lei do arrendamento urbano, de 2012 veio “piorar tudo”. Alfama “foi-se esvaziando”.
É um problema anterior ao turismo. Mas aumentado com ele. “Não estamos contra o turismo, estamos contra esta forma de fazer as coisas. Prédios e prédios vendidos para esse fim e os moradores sempre esquecidos”, lamenta a presidente da APPA que durante 16 anos esteve à frente da junta de Santo Estêvão (Alfama), freguesia da CDU que com a reformulação de 2013 se fundiu com mais 11 para formar Santa Maria Maior.
Além do documentário, o “Alfama é Marcha” — com financiamento do programa BIP ZIP — tem também duas exposições, na Sociedade Boa União e na Galeria Perve, onde se mostra o trabalho de um ano de projecto (o financiamento termina este mês, a APPA já prepara nova candidatura). Nos dois espaços pode conhecer-se melhor o património e a população de Alfama — e há até um conjunto de trajes para uma pequena viagem no tempo. Para “preservar memória” e a sonhar com algo maior: “Quem sabe um dia possam estar num museu”.