Juiz “pode não ter as condições mínimas” para voltar a julgar violência doméstica, diz bastonário
Advogados criticam magistrado do Tribunal da Relação do Porto cuja sentença legitimou punição de “mulheres adúlteras”.
O juiz do Tribunal da Relação do Porto que escreveu num acórdão ser compreensível a punição violenta das mulheres adúlteras “pode não ter as condições mínimas de especialidade” para voltar a julgar casos de violência doméstica, entende o bastonário dos advogados, Guilherme Figueiredo.
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O juiz do Tribunal da Relação do Porto que escreveu num acórdão ser compreensível a punição violenta das mulheres adúlteras “pode não ter as condições mínimas de especialidade” para voltar a julgar casos de violência doméstica, entende o bastonário dos advogados, Guilherme Figueiredo.
Mostrando-se chocado com o teor da argumentação usada pelo magistrado, tanto nesta sentença como numa anterior, o representante máximo dos advogados explica que ela se mostra “desfasada de toda a doutrina do direito da família e do direito criminal”, sendo tanto mais grave quanto legitima a violência de género. “A ideia de que o outro, neste caso a mulher, é inferior pertence tipicamente à violência de género”, explica o bastonário. É este desfasamento que pode ser suficiente para o Conselho Superior da Magistratura, que é o órgão disciplinar dos juízes, ponderar sobre o exercício de funções do magistrado em causa no que ao crime de violência doméstica diz respeito, explica o bastonário.
“Nesta matéria poderá não ter as melhores condições para o fazer”, observa Guilherme Figueiredo, acrescentando que os argumentos do desembargador em causa, Neto de Moura, “também não fazem sentido” do ponto de vista da igualdade consignada na Constituição. “Cria a falsa ideia de que a mulher adúltera merece um castigo, ao contrário do homem adúltero, o que pode criar uma ideia errada aos cidadãos violentos”, prossegue o advogado. “E é preciso ter consciência de que há um problema gravíssimo de violência doméstica em Portugal”.
Até a argumentação teológica usada por Neto de Moura e subscrita, no mesmo acórdão de 11 de Outubro passado, pela sua colega Luisa Arantes está desfasada da realidade, garante o bastonário: “Hoje a igreja não defende a violência de género”. Estes "são argumentos que chocam quase toda a comunidade jurista”, assegura.
O polémico acórdão foi proferido no âmbito de um caso de violência doméstica, em que a vítima foi agredida pelo ex-marido e pelo homem com quem tinha mantido uma relação extraconjugal (que motivou a separação do casal, meses antes da agressão). Em Junho de 2015, depois de ser sequestrada pelo ex-amante, que lhe pedia que retomassem a relação, o homem chamou o ex-cônjuge da vítima para juntos a confrontarem. Na agressão, foi usada uma moca com pregos.
Os atacantes foram condenados pelo Tribunal de Felgueiras a penas suspensas. O Ministério Público recorreu da sentença, numa tentativa de obter penas mais pesadas, mas a decisão foi confirmada pela Relação do Porto. O desembargador escreveu que “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem”, recordando existirem ainda sociedades em que “a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”.
“Na Bíblia podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal [de 1886] punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando a sua mulher em adultério, nesse acto a matasse”, diz também. “O adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher”, declara no mesmo acórdão Neto de Moura.
A comissão de direitos humanos da Ordem dos Advogados também irá pronunciar-se sobre o assunto. “Pedi hoje [segunda-feira] às 9h a todos os seus membros que tomassem uma posição”, conta o seu presidente, Castanheira das Neves, que diz que a comissão ficou “surpreendida” com as posições assumidas pelo juiz.